DEUS. Agosto 2014. Foto / João Caldas.
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Não é primeira vez que a cena teatral recebe a visita do Todo
Poderoso. Que vem desde o dramaturgo romano Plauto, quando Deus, sob a forma de
Júpiter, assume o espaço de um marido ausente, na comédia O Anfitrião. Uma peça
que serviria de mote inspirador à versão brasileira de Guilherme Figueiredo –
Um Deus Dormiu Lá em Casa, um dos maiores êxitos da dupla Tônia Carrero / Paulo
Autran.
Mas inusitada mesmo é a chegada do Pai Eterno (Dan Stulbach), sob uma imprevisível identidade
humana, no consultório da psicóloga Ana (Irene Ravache) pedindo uma sessão de
divã - na peça Meu Deus!, de um dos mais
conceituados nomes do teatro contemporâneo israelense - Anat Gov.
Em clima nonsense e
de inteligente ironia, Ele confessa
estar deprimido com o comportamento de irascível rebeldia dos seres humanos, legado
mais precioso de sua criação universal. Com o rumo perdido, sem eira nem beira
em sua postura indagativa, leva a analista a ver Nele, aqui e
agora, um sintomático doente mental quando afirma não ter nome e nunca ter tido
pais em seus mais de dois mil anos de idade.
Ateísta convicta, ela vai se convencendo, aos poucos, dos
signos teológicos de que não existe coisa mais próxima, nem mais distante, mais
oculta e mais visível do que aquele Deus
que pode trazer de volta as desejadas águas da chuva para seu quase árido jardim. O
que serve, ainda, de impulso para uma alegre comemoração ao lado de seu filho
autista (Pedro Carvalho).
Os envolventes mal-entendidos, no limite entre os paradigmas
espirituais de Deus e os estratagemas humanos da psicóloga, provocam um
dinâmico duelo cênico que, sem desmerecer a acertada atuação do protagonista
masculino, tem seus melhores lances de vitória na performance da atriz.
Tudo conduzido com toques “divinais” pela boa direção de
Elias Andreato, mesmo quando a trama substitui seu inventivo humor, que se faz
luz desde a primeira cena, por um tragicômico descanso de sétimo dia, no
insistente contraponto - verdades bíblicas e crise civilizatória. Com elegante aporte cenográfico (Antônio Júnior) e formalismo indumentário (Fause Haten) sob efeitos luminares vazados (Wagner Freire).
No entremeio de tantas perguntas sem resposta melhor talvez, no
lugar deste infinito embate, recorrer a um estratagema poético com uma, quem sabe,
possível solução camoniana:
“O que é Deus, ninguém o
entende,
Que a tanto o engenho
humano não se estende”.
Ecos que se expandem de Israel à ambiência brasileira, quando
diversas gerações de uma família judaica, que optou por outra nacionalidade por
circunstâncias politicas da diáspora e da guerra nazifascista, se reúnem por um motivo qualquer comemorativo onde os pilares que sustentam o encontro continuem sendo
a religião e os costumes.
E se, mais uma vez, o mote é celebrar uma tradição como o Shabat (o descanso semanal do sábado) aproveita-se
ainda para festejar o cinquentenário da mãe e o noivado da neta, em nome das segunda e terceira descendência quando, certamente, vêm à tona sentimentos de afeto ou de
conflito no compasso dos desabafos.
Quem não tem matriarcas ou patriarcas que se julgam os líderes ou porta vozes autoritários, em âmbito doméstico, do
que julgam ser este o mais admirável dos governos? Quem não tem pais ou irmãos
pelos quais nutrem simultâneos laços de ternura ou de ódios tirânicos?
Presencial e de um verismo atroz naquele que se revela o mais
visceral dos personagens da peça Silêncio
- a matriarca (Suzana Faini) - tornada a
dona exclusiva da última e definitiva lição, com seus quase infinitos
solilóquios verbais. Impressionando, sobremaneira, pela exuberante
interpretação atoral, capaz por si só de
centralizar as atenções da plateia.
Não deixando, contudo, de reconhecer que são também sensitivas
as manifestações de silêncio do patriarca David
(Jitman Vibranovsky) enquanto vai preparando sua demolidora revelação sobre as
espúrias origens familiares.
Destaque, ainda, para as bens construídas artimanhas cênicas
da investigativa estudante (Karen
Coelho) e das injunções mediadoras da noiva (Gabriela Estevão), com um desempenho
mais sóbrio da mãe (Verônica Reis) e menor alcance na caracterização dos
personagens do pai (Alexandre Mofatti) e do noivo (Vicente Coelho).
A cenografia (Nello Marrese), limitada a uma sala familiar,
mesa longa e cadeiras num espaço de arena, é interessante por induzir ao
envolvimento mais intimista do público, embora incomode, quebrando o ritual
familiar, a utilização de banquetas comuns ao lado de cadeiras mais solenes. Os figurinos (Bruno Perlatto) tem tons mais sóbrios combinando com o encontro familiar celebrativo de data religiosa sob um desenho de luz discricionário (Renato Machado).
Em Silêncio, com
privilegiada direção também da autora, tendo ao lado o apoio artístico de Priscila Vidca, percebe-se,
nitidamente, uma sólida enunciação de personagens num tema, a principio sujeito
à total previsibilidade, sustentado por ataques e defesas num jantar que se
torna uma acirrada arena de luta, sob diferentes acepções geracionais.
Nesta sua segunda revelação textual, após a feliz surpresa de
sua peça Os Sapos, Renata Mizrahi com ascendência judaica ressalta, mais
uma vez, sua força qualitativa como uma das carismáticas revelações da nova
dramaturgia brasileira.
Wagner
Corrêa de Araújo
SILÊNCIO. Junho de 2014. Foto/ Renato Mangolin. |
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