OCUPAÇÃO RIO DIVERSIDADE: CORPOS MUTANTES, SEXUALIDADES LIBERTAS


FOTOS/ELISA MENDES/RICARDO BRAJERTMAN
O que ainda se classifica, em pleno terceiro milênio, de transtornos da identidade sexual, vem alcançando um espaço significativo de afirmação contestatória e de pulsão reflexiva na teatralidade de suas abordagens.

Num embate artístico contra o preconceito moral e a marginalização social estas metamorfoses da fisicalidade e dos desejos humanos ecoam no referencial libertário do teórico Eugenio Barba,  onde este corpo mutante é inserido no intrínseco ofício do ator:

Posto em forma, reconstruído para a ficção teatral. Este corpo artístico – e logo não natural – não é por si mesmo nem homem nem mulher. No palco tem o sexo que decidiu representar”.

Mas, em  ondas contrárias  , esta representação cênica das diferentes identidades sexuais foge do mero deboche e do riso mordaz provocados, sempre, por uma burlesca comicidade deste surto psicótico dos desejos proibidos.

E ,no desdizer desta postura, há que se destacar o esforço gratificante e mais que meritório do projeto dramatúrgico idealizado por Márcia Zanelatto : Rio Diversidade – Ocupação Fora do Armário. Que, iniciado em formato itinerante no Castelinho do Flamengo, em 2016, retorna agora, na unicidade temporal e física de um  palco italiano e  titulado como Ocupação Rio Diversidade.



Com quatro representativos nomes autorais  na missão textual em torno da diversidade sexual, acompanhados do mais qualitativo entre encenadores e intérpretes da cena carioca. Camerístico quarteto de movimentos/ monólogos, com perceptíveis acordes estéticos e incisiva sonoridade temática.

Em Genderless ,Um Corpo Fora da Lei , com elegante sobriedade emotiva ,  Larissa Bracher se faz porta voz do nem masculino /nem feminino, da metafórica genitália da pessoa australiana de Norrie May–Welby. Com autoridade cênica, Guilherme Leme Garcia, em arrojado minimalismo cênico, transcendentaliza, a interiorização poética e a contundência dramática do solilóquio de Márcia Zanelatto.

Sem ter assumido o segredo de sua libido , impactada pela ausência materna e a conivência de uma domesticidade felina, a tardia fuga do armário de um personagem feminino, no desalento raivoso  por dissimular a  irresistível paixão por outra mulher . No monólogo Como Deixar de Ser , em idêntica coesão e luminosidade, a irradiante performance ( Kelzy Ecard), a densidade textual (Daniela Pereira de Carvalho) e uma encenação artesanal(Renato Carrera).

Vivenciando o limite do risco no intercambio  do amor comprado, um amante do oficio criador  e um garoto de programa, entre o interesse vil e a morte indigna(no trágico referencial a Luiz Antônio Martinez Correa) . Temas recorrentes de A Noite em Claro, o corte laminar da narrativa (Joaquim Vicente)  para duas pessoas a uma só voz. A direção rompante e tensa de Cesar Augusto para uma valente, reveladora e cativante performance (Thadeu Matos).

A verbalização fluente e de espontânea ironia  no discurso, de intersexualidade híbrida, de Flor Carnívora  (Jô Bilac). O contraponto crítico dos transes humanos no universo vegetal , com senso rítmico e empatia pública na  direção de Ivan Sugahara  e a absoluta envolvência sensorial da ritualística entrega de Gabriela Carneiro da Cunha.

Completando este memorial lúdico / verista das “grandes minorias” da Ocupação Rio Diversidade, convicta como hostess, a drag Magenta Dawning incendiando os estereótipos preconceituosos. Todos, enfim, autores>atores>diretores, inventariando a lição de Grotowski neste “ato de desnudar-se, rasgar a máscara diária, a exteriorização do eu”...

                                                 Wagner Corrêa de Araújo


OCUPAÇÃO RIO DIVERSIDADE está em cartaz no Teatro Sesi/Centro/RJ, quinta e sexta, às 19h30m;sábado, às 19h.110 minutos. Até 11 de fevereiro.

OCUPAÇÃO RIO DIVERSIDADE, em nova temporada, no Teatro Ipanema,sábado, às 21h;domingo e segunda, às 20hs. Até 14 de agosto.

MATA TEU PAI: RUPTURA E TRANSGRESSÃO DO ESTIGMA

FOTOS/ ELISA MENDES

Como sou infeliz! Que sofrimento o meu, desventurada! Ai de mim! Porque não morro”. Este é o grito da desesperança de uma estrangeira sem raízes, no não lugar que lhe atribuiu o destino, de um amor vitorioso que a torna vítima da exclusão e do desprezo de seu homem Jasão.

Sob este estigma da dor e do aviltamento de sua condição de mulher, a Medéia trágica de Eurípides, usa do seu  ofício de sortilégios para a vingança de sua paixão fissurada, no flagelamento assassino dos frutos filiais deste casamento infeliz.

E é este relato de aporte mítico, que ecoou no compasso clássico de Eurípides e Corneille às suas retomadas  sob o olhar da contemporaneidade( Anouilh, Pasolini, Paulo Pontes/Chico Buarque),que impulsiona a releitura terceiro milênio de Grace Passô em Mata Teu Pai.

Aqui, a rebeldia desta Medéia nativa transubstancia-se no ressentimento, na denúncia e na reflexão sobre o não pertencimento, nesta, enfim,  falaz solução da crise migratória no lugar nenhum (na referência presencial de mulheres sírias, cubanas,haitianas, israelitas).

Ou nas prevalentes marginalizações do feminino num tempo além do tempo, na transitoriedade de vidas provisórias digladiando-se pela constância de seus intrínsecos idealismos.

Em tons confessionais, esta Medéia( Débora Lamm) impõe, desde a inicialização de seu percurso dramatúrgico, o inconformismo no eco de seu desabafo pela  convocação à cumplicidade coletiva : Preciso que me escutem.

Ainda que lhe façam companhia cênica as 12 mulheres idosas (as "Meninas da Gamboa"), não assumem a sua dor ( repetindo a postura do coro grego na tragédia original),replicando apenas em gestos de distanciada afetividade , entrecortados por incidentais acordes vocais sambistas.

Uma arquitetura cenográfica (Mina Quental) em demolição sob sombras e luzes(Nadja Naira/Ana Luzia de Simoni), indumentária de nuances atemporais(Sol Azulay) e incisivas incidências sonoras(Felipe Storino) acentuam o clima de desalento e proscrição do papel protagonista.

Onde Débora Lamm segura as marcações , ora entre enérgicos recortes dramáticos ora em introspectiva loquacidade,  numa fisicalidade emotiva de remissão da auto-estima de sua personagem ferida, com domínio absoluto nos contornos da representação.

Ainda que em sua textualidade autoral Mata Teu Pai não alcance o mesmo impacto do contraponto inventivo de Vaga  Carne ( singularizada criação autoral de Grace Passô), o convicto dimensionamento diretorial de Inez Viana garante, com verdade interior, um jogo dramatúrgico vivo.

Capaz, assim, no seu artesanal confronto de densidade estética e exacerbação sensorial, de fazer de Mata Teu Pai mais um espontâneo e irreverente discurso teatral contra as adversidades da alma feminina.  

                                            Wagner Corrêa de Araújo


MATA TEU PAI está em cartaz no Espaço Sérgio Porto, sábado e segunda, às 21h;domingo, às 20h. 60 minutos. Até 30 de janeiro.

Mata Teu Pai, de volta ao cartaz, no Teatro Poeira, de quinta a sábado, às 21h;domingo, às 19h. 60 minutos. Até 29 de outubro.

CEMITÉRIO DAS DELÍCIAS - ARRABAL EM CENA : ORDENANDO O PÂNICO


FOTOS/DESIRÉE DO VALLE
A trajetória inicial, a partir da infância, seria determinante para marcar o espírito revolto e conturbado de Fernando Arrabal: sua mãe , franquista doente, despreza os ideais políticos liberais de seu pai.

E é este confronto, entre o conservadorismo e o contestatório, o elemento propulsor  do futuro escritor e dramaturgo para assumir, de vez , já em seus primeiros escritos, reações  inconscientes e instintivas .

Capazes de conduzir seus textos ficcionais e dramatúrgicos a uma nuance de sarcasmo e violência à beira do insano, em sua teatralização do caos e a que ele chamou de “cerimônia pânica”.

Presente no seu apocalíptico retrato dos domínios de sua experiencia domiciliar e social e com tal abrangência intimidativa que  lhe concedeu augúrios de identificação com a contemporaneidade. Vivenciados em seus sonhos abissais das situações limites de “um teatro( opera mundi) em que humor e poesia, pânico e amor sejam uma coisa só”.

De presencial  laminar em incursões textuais como Fando e Lis, Oração, Guernica, Cemitério dos Automóveis e Jardim das Delícias, de onde , em seleta antológica, o diretor Delson Antunes elaborou a proposta cênica de “Cemitério das Delícias – Arrabal em Cena” frente à sua recém criada  Cia Disparato.

Manipulador mor dos espaços fronteiriços entre a linguagem literária e a textualidade teatral, Délson troca, desta vez, os arroubos refinados das escritas de Quintana, Clarice e Caio Fernando Abreu pelo desafio de recortar os desordenamentos de Arrabal  numa colagem de cenas esparsas e fragmentárias de seu inventário dramatúrgico.

Onde a  surpresa do contato incomodo do público com uma desconstrução cenográfica (José Dias), amontoada em forma de lixo, se torna um luxo eficaz  para contextualizar sensorialmente a selvageria de um teatro do grotesco e do pânico.

Extensivo conceitualmente nos farsescos farrapos indumentários (Joana Bueno) e nos experimentos sonoros lírico/rascantes(Pedro Veríssimo/Fernando Aranha), tudo clarificado,  em seus contornos , por luzes climaticamente vazadas(Fernanda Mantovani).

Mas, para uma performance de prevalência do delírio verbal e do pesadelo gestual (Sueli Guerra) não é fácil  manter uma espontânea e tranquila organicidade para 12 atores de alternativos graus interpretativos, entre a formação teatral  e a maturidade profissional.

Havendo, naturalmente, maior favorecimento de acordo com o dimensionamento da representação individualizada(Eduardo Khenaifes/Andreia Burle)ou da repartição por vários personagens (Rodrigo Candelot, Andrea Couto, Leonardo Paixão).

E, mesmo sob os perceptíveis  riscos à  unicidade narrativa e à progressão dramática com o florilégio incidental de um Arrabal de peças diversas, a gramática cênica  deste Cemitério das Delícias mostra, enfim, estética artesanal e predestinada convicção para revelar mais uma nova e afirmativa companhia carioca.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


CEMITÉRIO DAS DELÍCIAS - ARRABAL EM CENA está em cartaz no Teatro Café Pequeno/Leblon, de sexta a domingo, 20h. 60 minutos. Até 29 de janeiro.

60 ! DÉCADA DE ARROMBA: DOC. MUSICAL “EM DIAS DOURADOS E NOITES DE CHUMBO"


FOTOS/DANIEL SEABRA

Anos de contrastes sociais, políticos,morais e culturais - assim foi a emblemática trajetória da década de 60.

Que viu surgirem tendências emancipatórias de todos os níveis, desde as manifestações da esquerda às  ondas estudantis, dos pensamentos pacifistas aos avanços do feminismo e à inicialização efetiva  do gay power, da contracultura às explosões das vanguardas, das viagens pelo cosmos e pelos espaços siderais da mente.

Contraditoriamente, regrediu no acirramento da guerra fria , com a divisão do mundo metaforizada no Muro de Berlim, nos sequenciais golpes militares latino americanos,no fortalecimento dos reacionarismos direitistas e no crescimento dos conservadorismos evangélicos.

Mas alcançando outras compensações, na moda alternativa e unissex, na liberação do comportamento sexual e do pensamento crítico, equalizou, unificou, impulsionou marginalidades inventivas.

E entre o “faça amor, não faça a guerra”, sonhos lisérgicos e descompromissos geracionais hippies, acabou disseminando explosivos resultados na criação artística e na expressão literária. À estética  informal conscientizada da Nouvelle Vague responderam os ecos ideológicos nativos do Cinema Novo.

Saindo de Woodstock , com  revoluções por minuto, se fez  um rock mais energizante, postural e contestador – Marley/Hendrix/Joplin, poetizado –Dylan/Morrison ou  de acordes beatlemaníacos refinados.

E aí , na trilha da hora e vez pátria, na sofisticação do samba bossa novista, no aquarelismo tropicalista do proibindo proibir  e no descompromisso lúdico do udigrudi roqueiro Jovem Guarda, chega o musical 60!Década de Arromba.

Que, no ofício autoral dúplice – Marcos Nauer(texto)Frederico Reder(direção), inventaria musicalmente, com autoridade cênica,uma era dourada entre estilhaços de chumbo. Com verdade qualitativa na escolha e na exploração potencial dos elementos técnicos e artísticos. 

De acerto nos aportes cenográficos retrôs/pectivos (Natália Lana) e na competência artesanal dos efeitos luminares(Daniela Sanchez) e videográficos(Thiago Stauffer).E, ainda, no esteticismo chamativo dos figurinos (Bruno Perlatto), na efusiva sincronicidade coreográfica (Victor Maia) e, especialmente, no requinte irrepreensível da direção musical( Tony Lucchesi).

Quanto ao elenco, o conjunto atrai pela organicidade representativa, pelo grau emotivo de sua entrega à fisicalidade gestual, pelo apuro vocal e maturidade de talento. Com destaques , entre tantos, para Erika Afonso, Cássia Raquel, Leandro Massaferi, Mateus Ribeiro e Marcelo Ferrari. Sem falar na carismática entrada de Wanderléa, revelando convicção de presença estelar e admirável folego setentão.

Em meio a tantos ingredientes para um bolo só, apenas um não lhe dá o necessário sabor. A extensão exagerada do espetáculo tornando mais perceptíveis as fragilidades na construção dramatúrgica, sem aparar seus excessos informativos, recortar mais os temas e editar melhor seu torrencial intervencionismo visual.

Mas, enfim, arrebentando com boas sacadas, abafando com brotos legais e papos firmes, gamando com suas canções,a receita faz o público degustar pilotando carangos, vibrando conclusivo, a uma só voz, 60! Década de Arromba é uma brasa, mora?...


                                            Wagner Corrêa de Araújo


60! DÉCADA DE ARROMBA -Doc. Musical está em cartaz no Teatro Net/Copacabana, quinta e sexta, às 21h;sábado, às 17h30m e às 21h30m; domingo, às 18h. 180 minutos. Até 19 de fevereiro.

ANTÍGONA : NA TRÁGICA TRILHA DE UMA SAGA FAMILIAR


FOTOS/GUGA MELGAR


É através da Trilogia Tebana, na potencial simbologia da teatralização do adverso destino da família tebana do Rei Édipo, que irá surgir um dos personagens femininos mais mitificados da cultura ocidental - Antígona.

Fruto geracional da tragicidade incestuosa do casal Édipo /Jocasta, ela desafia, pelo primado do afeto fraternal e da consciência  livre, a arbitrariedade do poder governamental investido na chancela divinal do Olimpo.

Na sua recusa de deixar insepulto o corpo do irmão Polinices, morto como o irmão Etéocles, no conflito entre ambos pela sucessão na Casa Real tebana, Antígona se contrapõe à proibição vingativa do tio Creonte( irmão de Jocasta).

Que  ao assumir, na vacância do trono, perdoara Etéocles dando-lhe uma tumba por simpatia à sua causa, mas quis fazer do cadáver de  Polinices  alimento de abutres.

Numa transcendental afirmação do feminino, é Antígona que, assim, nesta sua corajosa postura antipatriarcal , denuncia a onipotência do autoritarismo estatal em detrimento das leis da consciência individual.

Esta quebra da lei positiva propugna  a potencialidade do direito natural e faz a transmigração da dependência de origem deísta à libertação política e moral da civilização.

Ao imprimir uma nuance estética de contemporaneidade ao clássico de Sófocles, a concepção dramatúrgica a quatro mãos ( Andrea Beltrão/Amir Haddad) nada mais é do que a transubstanciação da autenticidade e da permanência universal dos valores de Antígona .

A concentração de um gestual (Marina Salomon) de fisicalidade emotiva e vocalização imanente, entre o naturalismo dialogal e passagens cênicas de expansividade quase grandiloquente, aproximam a performance de Andrea Beltrão do público.

Que, assim,  compartilha de seu didatismo lúdico ao explicar o significado de cada nome grego( familial ou mitológico) inscrito num mural cenográfico,  em incisiva entrega à representatividade de seu ofício.

Ora numa dialetação diarista ora na envolvência laminar com teatralizações da Trilogia Tebana, no sustentáculo de  ocasionais variações de um descontraído figurino(Antônio Medeiros/Guilherme Kato), das raras incidências sonoras(Alessandro Persan) e luzes vazadas mas de apelo climático (Aurélio de Simoni) .

A simplicidade eficaz da proposta cênica de Amir Haddad se de um lado, tributa a ancestralidade das narrativas orais , por outro reafirma, enfim,  no seu referencial de historicidade grega e de dimensionamento psicológico cotidiano , o reflexivo  louvor de Sófocles à humanidade :

Muitos milagres há mas o mais prodigioso é o homem”.


                                                     Wagner Corrêa de Araujo


ANTÍGONA está em cartaz no Teatro Poerinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21hs;domingo às 19h. 60 minutos. Até 19 de fevereiro.

FUERZA BRUTA : POR UM CÓSMICO TEATRO COREOGRÁFICO



Teatro, dança, circo, show, performance, cinema 360 graus. Um pouco de tudo isto cabe na proposta estética do grupo argentino Fuerza Bruta inspirada, pelo coreógrafo/diretor Diqui James, na nuance experimental  de sua precedente companhia De La Guarda.

Na trilha performática do pop/dance/rock do Blue Man Group , dos efeitos percussivos/coreográficos do  Stomp , do mix de linguagens circenses/teatrais do Cirque du Soleil e nas ousadias cênicas do La Fura dels Baus, Fuerza Bruta era o único deles  ainda sem o gosto do público carioca.

Mas se já tinham empolgado a pauliceia em 2015, com o espetáculo Wayra, prometem talvez ajudar,outra vez, a esquentar os tamborins e os ânimos na próxima comissão de frente da Grande Rio. E para isto já estão se nutrindo, potencialmente, das energias rítmicas do AfroReggae em sua atual temporada.

Aliás , são  literalmente explosivas as marcações do AfroReggae para o cadenciar inicial da sequência imagética da tensa acrobacia de corpos soltos no ar. Com suas imersões em provocadoras viagens pelos espaços siderais da "mens sana in corpore sano" de cada observador/participante.

Ainda no uso do palco italiano, uma espécie de maratonista corre numa esteira/estrada, sem princípio e sem fim,  guiado por refletores/faróis que não impedem que ele espatife muros de papelão à sua frente ,derrube bailarinos/marionetes até ser detonado por um tiro sanguinário  no peito.  Um referencial quase intuitivo da violência e  do pânico cotidiano de cada morador desta perigosa cidade maravilhosa.

Em pequenos tablados/palcos laterais, acontecem solos e conjuntos próximos a um perfil popping ao insuflarem ondas corporais , entre a espontânea síncope de braços e pernas e robóticos comandos, com cabos de aços,  que os atiram, acrobaticamente, no espaço como homens/anjos caídos do céu.

Mas o grande delírio  sensorial começa, mesmo, é com um enorme piscina translúcida espacial que, literalmente, vai descendo sobre o público  com as bailarinas/surfistas na água, como se incorporassem, mágica e ludicamente, o memorialismo fílmico  de Esther Williams.

Precedida por uma instantânea citação do glamour das visões  coreográficas, em tempo do cinema musical, de Busby Berkeley,em clima futurista de um showboating de dança aérea sobre uma cortina plástica , sob pulsantes variações luminares estroboscópicas(Edi Pampn).

Para Fuerza Bruta completar sua sofisticação técnica, é essencial a fisicalidade interativa de cada espectador. Num mergulho abissal de cara , coragem e entrega total, neste passeio cinestésico de emoções físico/visuais ao lado dos músicos/atores/bailarinos e de seus mentores artísticos(Diqui James /Gaby Kerpel).

Dançando seus acordes pop/techno/latinos ( Gaby Kerpel) , pulando em meio às ventanias de papel picado, molhando-se  nos chuviscos líquidos, compartilhando a energia gestual e sorrindo com cada um de seus artífices. Pois  se não for assim, pode estar certo que foi parar no lugar errado...

                                            Wagner Corrêa de Araujo



FUERZA BRUTA está em cartaz, no Metropolitan/Barra, quinta às 21h30m;sexta,às 22h30m;sábado, às 19h; domingo às 17h e às 20h. 70 minutos. Até 19 de fevereiro.

CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES : SOBRE DESTINOS FLUTUANTES


FOTOS/ LIGIA JARDIM

Não. O mestre do barco parou os motores e disse. Oh, uma ilha. O contramestre disse. De fato, é uma ilha. Ele disse: O que faremos? O contramestre disse: Vamos saltar. O mestre então contou um, dois três e deu um salto. No mesmo lugar...’’

Através da constatação risível  do personagem/guia Sargento Evilázio,o Barco(Roberto Borenstein) , a metafórica simbologia de vidas ao léu, indo e vindo, como ondas flutuantes, batendo em tudo e contra todos. Diante de uma passarela/cais, com sua estática embarcação, especular logradouro de ancestralidades geracionais.

Reféns de afundamentos e salvações, nas passagens dramatúrgicas entre uns e outros, mas num mesmo lugar, nas acontecências de um cenográfico ancoradouro e seus transeuntes de marítimas indumentárias( em dupla concepção de Chris Aizner) numa verídica Ilha Grande.

Numa teatralidade de  fragmentária cronologia marcada apenas pelas comemorações , adeuses e augúrios das passagens de ano novo. E inspirada pelas líricas trajetórias de vivos acordes musicais, nas instrumentalidades de Bruno Menegatti e Tadeu Mallaman, sob as luzes ambientalistas de Alessandra Domingues.

E é nesta impassibilidade de estarem seus personagens à deriva sempre, no cruzamento do inventário familiar de três gerações, que transcorre a trama, entre tons épicos e relatos orais, da peça “Cais ou Da Indiferença das Embarcações”.

Com sua memorialista escrita,entre a poesia  e o caos,  do júbilo à aridez dos embates de vidas e mortes, numa proposta de dúplice descortino autoral e diretorial  (Kiko Marques) . Que também, no ofício de intérprete,  junto à sua já prestigiosa A Velha Companhia, revela a solidez de um  teatro, de perceptível competência artesanal e eficaz dimensionamento psicológico.

Corajosa incursão dramatúrgica de três horas de duração para um jovem criador, sustentada pela maturação de seis anos para um primoroso resultado final.  E que, afinal, lhe tem valido inúmeras premiações, o aplauso crítico e a adesão entusiástica do público, desde sua première em 2012.

Incluindo-se os músicos, o elenco de catorze integrantes dá uma lição de organicidade na entrega às suas personificações, feita com sinceridade emotiva e verdade interior.

Tão irradiante no gestualismo elegante das presenças femininas como enérgica,  tanto nas irreverências como nas postulações introspectivas de cada ator.

Na impossibilidade de nomeações individuais,em espetáculo de expectativas por outra surpresa na performance seguinte, todos , enfim, sem artificialismos, conduzem seus personagens com espontânea e convicta envolvência sensorial.

E é, neste instintivo coloquialismo e na autenticidade de sua pulsão do cotidiano, que se estabelece um emotivo jogo teatral palco/plateia. De identificação reflexiva  com as chegadas e partidas, os começos e os fins,  nos cais destinados às viagens/vidas de cada um de nós.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES está em cartaz no Espaço Sesc/Copacabana, de quinta a domingo, às 19 h;sessão extra, sábado, às 15h30m. 180 minutos. Até 15 de janeiro.

TEATRO 2016: TRAJETÓRIAS DE RESGATE EM TEMPOS DE CRISE


CABEÇA  - UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO

Mesmo com a crise política e econômica chegando aos palcos, com corte de patrocínios e teatros fechando suas portas, escolhas dramatúrgicas conscientes conseguiram derrubar muros e estabelecer uma corajosa e brilhante temporada.

Diferencial dos anos precedentes,  com menos investidas nos musicais. Mas de incisivas experiências performáticas monologais , raras mas valorosas incursões na dramaturgia estrangeira e um  surpreendente alcance na problemática político/social da contemporaneidade .

O musical, até então com seu comprovado domínio na preferência do público, teve seu espaço reduzido nos palcos cariocas. Que, depois do surto de eficiente aproveitamento do manancial à moda Broadway, desgastou-se na experiência biográfica, dando, afinal, agora, um inusitado salto.

DESTAQUES DA TEMPORADA

A reinvenção do musical na gramática cênica de admirável riqueza plástica, poética e coreográfica do Auê, com o carisma da inventividade autoral do elenco e da direção de Duda Maia. E  na energia, na fluência narrativa e na visão aberta de Cabeça - Um Documentário Cênico em que Felipe Vidal, com uma nuance vanguardista e sem jamais perder a lucidez, faz uso da pulsão pop/roqueira incitando um instigante musical de questionamento político.

Em outro ângulo, o  texto confessional ,com dolorido lastro de interiorização memorialística, estabeleceu um paralelo entre os tributos afetivos de Matheus Nachtergale em “Processo de Conscerto do Desejo” e de Álamo Facó em Mamãe, na proposição poética e nos ecos da fisicalidade diante da trágica finitude maternal.

Numa dissecação via Artaud/Van Gogh da palavra crueldade contra tudo e contra todos pela liberdade da  condição humana, a performance quase teatro/dança, Entre Corvos, reúne em laminar contundência cênica, Marcelo Aquino(ator),Ary Coslov(direção) e Ana Vitória(movimento). 

Enquanto a ressonância do corpo/sangue/palavra estabelece um outro liame referencial Artaud<>Grace Passô em Vaga Carne, num dos mais irradiantes solilóquios físico/emotivos da nova dramaturgia.

OS CADERNOS DE KINDZU/FOTO DANIEL BARBOZA

Em outra eficaz síntese de uma linguagem solo, os irmãos Adriano(intérprete) e Fernando Guimarães(direção) postulam em, Hamlet-Processo de Revelação, um jogo cênico alternativo , teatro dentro do teatro, com impulsivo olhar crítico , a partir de um icônico personagem.

Inserindo-se ainda às comemorações quarto/centenárias de Shakespeare, uma versão de transcendente teor reflexivo sobre os meandros políticos do poder e submissão, junta , sob o comando de Roberto Alvim, Caco Ciocler e Carmo Della Vechia em Caesar-Como Construir um Império.

E é, ainda, Roberto Alvim que incentiva a potencial entrega de Juliana Galdino em Leite Derramado, incômodo na sua opção pela oralidade seca e direta do textual literário, instintivo na exploração do onírico e do pesadelo, veemente por seu contraponto crítico. Transcrição livro/palco que se faz presente, também, no expressivo e inovador tratamento dramatúrgico da linguagem literária  de Os Cadernos de Kindzu, mais um lance mallarmaico de dados do Amok Teatro.

Dando continuidade a esta proposta de acabamento artístico ,sob o signo de rigorosa maturidade profissional e com sotaque de perspicaz e irônica visão contestadora, O Escândalo Phillipe Dussaert desconstrói a valoração estética da arte contemporânea na envolvência da entrega solo de Marcos Caruso.E Guilherme Weber, na peça de Will Eno - Os Realistas , conduz primorosa interpelação afetiva dos relacionamentos humanos em suas indagações sobre a morte, num elenco  com protagonização ímpar de Débora Bloch.

Impressionam, também, as impactantes virtualidades plástico/reflexivas, entre sangue e vísceras, da insensatez da condição humana em Gritos, da Cia Dos a Deux .Além dos Nós, da criação autoral do Grupo Galpão e de Márcio Abreu, que sufocam as verbalizações das interioridades do eu cotidiano, estabelecendo pontes com o Brasil de hoje.

E, enfim, a concepção diretorial de Aderbal Freire Filho, em Céus(de Wajdi Mouhawad) e A Paz Perpétua (Juan Mayorga), dramatizando o   gosto amargo de desalento, decepção e pânico, de dias sintonizados na zona escura  dos terrorismos internacionais e das irracionalidades pátrias.

                                               Wagner Corrêa de Araujo

LEITE DERRAMADO/ FOTO EDSON KUMASAKA

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