LAR AMARGO LAR : DECOMPOSIÇÃO FAMILIAR EM DOSE DUPLA

ADORÁVEL GAROTO. Novembro de 2014. Foto / Daniel Chiacos.

A obra dramatúrgica do americano Nicky Silver é um retrato sem retoques do difícil ato de suporte da condição humana. Seus personagens estão deslocados nos labirintos da incomunicabilidade e da solidão e neles os quase impossíveis diálogos tem uma nuance de solilóquios, nos quais cada um expõe a sua ácida experiência interna.

Suas peças, marcadas pela árdua necessidade de cada personagem tentar dizer, com todas as letras, quem são, tem um sotaque de humor negro, com sabor de azedume, expresso até na estranheza da sua titulação como Homens Gordos de Saias, Criados em Cativeiro, Pterodátilos. E que é de ironia mesmo quando ostenta possíveis nomes poéticos como Os Altruístas e Adorável Garoto.

Aqui, nesta última, o “beautiful child", com o simbólico nome bíblico de Isaac (Michel Blois), tem seu destino sacrificado por um pai algoz - Henry (Leonardo Franco), ao revelar um polêmico comportamento sexual na volta à casa paterna, como um filho pródigo.

Em busca do abrigo familiar, encontra um amargo lar com uma mãe neurotizada - Nan (Isabel Cavalcanti), diante de um marido indiferente que se consola com a simplória amante Délia (Raquel Rocha).

Em meio a álcool e antidepressivos, agressividade e distúrbios, desvenda ainda a fria interferência da psicanalista Elizabeth Hilton (Mabel Cezar), incapaz de sanar as inseguranças emocionais de Isaac quando criança e que surge súbita na plateia, distanciada e perdida com seu inútil linguajar clínico.

A montagem, conduzida com maestria por uma estreante na direção - Maria Maya, tem seus méritos também na concepção cênica de Ronald Teixeira que captou, com perceptível habilidade visual, o clima de conflito e inquietude do texto.

Sendo marcada, ainda, pela dualidade de um belo cenário de interiores, ora expandindo-se na lateralidade da casa, ora destacado pela nebulosidade com reflexos solares, pela adequada iluminação de Adriana Ortiz.

Completando-se tudo com a presença de um elenco de convicta sustentabilidade, com uma perfeita incorporação de temperamentos múltiplos, na maturidade de atores como Leonardo Franco.

E onde prevalecem, especialmente, a aliciante composição dramática de Isabel Cavalcanti e a atormentada sensibilidade interpretativa de Michel Blois, diante de um quadro sem sentido e em decomposição no qual a vida não passa de uma sala de espetáculo, para apenas se entrar, olhar e sair..

O americano Nicky Silver faz parte deste particularizado grupo de autores de uma dramaturgia contemporânea incisiva e perturbadora, onde o riso irônico nunca é o melhor remédio mas o disfarce para os tapas na cara de cada espectador.

Silver consegue assumir, simultaneamente, o vazio existencial de Samuel Beckett, a podridão familiar de Edward Albee e a transgressão sexual de Joe Orton com uma incisiva apropriação crítica.

E são estes mordazes conflitos da condição humana que atravessam o clima sombrio e de humor ácido da recente versão de um texto seu em nossos palcos – Família Lyons.

A começar do próprio título da peça, numa galhofa utilização dos sobrenomes familiares como ridícula paródia das tradições nobiliárquicas. O que estes “lyoneses” representam senão a decadência, oculta por trás dos doentios laços sanguíneos  de uma família classe média judia suburbana.

Já nos primeiros diálogos percebe-se que a consanguineidade só vale aqui para tirar sangue um do outro. Quando o patriarca Ben (Rogério Froes) na terminalidade de um câncer, responde com palavrões à fútil preocupação da mulher Rita (Suzana Faini) em redecorar a sala de estar. “Eu gosto dela é assim”, diz Ben enquanto Rita replica “Mas eu não. Eu odeio e sempre odiei”.

A disfuncionalidade familiar vai sendo exposta com a disfarçada normalidade da filha alcoólatra Lisa (Zulma Mercadante) e dos fantasiosos dotes literários do irmão gay Curtis (Emílio Orcciolo Netto).

A hostilidade do corretor de imóveis Brian (Pedro Osório) diante das insinuações homoeróticas de Curtis e a frieza comportamental da enfermeira (Rose Lima) completam este tragicômico quadro de egos insuflados, que cortam tão fundo nossas entranhas quanto a virulência cancerígena.

A exacerbada condução de Marcos Caruso acentua, com raro brilho, a contundência da trama dramatúrgica. Nos diversos naipes desta orquestração cênica, a proeminência da performance de Suzana Faini, qual expressivo “leitmotiv”, estimula a entrega total de um elenco afinadíssimo.

A ambientação cenográfica de um minimalismo clean (Alexandre Murucci), com iluminação vazada (Felipe Lourenço) e propícios figurinos (Patricia Muniz), mais a coerente música incidental (Marcelo Alonso Neves), fazem, enfim, de “Família Lyons” uma sensível experiência estética ainda que deixe, como resultado final, um amargo gosto de fel.
                                       
                                              Wagner Corrêa de Araújo

FAMÍLIA LYONS. Junho de 2015. Foto / Paula Kossatz.

BOAS LEMBRANÇAS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA EM MOLDES CARIOCAS

RENATO VIEIRA CIA DE DANÇA - POEIRA E ÁGUA. Dezembro de 2014. Fotos / Bruno Veiga e Guilherme Licurgo.


“O artista é habitado pelos movimentos da vida de seu tempo, cuja imagem simbólica exprime”(Mary Wigman).

Esta emblemática frase da coreógrafa alemã, no apogeu de mágico trabalho à frente de sua escola na Dresden anos 20, é uma referência que pode ser aplicada à mais nova criação da Renato Vieira Companhia de Dança – “Poeira e Água”.

Partindo de conceitos estético/filosóficos que vão de Platão e Santo Agostinho ao signo chinês do tratado Hong-Fan, a inventiva coreografia em dúplice concepção (por Renato Vieira e Bruno Cezario) faz uma envolvente incursão na poética do homem e o tempo, em alegorias expressas através do corpo no espaço .

O acertado figurino em tons negros (com exceção das cores crepusculares no luminoso epílogo) e as sugestivas máscaras/capacetes são de Bruno Cezario, que também realizou uma inspirada montagem com Vivaldi através da obra Recomposição Contemporânea de Max Richter, num score com sotaque de música ambientalista.

E que, ainda, tem as precisas modulações claro/escuro das luzes (Binho Schaefer) que destacam sobremaneira a composição cênica da montagem.

O elenco (Bruno Cezario, Soraya Bastos, Fabiana Nunes, José Leandro, Tiago Oliveira) imprime o ritmo emocional preciso à proposta coreográfica na largueza dos gestos arrancados do chão para o alto, numa configuração plástica de arrebatada energia.

Entre cenas de conjunto, duos e solos, fica marcado um sincronismo de performances, onde há momentos de absoluta precisão num clima gesticular que, indo além das palavras, arrasta estes bailarinos, da ancestralidade como ícaros, a um voo contemporâneo de aves solares.

Há que se lembrar sempre a habitual seriedade desta Cia. na apropriação da linguagem contemporânea, onde uma sólida base acadêmica não permite concessões à mera gratuidade do instantâneo, fato de comprovada constatação em sua trajetória.

E que tem seu lavor artístico na rígida arquitetura do escultural coreográfico, promovendo, conceitualmente, em Poeira e Água, a conjugação entre o movimento corporal externo voltado para a realidade cósmica e a incitação às viagens interiores pelos espaços siderais da mente.


Quando o compositor francês Darius Milhaud, em sua passagem pelo Rio, deixou como um dos legados uma suíte de danças para piano, entre o tango e o samba -Saudades do Brasil (1920) - sua evocação de paisagens cariocas era carregada de lírico substrato de nostalgia.

Este não é, certamente,  o retrato da natureza em Cândido Portinari, com sua secura de corte de lâmina, não existindo também qualquer quietude no operário de Chico Buarque, atropelado na contramão e atrapalhando o trânsito.

E é destas ultimas imagens que Alex Neoral, à frente da Focus Cia de Dança, resgata a proposta estética de sua mais nova concepção coreográfica – Saudade de Mim.

Aqui, retirantes e operários esquecem suas carências materiais e amorosas nos botequins e folguedos populares, enquanto esquálidos corpos ganham sua única e definitiva morada sob sete palmos de terra.

Seus bailarinos expressam um mundo de sombras em gestual cotidiano carregado de significados internos. Ou celebram coletivamente a alegria da luz, em tempo de quadrilha e forrós.

Com emotivos duos e solos revelando, em dança com teatralidade, as experiências humanas, ora das misérias da seca e da fome, ora dos amores fraturados ou daqueles que partem sem possibilidade de volta.

Corpos contorcidos em movimentos inclinados trazem referencias das técnicas de respiração de Martha Graham, refletidas em rostos sofridos como máscaras teatrais, sempre de apurada construção cênica.

Onde os figurinos (André Vital) e a ambientação cenográfica (Márcio Jahu) são acertados medida por medida na configuração do universo pictórico de Portinari, sob os gradativos nuances - claros/escuros - da iluminação de Binho Schaefer.

Destaque ainda para o score musical (Felipe Habib), se equilibrando da pura sonoridade vocal da obra de Chico Buarque à envolvência de arranjos camerísticos, com sotaque contemporâneo.

Enfim, uma arquitetada interação coreográfica de movimentos, cores e sons, entre o realismo e a abstração que, dançando a vida e a morte, faz de Saudade de Mim um destes raros presentes da temporada coreográfica de 2014. 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

FOCUS CIA DE DANÇA - SAUDADE DE MIM. Novembro de 2014. Foto / Paula Kossatz.

FRIOS AMORES VIRTUAIS, ÁRIDOS AFETOS FAMILIAIS

UMA RELAÇÃO PORNOGRÁFICA. Outubro de 2014. Foto / Pedro Damásio.

Original de 2003, o texto teatral do belga - iraniano Philippe Blasband, Uma Relação Pornográfica, fez sucesso numa adaptação cinematográfica de Frédéric Fonteyne, com roteirização do próprio dramaturgo.

Enquanto no filme o encontro de dois desconhecidos, com finalidades puramente sexuais, acontecia a partir de anúncios de uma revista masculina, na atual versão teatral, numa contextualização com os tempos da internet, este contato é resultado de um site de relacionamentos.

Com sensitiva direção de Victor Garcia Peralta, a montagem faz uso do título apelativo, sob contextualização  sexual, para criar um original e criativo conflito a partir de uma concepção cenográfica recatada (Victor Peralta / Guilherme Leme), onde a primazia absoluta é da palavra, sem qualquer gestual que implique na exclusiva erotização dos comportamentos.

Começando pela sobriedade dos figurinos (criação dos próprios protagonistas) onde o casal porta trajes formais como se estivesse participando, numa quase proposital referência simbológica, de um cerimonial de casamento.

Completando-se a proposta minimalista com a plasticidade visual de apenas duas cadeiras ressaltadas por uma iluminação focal (Maneco Quinderé) capaz de sustentar, em propício clima emotivo, o tom confessional assumido pelos atores e que a trilha de Marcello H pontua com precioso acerto de acordes.

Nesta narrativa dramática, desenvolvida sempre na primeira pessoa, a experiência de um dúplice compartilhamento, ao sugestionar crua sexualidade, jamais revela a intenção de estabelecer uma sólida relação afetiva.

O texto é construído com um linguajar direto, sem quaisquer artifícios, mistérios ou duplos significados, atingindo por sua eficaz simplicidade o gosto do público, nesta sua interação com pessoas comuns, sem identidades especiais e presentes no cotidiano de cada um de nós.

Com personagens que, enfim e imediatamente, são identificadas com esta situação de relacionamentos solitários, mais sexuais que amorosos, advinda do frio universo tecnológico virtual, propiciando, isto sim, um carente e vazio sofá analítico.

E mostrando, ainda, com as sutis e emocionais interpretações de Ana Beatriz Nogueira e Guilherme Leme Garcia, a tentativa de suprir, a qualquer custo, as privações amorosas. No solitário embate da condição humana diante de um “mundo vasto mundo” onde, ao contrário da lição do Poeta maior, ficam menores os corações diante de um deserto sem fim...

Elo fundamental na teoria psicanalítica de Jacques Lacan, marcada pelo significado e pelo significante verbal e filosófico do Em Nome do Pai, este vir a ser da paternidade diante do núcleo familiar se desdobra, ali, entre o simbólico, o imaginário e o real.

Um pensar vazio e sem ecos - no que se refere à sua efetiva aplicação à própria e primeira família constituída deste intelectual mor na cultura da segunda metade do século XX.

Onde a sua partida do lar, súbita e sem volta, criando uma sensação de desafeto no abandono da mulher e de três filhos pequenos, acaba por afligir de forma contundente a caçula Sibylle.

Acentuando-se mais ainda, entre o ciúme e a mágoa, pela especial atenção que este pai célebre só logra conceder à filha única do segundo casamento - JudithUma dor que vai atravessar décadas até a morte auto provocada de Sibylle, aos setenta e três anos (2013), por excessiva ingestão de remédios.

E pouco mais de duas décadas após o dramático desabafo confessional no livro Um Pai (Puzzle), que inspira o titulo da peça homônima, com brilhante adaptação dramatúrgica do cineasta Evaldo Mocarzel .

Com sutil ambiência cenográfica (Marcelo Lipiani), quase soturna em suas tonalidades negras, no recatado clima de luz e sombras (Maneco Quinderé) e nos elegantes tons discricionários dos figurinos (Marcelo Olinto).

E destacando, sobretudo, por sua rara particularidade de alcançar uma transcendência ímpar, a seminal performance solo da atriz / personagem  Ana Beatriz Nogueira.

Estabelecendo, aqui, uma visceral interação reflexiva com a plateia, ainda que presa à aridez de um depoimento verista e sem concessões ao sentimentalismo, neste seu clamor de não querer ser apenas uma filha a mais de um pai distante.

A permanente linha inventiva da direção conjunta - Guilherme Leme Garcia/Vera Holtz, concentra os olhares no sensório gestual da protagonista e no equilibrado palpitar das palavras, entre a dor dos afetos negados e o grito de revolta.

Completando a superlativa estética do espetáculo, a música incidental (Andrea Zeni/Zélia Duncan) tece precisos fios sonoros de exteriorização das vozes secretas de Sibylle Lacan:

“Quando eu nasci, meu pai não estava mais conosco. Até poderia dizer que, quando fui concebida, ele já estava em outro lugar [...]. Sou o fruto do desespero. Alguns dirão que sou fruto do desejo, mas não creio nisso...”

                                          Wagner Corrêa de Araújo

UM PAI - PUZZLE. Fevereiro de 2015. Foto / Marcelo Corrêa.

RELEITURAS SHAKESPEARIANAS À LUZ DE CRÍTICA CONTEMPORANEIDADE

TIMON DE ATENAS. Outubro de 2014. Foto / Dalton Valério.


O personagem e o tema que conduzem ao enredo dramatúrgico de Shakespeare em Timon de Atenas vem de referencias clássicas da literatura e da filosofia greco-latina. A peça é uma das menos conhecidas e menos representadas do bardo inglês em seu formato clássico, sendo inclusive atribuída grande parte de sua autoria ao seu contemporâneo Thomas Middleton.

São estes fatores que fizeram deste Timon de Atenas um dos textos mais adaptados a outros contextos, em relevantes montagens contemporâneas que vão do teatro shakespeariano de Stratford-upon-Avon a Peter Brook. Sendo a mais recente em 2012, pelo London National Theatre, que serviu de esteio para a versão brasileira, com a concepção e comando de Bruce Gomlevsky.

Concentrando sua ação praticamente na conduta de um nobre cidadão ateniense do terceiro milênio respeitado, no seu staff e na comunidade urbana, por seu comportamento permanentemente aberto a benfeitorias, benesses e empréstimos financeiros. Tudo pelo dinheiro, sempre de um para todos.

E atendendo a esta frenética demanda de ascensão popular, só quando lhe faltam os recursos, em tempo de queda, é que se sente vitima solitária de interesseiros e bajuladores, subitamente desaparecidos no consequente estado de miséria e terror.

Com seu sotaque tragicômico, o texto traz uma amarga reflexão sobre a mediocridade da condição humana diante da finitude da grandeza de Timon (Vera Holtz), que é apenas materializada pela ótica do interesse pessoal e do egocentrismo.

Para acentuar a centralização do personagem protagonista, os outros atores são como coadjuvantes classificados em ordem de importância mais pela atividade profissional que exercem (poetas, filósofos, pintores, senadores, criados, cobradores, ladrões e prostitutas) que por sua nominação.

Tudo acompanhado da bela criação visual de Helio Eichbauer, com a incisiva trilha de Marcelo Alonso Neves, a climática luz (Elisa Tandela), mais o acerto dos figurinos (Rita Murtinho).

Além da boa surpresa das falas envolventes em performances como as de Tonico Pereira (o filósofo) e do contraponto feminino de Alice Borges (a criada), embora sem evitar um certo e quase incomodo conflito de épocas, no entremeio do texto original e da ambientação cenográfica.

Mas na medida das medidas, todos os olhos restam hipnotizados, isto sim, com a exacerbada presença cênica de Vera Holtz no papel titular, através de sua expressiva dualidade  interpretativa, entre o inicial e carismático lado magnata e, a posteriori, no cruel status de vítima potencial da ingratidão.

Diversos são os códigos teatrais adotados pela jovem e talentosa cia Os Trágicos em seu primeiro espetáculo profissional, depois de muitas travessias experimentais pelos espaços urbanos.

No entusiasmo de uma ideia de inicialização, ainda em tempos de formação acadêmica, na transposição do “pocket theater” do inglês Tom Stoppard – “Hamlet em 15 Minutos”.

Onde os cinco atores (Diogo Fujimura, Gabriel Canella, Mathias Wunder, Pedro Sarmento, Yuri Ribeiro), optaram por uma criação coletiva, com orientação textual e seguro comando cênico de Adriana Maia.

Surgindo, assim, Hamlet ou Morte! que, ao ultrapassar o sintético quarto de hora sugestionado pelo dramaturgo inglês de nossos dias, faz uso introdutório de um longo preambulo autoral, capaz de transmutar a proposta num espetáculo único com original fusão e dinâmica artesania teatral.

A trama dramatúrgica se desenvolvendo em duas dimensões, de um texto secundário a um texto principal. Partindo da prisão do grupo de vagabundos trapalhões, acusados de infringências sociais entre roubos e dolos, e que para escaparem de uma condenação capital buscam a salvação numa representação do Hamlet para a rainha.

Em concepção cenográfica minimalista com incidentais objetos e despojados figurinos (Adriano Ferreira), que funcionam bem como disfarces e travestimentos referenciais da época elisabetana.

Sem fugir de irônicos tons de uma certa atemporalidade a montagem mostra, ainda, um score musical de improvisos, ora num teclado ora à capella, via fanfarras labiais dos próprios atores.

Com suas peripécias cômicas e expressiva gestualidade num permanente clima de sátira, paródia e inteligente humor, o elenco alcança, em sua perceptível espontaneidade criativa, o equilíbrio ideal entre o caráter meramente lúdico e a entrega artística.

Neste embate virtuosístico, em que cada um deles revela uma personalista e singular performance no ato de assumir duplos personagens, surpreende o jogo do teatro dentro do teatro, tornando de intensa  interatividade o diálogo com cada espectador.

Capaz de impulsionar, nesta fusão cena e plateia, uma risível adesão a uma “trágica comédia” e conduzindo, afinal, ao pensar reflexivo do próprio Shakespeare de que “o mundo todo é um palco e todos os homens e mulheres não passam de atores”.


                                            Wagner Corrêa de Araújo


HAMLET OU MORTE! Julho de 2015. Foto / J. Sucupira.

ENTRE ERROS E ACERTOS, DUAS INCURSÕES DO MUSICAL À BRASILEIRA

ÓPERA DO MALANDRO. Outubro de 2014. Foto / Leo Aversa.

Na trajetória que inspirou o mais celebrado musical de Chico Buarque de Holanda, há uma referência ao século XVIII com a "The Beggars Opera" (1728), do inglês John Gay, com sua radical substituição do cenário clássico da grande ópera pelos conflitos da classe burguesa, aqui com um viés conceitual do universo da pobreza e dos mendigos.

Isto por sua vez, remete à transposição do tema na criação da "Ópera dos Três Vinténs", de Bertold Brecht/Kurt Weill(1928), indo mais longe ainda no seu alcance dos circuitos londrinos miseráveis, numa politica e impactante concepção estética da Berlim anos vinte.

Com notável teor crítico, Chico Buarque mimetiza a temática antecedente num décor absolutamente brasileiro, substituindo miseráveis e ladrões por malandros e contrabandistas da Lapa carioca, em sua Ópera do Malandro, numa visão metafórica do sistema ditatorial brasileiro, de Getúlio Vargas aos “presidentes” militares.

Que se tornou, assim, um marco do gênero musical em nossos palcos substituindo a faceta lírica/operística da qual nem o próprio Gershwin conseguiu escapar com sua quase jazzística “Porgy and Bess”. Chico Buarque, aqui, optando pela dispensa do arcabouço sinfônico/lírico vocal, dá uma lição de inventividade à base, exclusiva e sem concessões, da mais pura musicalidade popular brasileira.

Dando sequencia a versões consagradas do musical desde sua estreia em 1978, da montagem primeira por Luiz Antônio Martinez Corrêa, à memorável transposição da dupla Moeller/Botelho, sem deixar de rememorar o legado cinematográfico por Ruy Guerra, a Ópera do Malandro está mais uma vez  de volta, agora  sob o comando concepcional de João Falcão.

Procurando acentuar, sobremaneira, em sua polêmica releitura, o distanciamento brechtiano. Para, assim,  provocar na plateia uma catarse política direcionada à  contemporaneidade e armada num olhar mais reflexivo.

Isto acontecendo com a quebra de sequencia da trama dramatúrgica original, usando artifícios cênicos como a ausência da identificação realista/sexual dos personagens clássicos, todos eles transubstanciados em exclusiva performance masculina, com exceção do narrador João Alegre que é representado por uma atriz (Larissa Luz).

Mas a ação resultou contrária e a proposta teve seu deslize num clima de conflituada desconcentração, onde o élan poético do texto original das canções destoou da caracterização cênica. E não conseguiu atingir o que seria o pretendido alcance crítico no travestismo dublê da trama narrativa, entre a sexualização e a malandragem.

O que não desqualifica o mérito geral da montagem, com exuberante direção musical (Beto Lemos) acertados figurinos (Kika Lopes) e algumas exemplares atuações como Fábio Enriquez (Teresinha), Eduardo Landim (Geni), Adren Alves (Vitória) e Léo Bahia (Lúcia). Com brilho mais esporádico do elenco restante, incluído um ainda inseguro protagonista Moyseis Marques (Max Overseas), conhecido sambista da noite em sua estreia cênica como ator.

De qualquer maneira, mesmo assim entre erros e acertos, um espetáculo que valeria ser conferido pela sua tributária proposta de inicialização das comemorações dos setenta anos de vida e arte deste carismático criador mor Chico Buarque de Holanda.


SIM! EU ACEITO! Fevereiro de 2015. Foto / Guga Melgar.

Adaptado de uma peça de 1951 - The Fourposter, de Jean de Hartog, que por sua vez inspirou o filme “Leito Nupcial”, de Irving Reis, no ano seguinte (com Rex Harrison e Lilli Palmer), só chegou à Broadway, como musical, em 1966, com o titulo de I Do! I Do!  Sim! Eu Aceito!, na versão de Flávio Marinho.

Com a direção de Gower Champion, tendo o casal Robert Preston e Mary Martin, tornou-se um dos clássicos da comédia musical, especialmente por sua, então inovadora, proposta em torno de apenas dois protagonistas e uma cama nupcial, atravessando meio século de uma mesma relação matrimonial.

Ambientado no final do século XIX, termina em 1945, quando o casal deixa finalmente a casa onde começou esta longa jornada noite adentro, entremeada com as surpresas da felicidade e das decepções, dos ciúmes e das supostas traições, do envelhecimento, da reconciliação e da partida definitiva dos filhos.

O enredo dramatúrgico esbarra na previsibilidade da sua trajetória cronológica de cenas de um casamento monogâmico. Mas, tem seu encanto, literariamente metaforizado, na poesia do amor e na prosa do casamento, pela difícil reconstrução de um cotidiano que desaba, muitas vezes, nas crises da monotonia.

Nas letras das canções originais de Tom Jones, com a música de Harvey Schmidt, há referencias jocosas sobre os conflitos emocionais da passagem do tempo – Eu Amo Minha Mulher; A Lua de Mel Acabou; O Amor Não é Tudo; Ninguém é Perfeito; Quando os Filhos Casam; Onde Estão os Flocos de Neve?...

A concepção cenográfica desta primeira montagem brasileira do musical americano, titulada "Sim! Eu Aceito!", destaca o bom gosto dos figurinos na sua caracterização do fluir dos anos e na simbológica presença central de um leito à moda antiga (Clívia Cohen), sob recatados efeitos de uma luz entre sombras (Marco Cardi).

Parte significativa do sequenciamento na sustentação sonora da narrativa (Liliane Secco), perde-se ainda no minimalismo do arranjo para dois pianos (Priscilla Azevedo/Marcelo Farias), priorizando um sotaque camerístico, num espetáculo musical já restrito a dois atores.

Com convicto equilíbrio do elenco na performance dos personagens, há momentos de maior arrebatamento, ora na fluência vocal de Agnes (Sylvia Massari), ora na tessitura tragicômica de Michael (Diogo Vilela).

Dentro do convencionalismo nostálgico de um musical do passado, a direção de Cláudio Figueira consegue delimitar bem estes parâmetros artísticos ao gosto contemporâneo. E, assim, conduzir a plateia, a uma irônica e risível reflexão sobre os deleites e tormentos contidos no pequeno circuito atemporal de um leito de núpcias.

                                                
                                            Wagner Corrêa de Araújo




PALAVRAS AO VENTO : DELIRANTES VOOS DRAMATÚRGICOS

INFÂNCIA, TIROS E PLUMAS. MAIO DE 2015. Foto/ Divulgação Cabéra .

No já bibliográfico teatro autoral de Jô Bilac - Infância, Tiros e Plumas - ocupa o 21º lugar. Que se torna, depois de uma constância de êxitos no percurso da nova dramaturgia brasileira, o primeiro desacerto de sua construção textual, embora o tema seja oportuno e inspirador.

Com sua proposta de humor negro mostra o resultado do contraditório universo social em que é moldada a formação da criança, no âmbito familiar ou na escola, além dos traiçoeiros apelos atrativos da mídia contemporânea, especialmente a internet e os videogames, com a lúdica aposta na destruição e na morte.

Infância fragilizada diante de um cenário de violência e corrupção, desigualdade e pobreza, de vazio moral e de falta de esperança no futuro. Cruel realidade fantasiosamente disfarçada através da “obrigatória” viagem de pais e filhos, de boa classe e recursos, ao idealizado sonho da Disney World.

No voo, dois meninos Juanito (Jefferson Schroeder) e Júnior (Luis Antonio Fortes), este ao lado de pais em crise conjugal (Debora Lamm e Leonardo Brício), além da pequena Suzaninha (Carolina Pismel), acompanhada de um segurança (Iano Salomão). Em convívio com uma tripulação emocionalmente conflituada, da aeromoça (Juliane Bodini) aos dois comissários/traficantes (Júnior Dantas/Zé Wendell).

Nove personagens capazes de detonar, a partir da falsa aparência comportamental do início, trepidações aéreas emocionais de paixão e ódio, frieza e violentação moral, sem distinção entre adultos e crianças, estas também afetadas pelas banalidades da sociedade de consumo.

Mas a espera de uma possível perspectiva não se concretiza plenamente no superficial aprofundamento desta tragicômica trajetória da intolerância e de particularização caricatural da condição humana.

Entre idas e vindas, altos e baixos, nas defesas em bloco e ataques em particular dos personagens, o grande mérito fica é com a superlativa direção de Inez Viana. Que não poupa esforços para validar cenicamente uma trama narrativa de sequencial decomposição. 

E, assim seu rigoroso comando alcança a coesão entusiasta de um aplicado elenco, com uma radiante performance de Débora Lamm e a envolvência de Carolina Pismel.

Além do inventivo dimensionamento cenográfico (Mina Quental), a boa adequação das luzes (Renato Machado e Ana Luiza de Simoni) sustenta o ajuste do figurino (Flávio Souza) e o propício score sonoro (Marcelo Alonso Neves), ressaltando um gestual com sutis nuances de teatro/dança (Dani Amorim).

Enfim, em mágico milagre teatral, os vícios de um texto transformados em virtude estética pela fértil habilidade imaginativa de uma comandante de primeira classe dos aéreos palcos cariocas.

Gerald Thomas vem se destacando, no entremeio de aplausos e polemicas, em direções teatrais com acentuado teor crítico e de uma particularíssima visão pessoal. Ora em textos metalinguísticos de sua própria lavra, ora conectando, num mix metafórico, as influências da escrita beckettiana aos signos da civilização tecnocrática contemporânea.

Em sua mais recente concepção dramatúrgica – Entredentes – parte de um aforismo que, por si só, é capaz de conduzir a uma acirrada guerra de conceitos filosóficos, ideológicos, morais, sociais e políticos quando apresenta a peça com o mote : “Muros servem para dividir, mas servem para unir, quando caem”.

Palavras que, em sua abrangência do caótico e conflituoso retrato hodierno do planeta terra, criam uma saudável expectativa na percepção participativa de qualquer espectador pensante.

Quando dois astronautas elegem como ponto de pouso o Muro das Lamentações, fissurado como uma genitália feminina em sua representação cenográfica (Gerald Thomas e Lu Bueno), extensiva à indumentária de sugestionamento orientalista, em meio a uma climática iluminação (G.Thomas) de vazados efeitos visuais, vislumbra-se, inicialmente, um espetáculo que certamente vai conduzir a uma discussão dialética.

Depreende-se logo que estes passageiros espaciais são um judeu (Ney Latorraca) e um muçulmano (Edi Botelho) que partem para uma desafiante dialetação, entrecortada por monólogos.

Com uma torrente de referencias da crise politica mundial entremeada com reflexões aleatórias de criticas à brasilidade, sob as intervenções do terceiro personagem, em exacerbada performance da atriz portuguesa Maria de Lima em nervosa gestualização (Daniella Visco). 

Mas, em menos de meia hora de espetáculo, instala-se um caos conceitual que, em sua falta de nexo, na sua gratuidade e no seu tônus apelativo, não leva a absolutamente nada, quando não é capaz de mobilizar qualquer coração ou mente, não conduzindo, enfim, a nenhuma leitura da plateia.

E deste naufrágio, onde não vem a tona nem mesmo a esperada desconstrução do discurso dramatúrgico, sobra apenas a presença magnética de um autêntico mistificador mor (Ney Latorraca) da estética cênica. 

                                        Wagner Corrêa de Araújo

ENTREDENTES. NOVEMBRO 2014. Foto /Alison Louback.


BRAVÍSSIMOS RESGATES COREOGRÁFICOS PARA TEMPOS PANDÊMICOS

STANDBY. NEDERLANDS DANSE THEATER. Foto / Pieter Offringa.


Como manter acesa a chama na peculiaridade das artes cênicas sem o elemento presencial palco-plateia que arrasta em processo ritualístico, no entremeio da expressão estética e do élan emotivo, atores, bailarinos, músicos e espectadores? Como atuar em área, agora potencialmente tornada de risco por suas perigosas proximidades corpóreas, na instantaneidade de contágio exterminador no ar?

Perguntas sem respostas imediatas mas que em fértil e emergente busca investigativa no métier artístico tem, por vezes, encontrado bravas saídas em meio a outras tantas, quase sempre reiterativas na expressão alegórica do isolamento social e do distanciamento físico.

Como o incrível caso da infalível  fábrica de ótimos produtos coreográficos nas seis décadas de atuação da NDT - Nederlands Danse Theater, de onde surgiram e por onde passaram alguns dos significativos nomes que concorreram radicalmente para o mais inventivo e avançado ideário de dança moderna e contemporânea.

Desde seus primeiros anos contando com Rudi van Dantzig, Hans von Manen, Glen Tetley, Jiri Kylian, com passagens por ali, de nomes básicos como William ForsytheMats Ek, Ohad Naharin e Crystal Pite. Além, é claro, de um casal  parte da história da própria cia holandesa – a catalã Sol León e o inglês Paul Lightfoot que, completando cerca de 35 anos na NDT, viu interrompida pelo surto pandêmico a sua própria festa de despedida definitiva da Cia.

Mas que não deixando por menos, reunindo elementos da NDT-1 e da NDT-2, ensaiaram e disponibilizaram, a partir de julho, pelos meios virtuais, a dúplice proposta com as imperdíveis coreografias Standby, de Paul Lightfoot, e She Remembers, de Sol León.

Em Standby, numa simbológica titularidade que remete a um tempo de espera, fazendo uma requintada e ao mesmo tempo provocativa releitura, à luz da contemporaneidade, do vocabulário clássico. A partir da livre inspiração na coreografia Études, do dinamarquês Harald Lander, uma espécie de guia composicional para treinamento cotidiano da técnica clássica. 

Nesta primeira obra dando energizada aula gestual com impressionante apuro e precisão de uma movimentação corpórea de bailarinos, quase nunca se tocando fisicamente sob marcas limitativas solares, numa despojada caixa cênica ressaltada por efeitos luminares.

Já em She Remembers, Sol León faz uma metafórica alusão personalista a um momento de despedida e de lembranças de cinco solistas prestes a deixarem a NDT à procura de novos rumos para as suas vidas. Com extratos de obras de Haendel e Max Richter e a envolvência de um sotaque dança-teatro com largo uso de efeitos cinemáticos e sutil referencial imagético expressionista.

Mas enquanto a NDT, à sua maneira, resiste, à onda avassaladora do vírus, conseguindo escapar com raro brio à brusca interrupção de seu projeto coreográfico, os brasileiros se fazem representar através de uma luta insana agravada com o corte de patrocínios e a insensatez de um governo que, antes de tudo, despreza a cultura.

Mesmo assim, há que se ressaltar duas qualitativas criações que, a duras penas, conseguem dar um grito de apelo e de alerta pela sobrevivência do oficio coreográfico no caos politico e sanitário.  Estamos falando de uma apresentação autoral-solista de Denise Stutz e de uma performance individual simultânea para sete bailarinos idealizada em processo coletivo junto com Alex Neoral à frente da sua Focus Cia de Dança.

3 SOLOS EM 1 TEMPO. DENISE STUTZ. Foto/Sesc Divulgação.

Em 3 Solos em 1 Tempo, Denise Stutz numa tripartida síntese de antigas criações, faz um sensitivo acerto de contas crítico com sua trajetória de artista e mulher. Em espaço neutro que não remete nem a um palco nem a uma esfera claramente de habitat, lembrando mais, talvez, um pequeno estúdio.

Onde ela promove uma interativa incursão performática do teatro à dança, entre palavras memoralísticas intermediadas com simplificados movimentos do mais puro gestualismo, conectados aos devaneantes acordes pianísticos do Debussy de Clair de Lune. Dando, sobremaneira, um visceral mas também reflexivo testemunho, didático e poético, de sua vida de bailarina, atriz e coreógrafa.

Enquanto Corações em Espera, da Focus Cia de Dança, traz implícito um significativo enunciado da incerteza na expectativa do questionador momento que vive a criação artística brasileira. Devastada pela indiferença de uma governança sob o signo do retrocesso e de todas as formas de preconceito e obscurantismo que vão muito além da cultura.

Aqui os sete bailarinos em atuações solo (Carolina de Sá, Cosme Gregory, José Villaça, Márcio Jahú, Marina Teixeira, Monise Marques e Roberta Bussoni) interagem diretamente de suas ambiências residenciais em diferentes cidades.  Com absoluta funcionalidade na execução de streaming (José Villaça), adequada indumentária cotidiana (Roberta Bussoni) e antológico score sonoro (Alex Neoral), indo de Eric Satie a Orestes Barbosa, incluindo de harmonias orientais a sonoridades pop/rock/eletro-acústicas.

Em preciso intercâmbio de similaridades gestuais e coincidente paisagismo cênico, na plasticidade conferida aleatoriamente a simples elementos de décors domiciliares que configuram uma complexa pulsão de linguagens artísticas.

Mostrando na integralização estética da proposta um recado de esperança, icônico desejo amoroso de isolados Corações em Espera pela ansiada reconciliação social com o exercício coreográfico no compasso do espetáculo ao vivo.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


CORAÇÕES EM ESPERA. FOCUS CIA DE DANÇA. Foto / Marian Starosta.

DENÚNCIA E TRANSGRESSÃO : QUANDO A VERDADE PREVALECE SOBRE O SILÊNCIO

A PROSTITUTA RESPEITOSA. Dezembro 2014. Foto / Eduardo Moraes.


Filósofo, dramaturgo, romancista, Jean Paul Sartre escreveu A Prostituta Respeitosa no pós guerra (1946) abordando, em compasso de denúncia, o racismo no sul dos Estados Unidos, nos embates entre a protagonista Lizzie e os acusadores, amantes e vítimas, fazendo uma incisiva metáfora, carrascos/colaboracionistas, da resistência francesa diante da ocupação nazista.

A prostituta Lizzie (Anita Terrana) sabe que o culpado de um crime é um branco e não um homem negro (Claúdio Bastos) que ela no início acolhe, sendo tomada pela dúvida, a seguir, diante de possíveis vantagens que possa auferir de seu relacionamento com o novo e jovem cliente (Thiago Detofol) filho de um político e senador (Sérgio Fonta).

A peça conserva no elenco os atores Anita Terrana e Sérgio Fonta, da montagem anterior dirigida por Sílvio Guindane, mas a concepção cênica é bem diferente na segunda versão, sob o comando concepcional de Marco Aurélio Hammelin.

Com plástica reconstituição cenográfica em tons realísticos e cotidiana indumentária (Marcelo Marques) sustentadas na ambiência decadentista de uma suíte sexual, a peça mostra uma superior maturidade do elenco nesta sua segunda temporada.

Thiago Detofol revela maior segurança no alcance do personagem em relação à primeira encenação, enquanto Anita Terrana expõe novas nuances interpretativas e evolutivo equilíbrio gestual como a prostituta, diante das mais recatadas atuações de Claudio Bastos e Frederico Baptista.

Quanto a Sérgio Fonta, este continua exibindo seu excepcional naturalismo na convicta performance do senador Clark, mantendo um destaque primordial nas duas versões do clássico texto de Sartre.

Rever Sartre, neste momento, é referencial e reflexivo, diante da necessidade de não compactuar com os absurdos da realidade política brasileira, onde a vantagem é sempre superior à ética.

E, afinal, não deixando também de ser um ato libertário, pois nas lúcidas palavras sartrianas, o que ‘’o teatro pode mostrar de mais emocionante é o caráter no ato de formar-se, o momento da escolha, da livre decisão que empenha uma moral e toda uma vida”.

                           
O FUNERAL. Dezembro de 2014. Foto / Tatiana Farache

Integrante e um dos idealizadores do movimento cinematográfico Dogma 65, o dinamarquês Thomas Vinterberg polemizou com seu filme Festen (1998), aqui sob a titularidade de Festa de Família, pela crueza de sua visão punk, por trás das portas da tradição, dos laços parentescos e da propriedade patrimonial.

Adaptado aos palcos por David Eldridge, teve sua primeira versão brasileira (2009), por Bruce Gomlevsky, agora, por ele retomada com uma dúplice proposta dramatúrgica, incluindo outro texto do mesmo Vinterberg O Funeral.

No primeiro módulo, com a comemoração dos 60 anos do patriarca Helge (Jaime Leibovich), quando se reúnem sua mulher Else (Xuxa Lopes), os filhos Christian (Bruce Gomlevsky), Helene (Luiza Maldonado) e Michel (Gustavo Damasceno), além da mulher e da filha deste último.

E é no desenrolar de um banquete que Christian devassa um segredo escabroso, capaz de desnudar todos os preconceitos, as hipocrisias e a progressiva decadência de uma até então “respeitável família”. Daí em diante sucedendo-se, num clima perturbador, referencias a racismo, pedofilia, ciúmes, traições e suicídio.

O patético desfile de casos de família se acentua no verismo sem  qualquer disfarce do segundo módulo – O Funeral, quando no velório do patriarca Helge, dez anos depois, vem a tona um fato mais bizarro ainda, envolvendo desta vez o primeiro acusador (Christian) abusando do sobrinho, apenas uma inocente criança (Raul Guaraná).

A cenografia tem uma estética crua (Bel Lobo), com ambientais efeitos de luz (Maneco Quinderé e Elisa Tandeta), adequados figurinos atemporais (Ticiana Passos) e eficaz score musical (Marcelo Alonso Neves). Tudo acentuando verticalmente uma árida temática dark conduzida, aqui, com absoluta maestria por Bruce Gomlevsky.

Que, por outro lado, conta com atuações viscerais de um elenco de craques capaz, em suma, de manter uma tensão emocional que contagia, inebria, incomoda, provoca e faz refletir atingindo, com sua voltagem permanente e afiada de corte laminar, a apatia do mais plácido dos espectadores.

                                                Wagner Corrêa de Araújo

O BANQUETE. Dezembro de 2014. Foto / Tatiana Farache.

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