A obra dramatúrgica do americano Nicky Silver é um retrato sem retoques do difícil ato de suporte
da condição humana. Seus personagens estão deslocados nos labirintos da incomunicabilidade
e da solidão e neles os quase impossíveis diálogos tem uma nuance de
solilóquios, nos quais cada um expõe a sua ácida experiência interna.
Suas peças, marcadas pela árdua necessidade de cada
personagem tentar dizer, com todas as letras, quem são, tem um sotaque de humor
negro, com sabor de azedume, expresso até na estranheza da sua titulação como Homens Gordos de Saias, Criados em Cativeiro, Pterodátilos. E que é de ironia mesmo
quando ostenta possíveis nomes poéticos como Os Altruístas e Adorável
Garoto.
Aqui, nesta última, o “beautiful child", com o simbólico nome bíblico de Isaac (Michel Blois), tem seu destino
sacrificado por um pai algoz - Henry
(Leonardo Franco), ao revelar um polêmico comportamento sexual na volta à casa
paterna, como um filho pródigo.
Em busca do abrigo familiar, encontra um amargo lar com uma
mãe neurotizada - Nan (Isabel
Cavalcanti), diante de um marido indiferente que se consola com a simplória
amante Délia (Raquel Rocha).
Em meio a álcool e antidepressivos, agressividade e
distúrbios, desvenda ainda a fria interferência da psicanalista Elizabeth Hilton (Mabel Cezar), incapaz
de sanar as inseguranças emocionais de Isaac
quando criança e que surge súbita na plateia, distanciada e perdida com seu
inútil linguajar clínico.
A montagem, conduzida com maestria por uma estreante na
direção - Maria Maya, tem seus méritos também na concepção cênica de Ronald Teixeira
que captou, com perceptível habilidade visual, o clima de conflito e inquietude
do texto.
Sendo marcada, ainda, pela dualidade de um belo cenário de
interiores, ora expandindo-se na lateralidade da casa, ora destacado pela
nebulosidade com reflexos solares, pela adequada iluminação de Adriana Ortiz.
Completando-se tudo com a presença de um elenco de convicta sustentabilidade, com uma perfeita incorporação de temperamentos
múltiplos, na maturidade de atores como Leonardo Franco.
E onde prevalecem, especialmente, a aliciante composição
dramática de Isabel Cavalcanti e a atormentada sensibilidade interpretativa de
Michel Blois, diante de um quadro sem sentido e em decomposição no qual a vida não passa de uma sala de espetáculo, para apenas se entrar, olhar e sair..
O americano Nicky
Silver faz parte deste particularizado grupo de autores de uma dramaturgia
contemporânea incisiva e perturbadora, onde o riso irônico nunca é o melhor
remédio mas o disfarce para os tapas na cara de cada espectador.
Silver consegue assumir, simultaneamente, o vazio existencial
de Samuel Beckett, a podridão familiar de Edward
Albee e a transgressão sexual de Joe
Orton com uma incisiva apropriação crítica.
E são estes mordazes conflitos da condição humana que atravessam
o clima sombrio e de humor ácido da recente versão de um texto seu em
nossos palcos – Família Lyons.
A começar do próprio título da peça, numa galhofa utilização
dos sobrenomes familiares como ridícula paródia das tradições nobiliárquicas. O
que estes “lyoneses” representam
senão a decadência, oculta por trás dos doentios laços sanguíneos de uma família classe média judia suburbana.
Já nos primeiros diálogos percebe-se que a consanguineidade
só vale aqui para tirar sangue um do outro. Quando o patriarca Ben (Rogério Froes) na terminalidade de
um câncer, responde com palavrões à fútil preocupação da mulher Rita (Suzana Faini) em redecorar a sala
de estar. “Eu gosto dela é assim”,
diz Ben enquanto Rita replica “Mas eu não. Eu
odeio e sempre odiei”.
A disfuncionalidade familiar vai sendo exposta com a
disfarçada normalidade da filha alcoólatra Lisa
(Zulma Mercadante) e dos fantasiosos dotes literários do irmão gay Curtis (Emílio Orcciolo Netto).
A hostilidade do corretor de imóveis Brian (Pedro Osório) diante das insinuações homoeróticas de Curtis e a frieza comportamental da
enfermeira (Rose Lima) completam este tragicômico quadro de egos insuflados,
que cortam tão fundo nossas entranhas quanto a virulência cancerígena.
A exacerbada condução de Marcos Caruso acentua, com raro
brilho, a contundência da trama dramatúrgica. Nos diversos naipes desta
orquestração cênica, a proeminência da performance de Suzana Faini, qual
expressivo “leitmotiv”, estimula a
entrega total de um elenco afinadíssimo.
A ambientação cenográfica de um minimalismo clean (Alexandre Murucci), com iluminação vazada
(Felipe Lourenço) e propícios figurinos (Patricia Muniz), mais a coerente música
incidental (Marcelo Alonso Neves), fazem, enfim, de “Família Lyons” uma sensível experiência estética ainda que deixe,
como resultado final, um amargo gosto de fel.