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Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia. Yara de Novaes/Direção. Com Andrea Beltrão. Janeiro/2024. Fotos/Nana Moraes/Felipe Ovelha. |
Um tributo cênico aos perseguidos, aos desaparecidos ou aos mortos sem sepultura num compasso
sartreano, sob uma das mais tormentosas eras da história política brasileira. Como
uma lembrança reflexiva à resistência entre o ontem e o hoje, no entorno da
passagem dos sessenta anos de um infame período de turbação da liberdade e dos
direitos humanos.
Este poderia ser, em síntese, o emblemático sentido do
espetáculo Lady Tempestade, concebido
na conexão de significativas vozes
femininas do universo teatral brasileiro, numa
tríplice integralidade visceral, indo da textualidade dramatúrgica de Sílvia Gomez à
atuação performática de Andrea Beltrão, com direção concepcional de Yara de
Novaes.
Num ideário luminoso unindo ficcionalização cênica e verismo
documentário, a partir dos escritos confessionais de uma memorável advogada
pernambucana (Mércia Albuquerque - 1934/2003). Mulher que empenhou toda sua trajetória
existencial e jurídica como uma combativa defensora dos perseguidos pela
ditadura de 1964, logo após testemunhar a degradante condução pelas ruas de
Recife do ensanguentado militante Gregório Bezerra.
Ainda que esta também sofresse com as mesmas penas da repressão militar que acabariam levando-a a ser presa, tal qual como uma terrorista por doze vezes, em processo identitário ao das vítimas que defendia. Corpo, sangue e alma, numa absoluta entrega ao idealismo de uma missão pelo resgate humanitário de vidas, sem quaisquer intuitos de compensação financeira.
Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia. Yara de Novaes/Direção. Com Andrea Beltrão. Janeiro/ 2024. Fotos Nana Moraes/Felipe Ovelha. |
Tudo sendo dimensionado esteticamente na eficácia de uma narrativa dramática/documental (Sílvia Gomez) e no pulso de um comando cênico (Yara de Novaes) instaurando o conluio de um texto manifesto formatado em solilóquio. Onde Andrea Beltrão ora é uma personagem feminina apenas leitora solidária dos diários de Mércia Albuquerque, ora é transmutada pela palavra teatral por intermédio de traumáticos relatos memorialistas.
Transmitindo em convicta passionalidade interpretativa os árduos caminhos de luta em prol dos prisioneiros ou dos desaparecidos, ouvindo inclusive os apelos de seus familiares, em época da imposição militar da obrigatoriedade do silêncio ou do calar-se definitivamente, sob ameaças de atrocidades fatalistas.
No despojamento de um figurino cotidiano (Marie Salles) e de uma minimalista caixa cênica (Dina Salem Levy) preenchida apenas por um sofá, um microfone de pedestal e uma mesa de manipulação da trilha sonora criada por Chico BF, filho da atriz. Este, ali, com um referencial metafórico das mães aflitas sobre o destino desconhecido de seus descendentes perdidos nos subterrâneos da opressão.
Num incisivo recado sinalizado na atemporalidade da
advertência pelo que aconteceu no passado, com um olhar armado no futuro diante
do desafio de que tudo poderia acontecer de novo, exemplificado no referencial
da tentativa recente do iminente risco de um golpe que repetiria a sexagenária saga
de desmandos ditatoriais.
Ecoando, sempre, desde a auto definição que leva ao título da peça (“minha mãe é bonança, eu não, sou tempestade”) em andamento reiterativo de um leitmotiv verbal, no questionamento de um mistério estigmatizado através da instigante frase :
"Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”...
Wagner Corrêa de Araújo
Lady Tempestade está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, de
quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 04 de fevereiro.