Sedes. Wajdi Mouawad/Dramaturgia. Thiago Bomilcar Braga/Direção. Agosto/2023. Fotos/Léo Aversa. |
Depois que os palcos brasileiros tiveram a surpresa inventiva
e o deslumbramento estético das peças Incendios
e Céus, estreadas respectivamente em
2014 e 2016, é a hora de Sedes (Assoiffés, no original) também retomar o
impacto habitual da obra do libanês-franco-canadense Wadji Mouawad.
Este projeto descortinador de uma potencial dramaturgia, com
o olhar armado na problemática da contemporaneidade, tem seu conceitual sustentado
numa reflexiva provocação. Que parte ora de uma controversa realidade política,
ora do questionamento filosófico da condição humana, situada entre a “poesia e o pânico” (podendo lembrar,
a propósito, este dístico muriliano).
O que faz ecoar seu visceral ceticismo no desafio redentor do
processo da criação, segundo as palavras
do próprio Wajdi Mouawad : Um artista é
um besouro que encontra nos excrementos da sociedade os alimentos necessários à produção das obras
que fascinam e revolucionam seus semelhantes”.
Dando continuidade ao belo ideário de Aderbal Freire-Filho e
do produtor/ator Felipe de Carolis, este terceiro espetáculo de uma serie estreou
numa outra montagem experimental paulista, dirigida lá por Zé Henrique de
Paula, em 2020, chegando ao Rio, em diferencial versão, sob o comando direcional
de Thiago Bomilcar Braga.
Na presente temporada carioca, o elenco inclui dois nomes da produção anterior – Felipe de Carolis e Luna Martinelli, acrescida pela participação dúplice de Lucas Garbois e Fábio de Luca para um mesmo personagem em duas fases etárias.
Numa ficha técnica que traz ainda a acurada tradução de Angela Leite Lopes (a partir do original Assoiffés), as tonais climatizações psicológicas das luzes de Paulo Cesar Medeiros, a trilha sonora de Márcio Castro priorizando as vocalizações cantantes e recitativas do ator Felipe de Carolis. Sem deixar de falar em outro dos acertos indumentários de Wanderley Gomes.
Sedes. Com Luna Martinelli, Lucas Garbois, Felipe de Carolis, Fabio de Luca. Fotos/Léo Aversa. |
Com uma narrativa de circularidade dramatúrgica que conecta ficção e realismo, ironia mordaz e riso melancólico, para caracterizar a trajetória infeliz de dois jovens que no desalento de um amor adolescente pleno de reveses, optam por enigmática terminalidade. Investigada quinze anos depois por um antropólogo forense e antigo colega da mesma faixa de idade do trágico casal.
Sylvain Murdoch (Felipe de Carolis) sequencia monólogos
consigo mesmo e com o espectador sobre o vazio existencial e a impossibilidade de
fugir de um cotidiano opressivo. Enquanto a jovem Noruega (Luna Martinelli) dialoga com o silêncio no isolamento de
seu quarto domiciliar, em comportamento alterativo expondo sua gritante revolta
confrontada com o delirante sonho subliminar de um
amor platônico.
Paralelamente, em dois planos temporais, vai sendo dimensionada
a narrativa de Boon, ora como o aspirante
a escritor (Lucas Garbois) ou pelo oficio adulto do investigador jurídico (Fábio
de Luca). Na intrigante descoberta de dois cadáveres abraçados, sob a amarga certeza de que seriam os seus contemporâneos de
juventude Murdoch e Noruega.
O tom confessional destes personagens "sedentos" tem um alcance sensorial na cumplicidade emotiva da
plateia, resultado de convicto domínio direcional (Thiago Bolmicar Braga) sobre
este inventário dramático.
Indo da rompante espontaneidade performática de Felipe de Carolis na
transgressividade de sua tensa rebeldia à tocante nuance de interiorização que Luna
Martinelli imprime à sua angustiada espera por aquilo que nunca vem.
Além da coesa busca investigativa de dois atores (Lucas Garbois e Fábio de Luca) para um mesmo personagem. Simbolicamente metaforizada no sobrevivente único que imaginara, em tempo passado, uma escritura literária, sinalizada pelo difícil ato de
suporte da condição humana.
Quando a onírica percepção em relação à beleza da arte e da vida é
transmutada na irracionalidade da feiura do mundo. Dimensionada pelo espanto
dos transes cotidianos e fazendo da trajetória existencial um terrível pesadelo que só acaba no
túmulo...
Wagner Corrêa de Araújo
Sedes encerrou sua temporada, no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, no último dia 28 de agosto, com previsão de volta ao cartaz em breve.