Meu Corpo Está Aqui. Julia Spadaccini/Dramaturgia. Outubro/2023. Fotos/Renato Mangolin. |
Que corpos humanos são estes onde a constituição física e orgânica
poderia, quem sabe, ser classificada pelos termos - depreciada, desviante ou, numa caracterização mais popular, deficiente?
E onde as análises psicofísicas no entorno de suas sub condições,
no distanciamento da normalidade plena, tem sido objeto de acurados estudos
psicofilosóficos, que passam pelas trajetórias teóricas de Michel Foucault a Gilles
Deleuze.
Sem deixar ainda de lembrar, através de um conceitual
estético de aproximação do teatro da crueldade de Antonin Artaud, quando este despedaçamento
do corpo torna-se um motivo de representação cênica direcionada a uma
redenção catártica.
Como é o caso do sensorial e impactante texto dramatúrgico Meu Corpo Está Aqui, na mais recente criação de Julia Spadaccini, esta assumindo ainda a direção concepcional contando,
aí, com a criativa parceria de Clara Kutner, mais a assistência artística de Michel
Blois. E indo longe quando o quarteto de atores atuantes traz, por intermédio
de cada um deles, características sintomáticas com perceptível apelo verista de
casos clínicos de PcD (pessoas com
deficiência).
Num cast corajoso integrado por Bruno Ramos, acometido de ausência auditiva completa extensiva à oralidade, Pedro Fernandes sofrendo de paralisia cerebral mas mantendo a função cognitiva, mais as atrizes Haoné Thinar amputada de uma de suas pernas e Juliana Caldas, nanista desde o berço nascituro.
Meu Corpo Está Aqui. Júlia Spadaccini e Clara Kutner/Direção Concepcional.Outubro/2023. Fotos/Renato Mangolin. |
Sem deixar de referenciar que a própria autora da peça, Julia
Spadaccini, também apresenta uma condição de pessoa PcD pela sua quase total deficiência
auditiva, o que torna mais factível, sob o aspecto de uma sensitividade ilimitada,
o necessário recado reflexivo de sua dramaturgia.
A própria estrutura do
corpo humano supera em artificio tudo o que é fabricado pela arte humana, já replicava a filosofia de Spinoza
a Nietzsche, mas como dimensionar esta bela definição no confronto da incompletude
de uma corporeidade sem a funcionalidade plena de qualquer um de seus órgãos?
A ruptura sensualizada do corpo fisico sujeito a anomalias é
o que esta peça Meu Corpo Está Aqui sugestiona
e assume, com rara bravura, numa abordagem diferencial em tônus hiper realista que
poderia escapar às representações cotidianas da linguagem cênica.
Mas que, no desafio de sua proposta, torna-se aqui um teatro
socializante na justa concessão de um espaço para atores sob permanente risco da exclusão preconceituosa. Na dolorida confessionalidade de
narrativas personalistas, em parte marcadas por melancólica dramaticidade, mas
sempre buscando uma afirmativa superação que fique longe da autopiedade.
Do enfrentamento energizado do surdo mudo Bruno Ramos no
abismo de sua solitária interioridade à assumida provocação do riso burlesco
nas insinuações erotizadas da corporeidade anã de Juliana Caldas, ambos
provando seu direito a parcerias amorosas.
Ou na feminilidade tocante da potencial atriz Haoné Thinar de
uma perna só, sendo capaz de seduzir na escola o mais atraente de seus colegas
adolescentes. À impositiva força do ator/professor Pedro Fernandes, ao expor o contraste entre um atraente rosto
jovem e as contorções paralíticas de um corpo desnudo, capaz de amar como
qualquer outro.
Tudo sublimado na positividade expressiva das luzes
psicodélicas de Paulo Cesar Medeiros, na solar concepção cênica/indumentária de
Beli Araujo, na direção de movimento sempre para cima de Laura Samy e no
compasso dos acordes alegres da trilha de Luciano Camara.
Como se aqueles atores PcDs quisessem dizer numa
peça-manifesto que, rompendo o silencio por uma sexualidade inclusiva no
entremeio de tanta discriminação social à fisicalidade degenerativa, somos todos afinal iguais a você espectador,
diante das adversidades existenciais neste difí
Wagner Corrêa de Araújo
Meu Corpo Está Aqui, em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sábado a segunda feira, às 20h, até 30 de outubro.