VAIDADES E TOLICES:A PEQUENEZ HUMANA, UM OLHAR TCHEKOVIANO


FOTOS/GUGA MELGAR

O retrato, tão bem traçado, das futilidades e pequeneza de atitudes em personagens típicos de classe média provinciana é tematizado, com inteligente ironia, nestas peças dos anos iniciais do teatro tchekoviano –O Urso e O Pedido de Casamento, originais de 1888/89.

Com seu olhar crítico , ao mesmo tempo melancólico, da postura comportamental de seres marcados pelo ridículo e pela superficialidade , este registro, em atos e falas, das fragilidades da  condição humana ressoa além de sua época histórica.

Fator presente tanto na narrativa(O Urso)  de uma cobrança antiga feita por Grigóri Smirnov (Marcelo Escorel) à viúva Eliena Popova(Flávia Fafiães), como no Pedido de Casamento do jovem ensimesmado Ivan Lomov( Rafael Canedo) à garbosa senhorita Natália Stepanovna( Isabella Dionísio).

Acompanhadas as duas investidas amorosas pela dúplice e eficaz entrega à  personificação por  Edmundo Lippi. Como  um idoso e conselheiro , tanto como o pai Sptepan Tchubúkov( O Pedido de Casamento) ou como o criado Luká( O Urso).

A trama dupla unificada alcança uma notável fluência no original cruzamento de seu vocabulário cênico sob o título de Vaidades e Tolices. Numa perfeita idealização do comando de Sidnei Cruz, na maestria de marcações movimentadas e coloridas. Plena de bons  achados farsescos na dialetação lúdica entre a palavra e o gesto.

Nesta focalização estética de uma verdadeira guerra de sexos na pretensão de duas futuras uniões nupciais ocorre, isto sim, um mais que feliz casamento da performance de atores.

O inicial conflito, de incomunicabilidade e de pretensões, entre os argumentos de convencimento do agitado personagem de Marcelo Escorel abala  não só  a intransigência, de  tom exato com Flavia Fafiães, como seduz de vez a plateia.

Enquanto Isabella Dionísio se impõe com uma reveladora consistência, o sequencial domínio cômico/emotivo e da fisicalidade em Rafael Canedo reafirma sua crescente desenvoltura presencial na nova geração de atores.

Completando  a comemoração de 25 anos da Cia Limite 51, sempre com brio e brilho em seu repertório de clássicos, outra  vez o apurado senso plástico e técnico de seus elementos cenográficos(Colmar Diniz), desenho de luz(Rogério Wiltgen) e score musical (Wagner Campos).

E é, assim, a partir desta clássica comédia humana do desencontro e da mediocridade cotidiana, a constatação reflexiva, capaz de conduzir a Máximo Górki :

“Ninguém compreendeu tão lúcida e finamente como Anton Tchekhov a tragédia  das trivialidades da vida; ninguém antes dele mostrou aos homens, com tão impiedosa verdade, o retrato terrível e vergonhoso de suas vidas...”



 

VAIDADES E TOLICES ESTÁ EM CARTAZ NO TEATRO EVA HERZ, CINELÂNDIA/RJ, DE TERÇA A SÁBADO,ÀS 19H30M. 80 MINUTOS. ATÉ 06 DE AGOSTO.

ZORBA O GREGO: DANÇANDO ENTRE APOLO E DIONÍSIO


FOTOS/ PATRÍCIO MELO


Foi a partir de um estranho telegrama recebido de um simples minerador Georges Zorba, na iminência da Segunda Guerra Mundial,  que o escritor grego Nikos Kazantzakis , poucos anos depois, escreveu seu romance Zorba O Grego(1942).

Este personagem, caracterizado por uma pureza de alma e uma alegria de viver, capaz de “agir como se a morte não existisse , ou agir pensando na morte a cada instante” tornou-se símbolo de uma dança libertária (sirtaki ) de afirmação da vida.

Imortalizado,assim, na literatura de Kazantzakis e no cinema (Michael Cacoyannis),chegou à Broadway (1983) e ao  balé, na criação coreográfica  de Lorca Massine( 1988), com a partitura sinfônica de Mikis Theodorakis. E que teve a sua mais recente remontagem (2013) com o Ballet de Santiago, sob a segura direção artística de Márcia Haydée.

Quando o turista americano John (Lucas Alarcon) chega a uma aldeia da Grécia e se apaixona pela viúva Marina(Natalia Berrios), desperta um irado ciúme de seu rival Manolios(José Manuel Ghiso). 

Até a chegada do expatriado Zorba(Rodrigo Guzmán) que , ao mesmo tempo, incita sonhos amorosos na velha cortesã Madame Hortense(Andreza Randisek) e se torna fator de equilíbrio entre os conflitos dramáticos de perspectiva trágica.

Na concepção coreográfica de Lorca Massine há um visível referencial da dialética de Nietzsche entre o apolíneo e o dionisíaco,presente no original literário. Aqui o estilo clássico, com seu rigor de sublimidade apolínea, se confronta com a pulsão dionisíaca  de danças nativas gregas, num fluxo passional catártico entre Eros e Thanatos.

Ainda que perpasse um sotaque  de grandiloquência melodramática decadentista numa narrativa de linearidade crepuscular ( à moda de boa parte dos balés épicos do período soviético),prevalecem o  apurado senso plástico de uma cenografia(Jorge Gallardo) indutora da passagem do tempo e de uma cuidadosa execução de figurinos.

A trilha sonora(M.Theodorakis) de pontuados acordes “metasinfônicos”,entre cores instrumentais e quadros corais, inclui um solo para mezzo-soprano de idealizada tessitura para o inspirado  pas-de-deux  do segundo ato (Natalia Berríos/Lucas Alárcon).

A nuance melancólica, quase kitsch, do personagem de Andreza Randisek, tem um contraponto na enérgica gestualidade física e na singularizada entrega técnica/emotiva ao papel título  por  Rodrigo Guzmán.

Que , ao lado de um afiado elenco, especialmente nas cenas de conjunto masculino, é capaz de remeter ,na provocação de sua performance exuberante , à postura de Zorba como um alter ego do pensar rebelde de Nikos  Kazantzakis, na metafórica  inscrição em sua lápide :

Não tenho nada a desejar, não tenho nada a temer, eu sou livre”.




ZORBA O GREGO, COM O BALLET DE SANTIAGO, depois de SP. BH e RJ, se apresenta em  Curitiba, Teatro Guaíra, 27 de julho, e Porto Alegre, Oi Araújo Vianna, dia 29 de julho.

VIANNINHA CONTA O ÚLTIMO COMBATE DO HOMEM COMUM


FOTOS/GUILHERME GAZZINELLI

O belo texto de Oduvaldo Vianna Filho, Em Família, original de 1972, retorna aos palcos numa concepção de Aderbal Freire-Filho. Que, numa homenagem ao Teatro de Arena ,berço dos grandes momentos e repositório de realizações do dramaturgo, renomeou de  Vianninha Conta o Último Combate do Homem Comum.

A propósito da temática veio a referência a uma obra musical, curta mas emblemática, do compositor americano Aaron Copland –“Fanfarra Para o Homem Comum “ onde , apenas com metais e percussão, ele faz um expressivo tributo a um cidadão qualquer, ao mais comum dos homens, àqueles aos quais o destino não diferenciou de qualquer dos mortais.

Os personagens desta comédia dramática são estes homens comuns, seres impotentes diante dos reveses do cotidiano vivendo este dia a dia sem ambições,combatentes mais preocupados em alcançar a vitória na batalha pela sobrevivência material .

Aqui ,o que importa é fazer marchar a máquina da vida compensando com as alegrias do convívio familiar, a difícil luta existencial, sem casa própria, com contas a pagar, entre as dores , defeitos e desafetos.E onde os pais transformam em prêmio a partida dos filhos, ainda que em troca de solidão e abandono.

Enquanto isto ,este casal idoso(Rogério Freitas/Vera Novello) vai sendo aniquilado pela carência de recursos que o obriga a trocar o acolhedor ambiente original do lar por um recanto na casa dos descendentes , primeiro passo para o isolamento final num asilo de velhos.

A nuance melodramática que o tema faz converger no roteiro dramatúrgico , tem na versão atual um proposital distanciamento brechtiano , simbolizado aqui , ora por um cenário minimalista que evita a prevalência do realismo ,ora pela presença permanente em cena de todos os atores e, especialmente, pelo acréscimo de um palhaço( Kadu Garcia) .

Este último com suas instantâneas entradas em cena interfere na ação,como se interrompesse a trama remetendo à frase operística de I Pagliacci -"La commedia é finita", provocando assim a reflexão da plateia. A impotência dos familiares diante do destino reservado ao casal idoso é acentuada, ainda ,pelo emotivo score musical de Tato Taborda.

E o equilibrado e acertado domínio cênico do elenco (incluindo -se aí , Isio Ghelman,Paulo Giardini,Ana Velloso,Beth Lamas) torna visível a inventiva proposta estética da direção de um espetáculo em construção, onde a cena fatalmente remete ao ato de heroísmo do homem comum arquitetando a sua própria trajetória existencial.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


VIANNINHA CONTA O ÚLTIMO COMBATE DO HOMEM COMUM está em cartaz no Teatro Glauce Rocha, Centro, de quarta a domingo, 19h. 120 minutos. Até 24 de julho.Entrada franca, mediante senhas.





SANKAI JUKU : MEGURI, DANÇA CATÁRTICA


Há uma correlação simbólica entre a criação expressionista de Mary Wigman e o orientalismo contemporâneo de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, os criadores do estilo coreográfico Butoh.

Quando a coreógrafa e bailarina alemã se propôs a “dar forma ao caos” , no conturbado período que levaria ao nazi/fascismo, ecoou também na década de 50 , num Japão fissurado por uma dramática ocidentalização.

É quando surge o estilo butô ( Ankoku Butoh), a “dança das trevas”, expressão pioneira da vanguarda coreográfica japonesa , numa estética que conquistou o mundo com sua temática ancorada sobre a tragicidade da condição humana.

Retomando  a tradição zen-budista, para se confrontar com a crise civilizatória, o butô deveria se apoiar , segundo o pensamento de Kazuo Ohno, na “vida que nasce da morte e na introspecção para aceitar este dualismo”.

Onde prevalece uma dança teatralizada que retoma a percepção do pensar  de Wigman, de quem Kazuo foi aluno, –  “Suportar a vida, aceita-la e glorifica-la no ato de criação”.

Aqui os dançarinos/atores , numa cenografia minimalista,ressaltam a gestualidade , através da extremada sutilização da postura de mãos, braços, pernas e troncos.

Na extroversão da interioridade, diante da juventude e da decadência corporal, da trajetória tragicômica do nascimento à finitude.

Assim a  Cia Sankai Juku , concebida, dirigida e coreografada por Ushio Amagatsu, completa seus 40 anos , com sua invenção personalista do butô ligado à contemporaneidade pela transubstanciação reflexiva  da ancestralidade espiritual japonesa.

E, desta vez,  com um verdadeiro poema coreográfico Meguri –Mar Exuberante, Terra Tranquila, metaforizando, pelo movimento, o conceitual físico/filosófico : terra, água, fogo e ar.

Com oito dançarinos, uma trilha refinada entre a “ambient music” e o rock progressivo e um muralismo cênico de exponencial plasticidade, sob  luzes atmosféricas, inspirado em fósseis marinhos paleozoicos.

Cobertos todos eles por uma maquiagem corporal, textualizada num branco melancolizado,extensível aos figurinos, com a similaridade disfarçada,apenas, por leves insinuações de pigmentos em verde e vermelho.

Em circulares movimentos e na sensitiva postura solar, sob o essencialismo gesticulatório de espiritualização da fisicalidade.

Entre a mascaração das faces, meditativas  e  assombradas, ou na dissonância de súbitos saltos de apelo orgíaco. 

Num carismático convite, palco/plateia,  para uma dança , poética e catártica , da alma pela vida.




SANKAI JUKU - MEGURI , depois da Cidade das Artes,RJ, segue para o Teatro Alfa,SP, dias 23 e 24 de julho. Horários diversos. 80 minutos. 

ROOTS: ARQUITETURA GESTUAL, COM ENÉRGICA ELEGÂNCIA

FOTOS/MARIANA VIANNA

O  estabelecimento do diálogo entre a gestualidade da dança urbana com o clássico e o contemporâneo vem alcançando surpreendentes e inventivos resultados, das experimentações pioneiras de William Forsythe  às mais recentes gerações coreográficas, como Bruno Beltrão.

Não prevalecendo mais aquele preconceito de que a linguagem generalizada das danças  urbanas, com seus diversos  segmentos (Hip Hop,Breaking,Popping,Locking, Funk, House, Krump), seria apenas a resposta e o  resultado da marginalização de uma juventude periférica.

Além de ser uma forma reconhecida de inserção social, ela  já coexiste, na sua identidade artística própria, como autêntica manifestação da vida cultural na contemporaneidade.

E é, assim, que se descortina a essencialidade e valoração do conceitual de dança urbana nesta proposta do espetáculo/performance Roots –  a  origem singularizada de uma estrela brasileira da dança clássica mundial.

Foi na ideia da retomada memorialística/cênica de seu cotidiano de dançarino adolescente de rua, nos subúrbios cariocas,  que o bailarino clássico Thiago Soares convocou renomados expoentes da criatividade estética urbana.

O coreógrafo Ugo Alexandre, figura exponencial no seu processo inicial de formação, compartilhando a direção com Renato Cruz, e o profissional de street dance Danilo D’Alma.

Aos quais  se juntaram as consistentes participações de  Pedro Cassiano( na coreografia) e Renato Machado( no desenho da luz). Além das irrepreensíveis modulações sonoras, ao vivo, do multi-instrumentista Pedro Bernardes, uma atração à parte na  performance.

Já na entrada em cena, é instalada a expectativa de  estranhamento dialogal do clássico/urbano. Quando a malha e sapatilhas de Thiago Soares e  o figurino rapper (tênis e bermuda) de Danilo D’Alma instauram uma instigante correlação visual do que está por vir.

Mas , no sequencial do percurso cênico, a convivência vai se estabelecendo num clima de celebração ritualística entre o elegante virtuosismo de arabesques e jetés  com o enérgico fluxo de movimentos livres, de improviso, intencionalmente quebrados.

Pontuados ,  ora pela contração muscular ora pelas ondas corporais e pelo feeling destas pulsações, inicialmente exclusivas de Danilo D’Alma, mas alternadamente assumidas por Thiago Soares.

Entre a largueza cadencial de braços e pernas, de base clássica, à robotização minimalista ou a desenvoltura impetuosa da fisicalidade, hábeis e emblemáticos elementos estilísticos do urbanismo coreográfico.

Roots é, enfim, um espetáculo convincente capaz de conectar, sensorialmente, palco e plateia num contraponto harmonioso e envolvente  do rigorismo  clássico com a espontaneidade investigativa das danças urbanas.

                                                          Wagner Corrêa de Araújo




ROOTS está em cartaz, em  nova temporada, no Teatro João Caetano/RJ, sexta e sábado, às 20 h; domingo ,às 18 h. 60 minutos. Até 22 de janeiro.


A REUNIFICAÇÃO DAS DUAS COREIAS:ENTRE TERRITÓRIOS AMOROSOS

FOTOS/VICTOR HUGO CECATTO

Na peça do francês Jöel Pommerat , estreada em 2013, a concepção original tinha uma espécie de corredor espelhando a plateia em lados frontais, como se o amor fosse demarcado pelas forças opostas num campo de batalha.

As dezoito cenas , tituladas com projeções ao fundo, reunindo quarenta e sete personagens em jogos de união e separação, perdas e ganhos, idas e voltas, rompimentos e “reunificações”, qual  um território dividido politicamente ao meio, uma Coréia do Norte ou do Sul no sonho de voltar, pela identidade afetiva, a ser um mesmo país.

Com seu sotaque diversificado ,ora insólito ora absurdo, ora teatro de boulevard ora tragicomédia, A Reunificação das Duas Coreias alcança,assim, uma  singularizada concepção dramatúrgica com sua carga de contemporaneidade .

Aqui há traços referenciais, no seu sequencial narrativo ,de quadros/esquetes  cênicos , tanto dos embates passionais na teatralidade de Arthur Schnitzler ( La Ronde), como dos conflitos dialogais em Ingmar Bergman( Cenas de um Casamento).

Desde o imaginário inicial onde, na absurdidade de ignorar o corpo enforcado do marido , a sua  mulher, indiferente,apenas o questiona com duas amigas .  Ou de uma esposa que opta pela solidão diante do "amor que não basta"do amante.Ou da criada cuidando de crianças inexistentes e que suprem, metaforicamente, o vazio afetivo de um casal.

Relacionamentos dissimulados em mal-entendidos ou tentativas da retomada de suas perdas em diferenciadas “reunificações”,configurando,enfim,um árido conceitual das incomunicabilidades cotidianas da condição humana.

E, segundo Pommerat, “é na imaginação do espectador que são construídos os ecos, variações ou contrapontos entre as situações apresentadas”. De alcance absoluto na invenção sensorial sob o comando de João Fonseca, capaz de clarificar, com inteligente e sutil intencionalidade, as ressonâncias intimistas  desta obra aberta a incisivas reflexões psico-filosóficas.

Sensibilizada, ironicamente, nos “entreatos” de canções populares francesas integradas ao score sonoro/musical(Leandro Castilho) e nas  modulações  da pesquisa gestual(Alex Neoral).Além da funcional maleabilidade cenográfica(Nello Marrese)e do acerto de figurinos(Antônio Guedes),sob luzes artesanais (Renato Machado).

Numa encenação meticulosamente estruturada, ainda que incorra num quase monótono prolongamento. E com um elenco de adequação exemplar(Louise Cardoso,Bianca Byington,Solange Badim, Verônica Debom,Marcelo Valle, Gustavo Machado,Reiner Tenente) ao sustento dramático,com  senso crítico, de  uma performance de consistente e homogêneo alcance da fisicalidade e do emocional .

Mas, afinal, um espetáculo que deve,isto sim, ser obrigatoriamente conferido pela complexidade psicológica de seus personagens e pelo substrato estético na abordagem de uma temática que se identifica, entre o riso e a dor, com cada um de nós.


A Reunificação das Duas Coreias está em cartaz no Oi Futuro,Flamengo, de quinta a domingo, 20h.110 minutos. Até 28 de agosto. 

GALILEU GALILEI: O CAOS NOSSO DE CADA DIA

FOTOS/JOÃO CALDAS

“Nós os convidamos para que venham aos nossos teatros e lhes pedimos que não se esqueçam de suas ocupações (alegres ocupações), para que nos seja possível entregar o mundo e a nossa visão do mundo às suas mentes e corações, para que eles modifiquem o mundo a seu critério”.

Um conhecido pensar teatral de Bertold Brecht que pode servir de referencial à sua obra Galileu Galilei, na sua definitiva versão de 1955. Aqui, o palco pode ser um fator inexpugnável da discussão dialética , mas sem eclipsar  nunca o essencialista ato da diversão.

Nela, Brecht parte da vida do astrônomo italiano do século XVII que, ao utilizar-se pioneiramente de um telescópio, promove uma hecatombe doutrinal, religiosa e científica, ao reafirmar como verdade a teoria do heliocentrismo de Copérnico . Se é a terra que gira em torno do sol e não o contrário, o homem não é mais o elemento central da Criação Divina e do Universo.

Perseguido pela Igreja , Galileu só escapa do suplício inquisitorial ao abjurar sua “teoria sacrílega”. Mas às ocultas, insistindo em suas pesquisas, ao mesmo tempo se torna uma espécie de  anti-herói fingindo acreditar ser mentira o que considera ser verdade.

Na concepção de Cibele Forjaz o palco sugestiona, ora um picadeiro circense ora uma passarela carnavalesca alcançando a plateia, num mix atemporal que une a ambiência pós  renascentista à contemporaneidade brasileira.

Esta transmutação cenográfica( Márcio Medina) tem continuidade na nuance alegórica dos figurinos (Marina Reis) e na carnavalização da trilha sonora(Lincoln Antônio/Théo Werneck)que, ao vivo,vai das marchinhas à Internacional Comunista.

No impulso estético de tornar palpável a sensorial conduta dramatúrgica, sem artifícios ou metáforas, de um teatro questionador da vida, Cibele Forjaz promove o distanciamento através de uma didática do riso provocador da reflexão crítica. Ampliada,inclusive,pela iluminação(Wagner Antônio) direcionada no manter armado o olhar do espectador  numa, quase incomoda, durabilidade extensiva do espetáculo.

A consistência de um  extenso elenco ( Ary França,Lúcia Romano,Théo Werneck,Maristela Chelala,Vandereli Bernardino,Jackie Obrigon,Luís Mármora,Silvio Restiffe,Daniel Warren)dá firme esteio ao domínio absoluto , com sotaque brechtiano de music hall / cabaré e nacionalismo de verve tropicalista,  da carismática performance de Denise Fraga.

Capaz, assim , de transcender ,outra vez nos corações e mentes, a lição de Brecht, através de Galileu Galilei, ao parecer até ter sido escrita para as controvérsias e contravenções politicas do caos cotidiano próximo de cada um de nós:

Quem não sabe a verdade é simplesmente um cretino. Mas quem sabe e diz que ela é mentira, esse então é mesmo criminoso”.


Galileu Galilei está em nova temporada no Teatro João Caetano, Centro/RJ, de quinta a sábado, às 19h30m;domingo, às 17h30m. 130 minutos. Até 30 de outubro.



ORFEU E EURÍDICE: INCURSÃO MÍTICA EM TEMPO INFERNAL

FOTOS /JULIA RÓNAI
Depois de muitos embates financeiros, que quase impediram de vez o embarque para o Hades e os Campos Elíseos , a ópera Orfeu e Eurídice subiu ao palco do Theatro Municipal. Por ser uma produção exclusiva, sem convênio com outras casas de ópera, foi uma grande vitória para o TM e um presente para o público de um gênero musical de tão parcas montagens em época de crise.

A abordagem temática da apaixonada narrativa ancestral - do amor entre Orfeu e Eurídice, transcende o seu substrato mítico da Grécia clássica em suas diversas transposições literárias, musicais, artísticas e cinematográficas.

Deste universo recriador fazem parte, entre outros, Platão,Ovídio,Virgílio, Milton, Apollinaire, Léger, Duchamp, Cocteau, Camus, Jorge de Lima,Vinícius e Jobim, Cacá Diegues. E , especificamente na criação operística, três momentos singulares de sua história (Monteverdi, Gluck,Offenbach).

A história de uma paixão , entre a vida e a morte, entre as sombras do inferno e a claridade terrena, entre a punição e a piedade , na sua busca pelo resgate de um amor perdido, foi capaz de estruturar um drama lírico de perfeita dramaturgia no seu equilíbrio com a escrita musical.

E neste aspecto a concepção geral de Caetano Vilela, ao lado da cenografia(Duda Arruk), é primorosa com sua arrojada movimentação dos solistas, coro e bailarinos num palco vazado, sugestionando uma arquitetura em construção  ,  tanto no eficiente aproveitamento da maquinaria do teatro, como na inventiva utilização da horizontalidade e da verticalidade de seus planos cenográficos.

Tudo sob  extasiantes jogos de luzes(também de Caetano) que atingem a plateia em sua envolvência luminar. Onde o único senão, ao lado de sua boa execução, é um    certo desequilíbrio referencial dos figurinos(Cássio Brasil).

Por outro lado, é por demais recatado e de pouco brilho, o gestual coreográfico (Tânia Nardini) para uma ópera/ballet, capaz de inspirações carismáticas ( Pina Bausch). Compensada, aqui, pela nobre conduta musical do maestro Abel Rocha frente ao competente Coro e a OSTM, na sua sutil apreensão das filigranas tonais de passagem do barroco ao clássico.

Com a  sólida tessitura  capaz de unir a expressão dolorosa de Orfeu a um apurado timbre de mezzo soprano( Denise de Freitas), de  rara intensidade especialmente em Che Farò Senza Euridice. Sem deixar de ressaltar os ricos matizes vocais como soprano em Lina Mendes( Eurídice), presentes na ária e dueto do Ato III(Che Fiero Momento).

E com  a grande surpresa da consistente maturidade  da soprano Luisa Suarez,um dos mais promissores nomes da nova cena lírica nacional, capaz de unir, com desenvoltura, drama e música, nas suas  aparições como o sensível personagem Amor.

Um belo domínio corporal e elegante alcance vocal caracterizam, enfim, o trio feminino protagonista, revelando um apurado rendimento cênico para esta versão de Orfeu e EurídiceAtenta,assim, ao propósito estético/musical do próprio Christof Willibald  Glück em seu ,então revolucionário, manifesto pela reforma da ópera (1767).




ORFEU E EURÍDICE está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, sábado e terça, às 20h;domingo,às 17h. 120 minutos. Até 12 de julho.

CINDERELLA : CANTANDO( E DANÇANDO) FORAM FELIZES PARA SEMPRE

FOTOS/MARCOS MESQUITA


Com sua origem ancestral que remota à China (850-860 a.C), este conto de fadas milenar chegou, pela transmissão oral, às clássicas versões de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm.

Passou pela ópera ( Rossini), pelo balé (Prokofiev) e pelas diversas adaptações cinematográficas (de Disney a Kenneth Branagh).Inspirou, ainda,  interpretações psicanalíticas e teses antropológicas em torno de seu substrato matrilinear e feminista.

E foi priorizando a abordagem subliminar  do conflito social pelo desejo da ascensão de classes que o libreto de Douglas Carter Beane para a Cinderella (concepção de Rodgers&Hammerstein's para a tv americana-1957), que o musical alcançou, finalmente, a Broadway (2013).

Aqui a Cinderella(Bianca Tadini) ,vítima dos maus tratos da madrasta(Totia Meireles) e suas duas filhas Charlotte(Raquel Antunes) e Gabrielle(Cristiana Pompeo),  é resgatada, com a força de seu amor humanístico, pelo  Príncipe Topher( Bruno Marchi).

Impulsionando-o, assim, na adesão às ideias de como  melhor distribuir a renda entre seus vassalos, apregoadas pelo camponês Jean Michel(Bruno Sigrist).

Com as metamorfoses mágicas da Fada Madrinha(Ivanna Domenyco), Cinderella estimula, nas suas idas à Corte, a conciliação política. Celebrada, enfim, por todos, cantando (e dançando),felizes para sempre.

Há envolventes performances musicais, desde o prólogo de Bruno Narchi ( “Me, who Am I”) ao inspirado solo de Bianca Tadini(“In My Own Little Corner”). Algumas  das canções foram  retomadas de outros musicais da dupla Rodgers&Hammerstein's, mas sem quebrar jamais  o fluxo da partitura original com seu perceptível apelo melódico.

O desenho das luzes de ambientação mágica(Maneco Quinderé /Mazefx), a elegância aquarelada dos figurinos(Carol Lobato), a energia coreográfica em especial nas valsas e gavotas(Alonso Barros) e o rico apuro do design  cenográfico( Rogério Falcão) propiciam uma viagem de sonho pelos espaços siderais da mente.

Numa tríade  protagonista de craques (da exponencial Totia Meireles aos encantadores Bruno Narchi e Bianca Tadini), sem esquecer o brilho da tessitura vocal  de Ivanna Domenyco, ao lado das convictas atuações de Bruno Sigrist , Carlos Capeletti,Cristiana Pompeo e Raquel Antunes.

A tradução inteligente e intuitiva ( Claudio Botelho) faz a direção(Charles Möeller) ecoar com intencional e  rara exuberância cênica, numa trama sequencial de surpreendente resultado dramatúrgico. Com a autenticidade de propósitos e de elementos estéticos de quem sabe como fazer bem um musical da Broadway.




CINDERELLA, O MUSICAL está em cartaz no Teatro Bradesco/Village Mall, Barra, sexta às 21h;sábado, às 16 e 20h;domingo, às 16h. 120 minutos. Até 4 de setembro.

GILBERTO GIL, AQUELE ABRAÇO - O MUSICAL

FOTOS/PÁPRICA FOTOGRAFIA


Uma nova proposta de musical em que há uma preocupação em priorizar o conceitual filosófico/poético das letras que , muitas vezes, são eclipsadas pela força imanente dos acordes melódicos.

E tratando-se de um compositor como Gilberto Gil, em seu repertório de transubstancial fluxo idealístico ,a partir de suas incursões numa brasilidade de sincretismo religioso, artístico, comportamental e político, a escolha é mais que acertada.

E foi , assim, que Gustavo Gasparani selecionou mais de cinquenta canções do meio século de trajetória de Gil, entre outras tantas apenas recitadas, para compor, em onze blocos temáticos, o retrato, com dimensionamento estético/psicológico, de um personagem /arquétipo da nossa música popular.

Valendo-se , para o alcance pictórico/cênico do ofício  e do universo inventivo deste mistificador do pensamento musical, de uma proposta ancorada no mote –“o poeta, a canção e o tempo”, sob a titulação generalizada  de “Gilberto Gil, Aquele Abraço – O Musical”.

Contando, é claro, com  um mais que experiente  naipe masculino de atores/cantores/instrumentistas ( Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima, Rodrigo Lima e Gabriel Manita).

Onde a dramaturgia autoral é dividida entre o diretor (Gustavo Gasparani) e seus oito intérpretes , num jogo lúdico em  que cada um deles revela um ponto focal, de personalismo singularizado, na identificação com a obra e o mundo de Gil.

Sem nenhuma preocupação de traçar um roteiro biográfico mas  sim de avançar nas profundezas de um  rico arsenal de ideário reflexivo, ressoando na emotiva interatividade -palco/plateia- deste musical/poesia.

Se ,às vezes, falta uma maior dramaturgia no rendimento narrativo, com sua prevalente aproximação de um show musical de teor antológico, a energia sensorial das vozes, das interpretações instrumentais e da gestualidade do elenco assegura a magia da representação.

Para isto concorrem a plasticidade da cenografia (Hélio Eichbauer) com suas projeções em tela/totem e objetos referenciais do artista Rubem Valentim. Incluída a  bela execução dos  figurinos(Marcelo Olinto) e   o apuro das luzes( Paulo Cesar Medeiros).

Ressaltada ,também, na coesiva envolvência da fisicalidade "in perpetual motion" ( Renato Vieira) com a desenvoltura da concepção musical( Nando Duarte) .

Como, ainda, na habitual consistência da pesquisa e do  comando mor de Gasparani que, nesta sua mais nova aventura de teatro musical , por seu gosto/gozo  de arte/ vida merece, outra vez, “aquele abraço”...


GILBERTO GIL , AQUELE ABRAÇO - O MUSICAL está em cartaz no Teatro Clara Nunes, Shopping da Gávea, de quinta a sábado, às 21h.; domingo,às 20h. 90 minutos. Até 14 de agosto.









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