CÁSSIA ELLER :UM MUSICAL ROCKER, QUASE NA VEIA

FOTOS/MARCOS HERMES

Mais um musical que dá continuidade à linha estética voltada para a trajetória artístico/existencial de ídolos da MPB e do rock nacional. Desta vez , Cássia Eller - O Musical , com texto de Patrícia Andrade, e concepção /direção conjunta de João Fonseca/ Vinicius Arneiro.

Assumindo uma linha minimalista , a montagem concentra todos os seus recursos inventivos no score musical onde conta com uma expressiva equipe comandada por dois músicos/instrumentistas – a percussionista Lan Lan e o baixista Fernando Nunes -radicalmente ligados ao rico universo rocker da cantora, com sua original incursão ao samba e à MPB em geral.

Se em outros musicais - com a mesma proposta de contar a vida de estrelas como Tim Maia, Cazuza e Ellis, entre tantos outros, funcionou a fórmula de fragmentar seus traços biográficos em consonância com seus cancioneiros, alternando-se a trama dramatúrgica com esta linhagem interpretativa e composicional, aqui também o ingrediente seria similar.

Mas, talvez pela rigidez narrativa sequencial da biografia retratada no texto teatral, quase como se fora uma reportagem jornalística, instala-se, aos poucos, um clima repetitivo onde já se sabe o que está por vir, numa quase crônica memorialística , do real ao ficcional ,entre a vida e a morte .

E aí como o despojamento cênico conduz imediatamente à concentração no texto verbalizado, faz falta uma dimensão dramática maior , especialmente pela limitada experiência como atriz da protagonista( Tacy de Campos), mesmo havendo uma equilibrada atuação de todo elenco com o valoroso apoio de uma banda de craques.

Na sua performance , os melhores momentos ficam com o lado mais tímido da cantora na intimidade do dia a dia, o que não disfarça certa insegurança na exposição cênica mais incisiva do temperamento marginal e transgressor da personalidade de Cássia, como sua exponencial marca criativa transposta aos palcos.

Felizmente, a identidade física , a similaridade vocal, o gestual aproximado e a qualidade como cantora e instrumentista da curitibana( em sua estreia profissional como atriz) ,criam uma imediata empatia com o público .

Que ,assim,direciona seu olhar armado na verdade com que ela incorpora o sedutor legado musical , como se estivesse assistindo não a uma peça teatral e sim a um dos enérgicos shows ao vivo da emblemática Cássia Eller.

                                                  Wagner Corrêa de Araújo


CÁSSIA ELLER-O MUSICAL está em cartaz no Teatro Bradesco/Village Mall/Barra,sexta e sábado, às 21h.;domingo,às 19h. 120 minutos. Até 30 de abril.


VAMP- O MUSICAL : COM O SANGUE PERDIDO


FOTOS/ANA BRANCO/FELIPE PANFILI

O vampirismo, tema recorrente desde sua primeira citação na literatura latina ( “A Vida de Apolônio”) com ecos romantizados em Keats , Byron e Gautier, passando por Baudelaire e Allan Poe, até  a sua obra referencial por excelência, o Drácula , 1897, de Bram Stocker.

Não esquecendo o cinema (  Murnau e Herzog) , as visões ficcionais com olhar contemporâneo( Anne Rice e Stephenie Meyer), series televisivas e jogos virtuais. E sem deixar de lado o irônico terrir de Ivan Cardoso(As Sete Vampiras,1986) e a novela global  que inspira o musical de similaridade titular – Vamp.

Outra vez, o fio condutor  da ancestral fixação humana em torno do pós túmulo com seus espectrais mortos/vivos promovendo viagens de mágico assombramento pelos espaços siderais da mente. Conceitualizada no seu psicologismo de sangue avermelhando criaturas e ambientes e na sexualidade como troca e  rapinagem de nossas energias.

Mas aqui, com um olhar bem humorado, com seu pânico risível, de instantânea e lúdica  comunicação, fórmula que fez da novela, de 1991, um dos maiores sucessos da televisão  brasileira .

E que busca na sua versão musical para os palcos repetir a mesma vitória popular de vinte e seis anos atrás, com o roteiro e concepção cênica de grande parte da equipe original como Antônio Calmon( roteiro),Jorge Fernando (direção geral),José Cláudio Ferreira( cenografia) e Lessa de Lacerda(figurinos) ,além do protagonismo estelar de  Ney Latorraca e Cláudia Ohana.

Mas se paralelamente há um invejável investimento na produção teatral, com direito inclusive a inusitados efeitos especiais via sobrevoos sobre a platéia, interferências visuais e sonoras palco/público sob enfático desenho de luz(Maneco Quinderé) e um artesanal visagismo(Martin Macias), é perceptível o desacerto da incursão dramatúrgica.

Através de sua dispensável e dispersiva inclusão da maioria dos personagens e situações,de uma extensa narrativa novelesca(150 capítulos), condensada em pouco mais de duas horas, desconcentrando e desorientando o público no seu foco sobre a trama principal.

Prevalecendo, entre altos e baixos, tanto o convencional  score musical de Tauã Delmiro/Tony Lucchesi como a pouca ousadia das investidas coreográficos de Alonso de Barros, remissíveis no simpático referencial Polanski (Dança dos Vampiros) e na gestualidade pop/sambista imprimida ao Michael Jackson Thriller.  

Onde os poucos e merecidos destaques ficam com o forte presencial dos personagens de Evelyn Castro ( Mrs. Penn Taylor, a caça vampiros),  Pedro Henrique Lopes ( o mordomo Gerald) e mais Cláudia Netto ( Madrácula) com episódicos momentos para exibir seu extensivo potencial cênico/vocal.

A convicta e segura construção  do papel da vampira/roqueira de Cláudia Ohana, embora quase limitado no  brio da entrega musical , privilegiou  sua alteridade dialetal/protagonista, entre variantes  nuances, do convencimento  à envolvência; enquanto o exaltado carisma do  reencontro de Ney Latorraca com o Conde Vlad, acaba tornando-o   absoluto no domínio cênico e na cumplicidade com os espectadores.

Pela falta de concisão do roteiro dramatúrgico, com perceptível queda do ritmo entre linguagens diferenciais  (tv>palco) , a direção conjunta( Jorge Fernando/Diego Morais) foi confrontada pelo desafio da busca da organicidade estético/teatral.

Que no enfrentamento  de um elenco numeroso(36 integrantes,entre atores/cantores/músicos/bailarinos) e no descompasso da simultaneidade de uma “rede de intrigas” se, por um lado, na veia  rendeu  excitantes mordidas, de outro , fez o provocativo sangue se perder...

                                              Wagner Corrêa de Araújo


VAMP - O MUSICAL está em cartaz no Teatro Riachuelo/Centro/RJ, quinta e sexta às 20h30m; domingo, às 18h. 130 minutos. Até 04 de Junho.

CARTOLA: UM FRAGMENTÁRIO MEMORIAL ALEGÓRICO


FOTOS/ALINE AQUINO

“O jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação”.

Se palavras tão precisas  do poeta maior Carlos Drummond de Andrade serviram como um sensível e justo epitáfio para  o grande artista popular, pouco após sua partida(novembro de 1980), o mesmo não se aplica ao falível retrato, em tempo de teatro musical,  Cartola, O Mundo É Um Moinho, de Artur Xexéo, de 2016.

Claramente inspirado e identificado com a  estrutura dramatúrgica da primeira versão para os palcos da vida do menestrel mangueirense – Obrigado Cartola, de Sandra Louzada - aqui nada mais houve que replicar o fio condutor de 2004, com suas qualidades e possíveis falhas.

Onde o desdobramento da narrativa biográfica se estabelece em dois planos paralelos – a realidade, com sua trama rigorosamente cronológica, e  a  alegoria  na transmutação de fatos da vida e  obra do cantor/compositor, via um enredo de imaginária escola de samba.

E é exatamente no desconexo e fragmentário  confronto,de dúplice  dimensionamento verista/metafórico, que o presente musical não faz jus ao mérito de um dos mais significativos baluartes da música de poética popular. 

Angenor de Oliveira(1908/1980) ou simplesmente Cartola,com sua sofrida trajetória existencial,de porteiro/pedreiro/lavador de carros à sua descoberta furtiva ,o sucesso musical tardio e o absoluto reconhecimento post-mortem como gênio imortal da MPB.

Alternando recortes memorialísticas com os preparativos de um carnavalesco para um desfile /tributo em  samba/enredo há, enfim, uma incomoda dispersão com nuances aleatórias de rasteiro humor televisivo  e personagens caricatos ou quase  dispensáveis, no  desvio focal, palco/plateia ,do pretenso homenageado.

Onde uma empenhada direção de Roberto Lage busca diminuir estes percalços no seguro domínio  da performance, desde os papéis coadjuvantes como o pai de Cartola (Augusto Pompêo), Carlos Cachaça(Eduardo Silva) ou o carnavalesco Luizinho (Hugo Germano) apesar ainda do gestual e da vocalização em carregados tons acima, entremeados com outras inúmeras intervenções de desempenhos episódicos. 

Havendo, ainda, que se reconhecer a energia postural de Adriana Lessa(como Deolinda, primeira namorada de Cartola e também Soninha, a cabrocha) e o convicto presencial físico e vocal de Virginia Rosa(Dona Zica), encobrindo as suas desnecessárias aparições mudas do  primeiro ato, reiterativas de um gasto recurso (muito comum em concepções operísticas como referencial do porvir adverso do destino).

Numa montagem sem maior ousadia cenográfica(Paula de Paoli), indumentária (Luciano Ferrari) e luzes previsíveis(Fran Barros), tímida coreografia (Alex Morenno), o apelo crítico/estético e a cumplicidade do público convergem, inevitavelmente, para sua irrepreensível concepção musical ( Rildo Hora) .

Que ao lado do protagonismo titular de Flávio Bauraqui, com sua veemente similaridade física e carismática entrega, afinal empresta dignidade ao personagem e resgata, só assim, os desacertos conceituais de mais um musical temático brasileiro.

                                           Wagner Corrêa de Araújo



Cartola,o Mundo é um Moinho está em cartaz no teatro Carlos Gomes/Centro/RJ, de quinta a sábado, às 19h;domingo,às 17h.150 minutos. Até 28 de maio.

SAUDADE DE MIM: SOB LUZES E SOMBRAS

FOTOS/PAULA KOSSATZ



Quando o compositor francês Darius Milhaud , em sua passagem pelo Rio , deixou como um dos legados a suíte de danças para piano ,entre o tango e o samba, Saudades do Brasil (1920), sua evocação de paisagens cariocas era carregada de lírica nostalgia .

Este não é o retrato da natureza em Portinari , com sua secura de corte de lamina, e não existe quietude no operário de Chico Buarque, atropelado na contramão e atrapalhando o transito.

E é destas ultimas imagens que Alex Neoral, à frente da Focus Cia de Dança, resgata a proposta cênico/gestual de sua  concepção coreográfica – Saudade de Mim.

Aqui retirantes e operários esquecem suas carências materiais e amorosas nos botequins e folguedos populares , enquanto esquálidos corpos ganham sua única e definitiva morada, sob sete palmos de terra.


Seus bailarinos expressam um mundo de sombras, em posturas cotidianas carregadas de significados internos. Em emotivos duos e solos revelam teatralmente as experiências humanas, ora das misérias da seca e da fome, ora dos amores fraturados ou dos que partem sem volta. Ou celebram coletivamente a alegria da luz, em tempo de quadrilha e forrós.

Corpos contorcidos em movimentos inclinados trazem referencias das técnicas de respiração de Martha Graham, refletidas em rostos sofridos como máscaras teatrais, em apurada construção cênica.

Com um elenco convicto favorecendo o clima de representação e que materializa, em sua gestualidade e na entrega às suas caracterizações,o dimensionamento estético/psicológico da proposta coreográfica. Com a participação, além de seu diretor/criador Alex Neoral, de Carol Pires, Cosme Gregory, José Villaça,Gabriela Leite,Márcio Jahú,Mônica Burity e Sheila Lokiec.

De figurinos (André Vital) e ambientação cenográfica( Márcio Jahu) acertados, medida por medida, na configuração do universo pictórico de Portinari, sob gradativas nuances - claro/escuro - da iluminação de Binho Schaeffer.

Destaque ainda para o score musical ( Felipe Habib), se equilibrando da pura sonoridade vocal da obra de Chico Buarque à envolvência de arranjos camerísticos, com sotaque contemporâneo.

Enfim, uma arquitetada interação artística de movimentos, cores e sons, entre o realismo e a abstração que , dançando a vida e a morte ,faz da retomada de Saudade de Mim uma das raras, mas preciosas,  performances  deste início , em tempo de crise, da temporada de dança 2017.

                                      Wagner Corrêa de Araújo



SAUDADE DE MIM / FOCUS CIA DE DANÇA está em cartaz no Espaço Cultural da Caixa/Centro do Rio, de quinta a domingo, às 19h. 80 minutos.  Até 30 de abril.

NADA: MÁGICOS E OPORTUNOS RECORTES TCHECOVIANOS


FOTOS/RENATO KRUEGER


Ao lado das emblemáticas peças que uniram a estética de Anton Tchekhov às teorizações de Stanislavsky , há uma recanto singularizado, sempre com extremado apelo inventivo, tanto na sua obra ficcional como dramatúrgica, com os contos  e peças de pequena dimensão.

É o caso de O Canto do Cisne , de 1888, e de Os Malefícios do Tabaco, iniciada em 1886 e só concluída, em sua versão definitiva, em 1903. Planejada exclusivamente em formato de monólogo, ao contrário da primeira,  mesmo com seu protagonismo quase absoluto, permite sutis interferências de um segundo personagem , na pitoresca figuração do  ponto teatral.

Ao reunir os dois textos sob a titulação de Nada, a teatralidade assumida pela concepção diretora de Gilberto Gawronski dá–lhe um original tratamento ao inserir passagens significativas , não só dos quatro grandes clássicos da criação tchekoviana (O Jardim das Cerejeiras, As Três Irmãs, Tio Vânia, A Gaivota), como de citações  de Shakespeare e Tennessee Williams.

O que possibilita uma transcendente incursão no universo autoral de Tchekhov ao tornar prevalente a inserção sujeito-objeto, performer-espectador, na magia do ritual cênico, num paralelo de desmistificação e desnudamento do ator enquanto artista e enquanto homem.

Não só por sua  ausência temática especialmente em O Canto do Cisne, no ato visualizador  de um teatro vazio, como no próprio questionamento irônico da interação palco/plateia do personagem/ator( Analu Prestes)  na amarga constatação de que é como se tudo não passasse , como a própria vida, de “um divertimento frívolo”.

Explícito, também, na visceral e tragicômica representatividade de um palestrante sobre os Malefícios do Tabaco quando esta personificação confunde os limites confessionais do papel, assumido ficcionalmente,  com um verista  auto - retrato existencial das próprias  atrizes  (Analu Prestes e Clarisse Derzié). Completado na episódica invasão performática do iluminador/designer videografista  Renato Krueger.

Aqui, ampliado ainda na incisiva e sensorial transmutação metafórica da identidade sexual, entre o masculino e o feminino, entre o ser personagem e o ser humano, enfim num dimensionamento psicológico/filosófico, entre o teatro e a vida.

Neste domínio de uma potencial gramática cênica , o ofício diretorial de Gilberto Gawronski explora, assim, os recursos histriônicos e dramáticos e a instintiva espontaneidade das duas atrizes. Apesar mesmo de um espaço maior para o protagonismo convicto, elegante e ardoroso de Analu Prestes, havendo  ali o amadurecido , contundente e  necessário contraponto crítico de Clarisse Derzié.

Onde, na simplicidade funcional dos elementos técnico/artísticos de cenografia e desenho de luz (chancelados também por Gawronski) , é surpreendente, também,  a pulsão emotiva pelo uso de simbólicos  figurinos do acervo  de Marília Pera.

O que, em tempos de nebulosidade política e incerteza de recursos para projetos artísticos, para afastar o fantasma do derrotismo, nos leva a sintonizar, em unicidade vocal com Renata Sorrah(ao agradecer a homenagem da recente premiação da APTR),as sábias e oportunas palavras de Tchekhov :


É preciso sempre trabalhar, trabalhar, trabalhar...”


                                             Wagner Corrêa de Araújo   



NADA está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, terça e quarta, às 21h. 60 minutos. Até 26 de abril.
NOVA TEMPORADA, no Teatro Dulcina/Centro/RJ, sábado e domingo, às 19h. 70 minutos. Até 30 de julho.

SOBRE RATOS E HOMENS: SONHO E AMARGURA


FOTOS/LUCIANO ALVES


Há os que vão e os que voltam, os que resistem e os que são derrotados, num cenário de desesperança e desolação, desemprego e miséria dos anos 30, na Grande Depressão americana.

Por aqui transitam os sonhadores   mas  amargurados personagens de John Steinbeck, exemplarmente caracterizados nos seus romances As Vinhas da Ira e Ratos e Homens.

E foi a partir deste último que o escritor adaptou, com titulação similar, para formato dramatúrgico em 1937, com uma versão contemporânea ( 1992) para as telas por Gary Sinise, sem o potencial que tornou clássicos do cinema, tanto o Vinhas da Ira(John Ford,1940)  como Vidas Amargas ( East of Eden, por Elia Kazan, 1955).

Depois da memorável montagem ( 1956) de Augusto Boal no Teatro de Arena, Sobre Ratos e Homens retorna aos palcos  em referencial versão paulista(2016) sob o comando de Kiko Marques , por si só entronizada por significativas premiações e pelo aplauso unânime  da crítica e do público.

George e Lennie , os humilhados  mas esperançosos amigos/ andarilhos  em busca de uma ocupação qualquer em tempos de crise, chegam a uma hospedaria rural onde se defrontam com outros sufocados obreiros, além de um capataz e o seu filho, casado com a única personagem feminina da peça.

Enquanto o grandalhão mas ingênuo Lennie alcança um comovido desempenho de Ando Camargo, nos seus acessos fantasiosos a um sítio povoado de cães e coelhos, este inalcançável desejo de posse é incitado pelo companheiro,  de devaneio e desditas, George, personificado energicamente por Ricardo Monastero.

E são os contrastes de fisicalidade e verbalização dos dois personagens que tornam prevalente este trágico flagrante da condição humana. Entre a frágil proteção do consolo de uma amizade e o desnudamento do fracasso, da solidão , da rebeldia e do ódio.

Amplificada no dimensionamento psicológico dos outros personagens : o isolamento  racial em Crooks(Tom Nunes),os melancólicos achaques da velhice de Candy(Roberto Borenstein),o frio destemor de Carlson (Pedro Paulo Eva), os desmandos  do capataz  Slim(Thiago Freitas),a incompreensão de Curley(Cássio Inácio Bignardi) diante da opressiva condição e os anseios de sua mulher  Mae (Natallia Rodrigues).

Na paisagem inóspita e de um céu sem horizontes, sugestionada cenicamente (Marcio Vinicius) na aridez de exíguos alojamentos, mísera indumentária ( Fábio Namatame), melancólicas sonoridades(Martin Eikmeier) e sombrios contornos luminares(Guilherme Bonfanti).

Cabendo ao firme e sensorial cuidado diretorial de Kiko Marques sustentar o equilíbrio estético/ emotivo entre o verismo impiedoso de vidas abissais, onde um gesto de ternura pode ser assassino, com uma poética imersão no imaginário idealístico da esperança e da crença em dias melhores, ecoando, assim, uma solução reflexiva do próprio Steinbeck:

“A única coisa que a gente deve cuidar é de dar sempre um passo à frente, um passo , por menor que seja”.


                           Wagner Corrêa de Araújo





SOBRE RATOS E HOMENS está em cartaz no Teatro I, do CCBB,Centro/RJ, de quinta a domingo, às 19h.100 minutos. Até 30 de abril.

O OLHO DE VIDRO: ENTRE DOIS DESTINOS


FOTOS/ALIS MÍDIA

“Era de vidro o seu olho esquerdo. De vidro azul-claro e parecia envernizado por uma eterna noite. Meu avô via a vida pela metade, eu cismava, sem fazer meias perguntas...”

Prólogo do livro do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós que, paralelamente às reflexões confessionais do ator Charles  Asevedo, inspirou o primeiro monólogo da dramaturga Renata Mizrahi – O Olho de Vidro . Extensivo , em contínua intensidade, na artesanal  direção conjunta de Flávia Pucci, Guilherme Leme e Vera Holtz.

E que na inventiva junção memorialista do escritor e do ator alcança uma destas significativas  incursões autorais, na sua transmigração livro>palco. Sem nunca deixar de ser um  desafio no   rompimento conceitual entre duas linguagens artísticas e de consecução , em sua plenitude, apenas no seu resultado cênico.

Com um incentivo maior a partir de seu proposital direcionamento como uma obra aberta a ser completada pelo  imaginário de cada leitor, implícito à própria proposta de textualidade da obra original de 2004 ( O Olho de Vidro de Meu Avô).

Afirmando convictos o personalismo de suas memórias da infância , há uma sincera dialetação na similaridade das lembranças entre o real e o sonhado, do olho corpóreo ao olho mecânico, do autor/narrador e do personagem/ator.

Na transmutação das próprias palavras do escritor em Bom Destino - “com o olho direito meu avô via o sol, a luz, o futuro, o meio dia”, Charles Asevedo  visualiza as alegrias do convívio familiar em Belford Roxo.

Enquanto com o outro olho, o de vidro, “o esquerdo ele via a lua, o escuro, o passado, a meia noite”, o ator questiona a incompreensão paterna pelo diferencial afirmativo de suas primeiras descobertas sexuais.

Na simplicidade funcional dos elementos cenográficos(Aurora dos Campos) – uma lousa, uma mesa e uma cadeira (com seu dúplice referencial ao universo escolar e da leitura,  tanto do escritor como do ator), integralizado sob sóbrias nuances desde o figurino cotidiano ao desenho de luz( Tomás Ribas) e das incidências sonoras(Marcello H).

Onde tanto a carga de verdade interior do inventário dramático(Renata Mizrahi),a compreensão do personagem e o domínio do espetáculo( no seguro tríptico Holtz /Leme/Pucci),ampliam a espontânea emotividade na entrega verista ao dimensionamento psicológico e de digno alterego( Charles Asevedo) da performance.

E como não ecoar na cumplicidade da plateia a força reflexiva de um livro/peça capaz de tais palavras poéticas:

“O que seu olho de vidro não via, ele fantasiava. E inventava bonito, pois eram da cor do mar os seus olhos. E todo mar é belo por ser grande demais. Tudo cabe dentro de sua imensidão: viagens, sonhos  , partidas, chegadas, mergulhos e afogamentos”...

                                         Wagner Corrêa de Araújo


O OLHO DE VIDRO está em cartaz no Centro Cultural Correios/Centro/RJ, de quinta a domingo, às 19h. 60 minutos. Até 30 de abril.


TOM NA FAZENDA : ATRAÇÃO E REPULSA


FOTOS/ JOSÉ LIMONGI

Um dos mais  originais e incisivos textos teatrais sobre o intimismo e a agressividade de uma sexualidade que não se aceita ou que, impulsionada pelo medo, é impedida de exteriorizar o seu  real desejo.

E que aparece, com uma pesada carga de sofrido conflito, ao ocorrer o encontro casual de um gay, livremente assumido,  com a postulação, radicalizada pela violência e rebeldia, de um homofóbico.

É este o complicado confronto que conduz a trama dramatúrgica , em laminar denúncia ao preconceito, na peça Tom na Fazenda, de Michel Marc Bouchard,  consagrado autor teatral canadense ,em sua primeira incursão pelos palcos cariocas e numa potencial montagem comandada por Rodrigo Portella.

Quando o jovem publicitário Tom ( Armando Babaioff) chega à fazenda onde será velado seu namorado é surpreendido, em dúplice pulsão: pela carolice da mãe (Kelzy Ecard) do morto ,  com suas insistentes citações evangélicas;e pelo “bullying”do outro filho (Gustavo Vaz), impactado, sempre, por qualquer referência à homossexualidade do irmão  diante da figura materna.

É assim, no decurso de quase duas horas, que se estabelece um jogo visceral , entre uma brutal fisicalidade e um soturno desnudamento psicológico de identidades e rivalidades  eróticas entre dois homens. Entremeada por feminina presença  no cego engano   do falseamento, em grotesco substitutivo, do homo/amante Tom em nada mais que um fiel amigo do filho pranteado.

Episodicamente interrompido pela montagem da ilusória namorada(Camila Nahary)em outro ato de obscurecimento, via um hipócrita discurso , da escandalosa vergonha do sexo entre iguais. Capaz, temerariamente, de estremecer, ali, a prevalência cotidiana do  convencionalismo moral/religioso.

A árida rusticidade da ambientação cenográfica (Aurora dos Campos), na insalubridade de poeira e lama,  contamina a elegância dos figurinos( Bruno Perlatto), enrijece torsos nus, suja faces e cabelos. Alcançando este barro, pelos efeitos da luz (Tomás Ribas), uma ceramista corporificação plástico/visual.

Num quase referencial estético de thriller psicótico  (presente na versão fílmica,2015, de Xavier Dolan) , os embates de domínio e submissão,de aproximação sado/masoquista, revelam uma arrojada, densa e enérgica performance da dupla de atores(Armando Babaioff / Gustavo Vaz).

Com arrasadora culminância no desaforo metafórico, entre força hostil e abuso sensual, do duo coreográfico (Toni Rodrigues),na passionalidade latina de acordes sonoros(Marcello H).

O clima de tensão dos solilóquios confessionais é estigmatizado , ora nos questionamentos afetivos do personagem titular ,ora na alternância  de citações evangélicas e reflexões domiciliares, em artesanal performance de Kelzy Ecard.  

Completando-se o sincretismo cênico na convicção  , na consistência e na sinceridade com que a direção de Rodrigo Portella imprime ao emblemático relacionamento físico/afetivo de dois homens que se odeiam e se amam mutuamente.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


TOM NA FAZENDA está em cartaz no Oi Futuro, Flamengo,quinta a domingo, às 20h. 110 minutos. Até 14 de maio.

TOM NA FAZENDA em nova temporada, no Teatro Poeirinha, quinta a sábado, às 21h; domingo,às 19h. 110 minutos. Até 30 de novembro.

JENUFA : ENTRE A ASPEREZA E O LIRISMO


FOTOS/JULIA RÓNAI

Foi desde a estreia da peça original de Gabriela Preissová na Praga de  1890, que Janácek foi impulsionado à composição daquela que seria sua mais famosa e popular ópera – Jenufa.

Que sobe à cena , sem nenhuma repercussão, em 1904, seguindo-se Praga em 1916 e, finalmente, com maior reconhecimento , na Ópera de Viena (1918). Mas sua consagração definitiva só viria nos pós anos da Segunda Guerra Mundial.

Revelando-se , enfim, a importância de uma criação operística , inovadora e referencial em vários de seus elementos composicionais. Onde sua corajosa abordagem temática da condição feminina oprimida a aproxima  , com sua nuance verista, da dramaturgia de Ibsen.

Ou , esteticamente, na presença de um sutil sotaque wagneriano, tanto na sua estruturação musical como na elaboração autoral de seu libreto. Aspectos que convivem com seu fundamental papel de autonomia artística para a ópera nacional tcheca, iniciada com Dvorak e Smetana.

Jenufa ( soprano Gabriella Pace) constrói sua trama narrativa em torno do preconceito assassino da matriarca/sacristã ( soprano Eliane Coelho) por uma gravidez pré-marital , paralela à indiferença e desprezo  do futuro pai Steva( Ivan Jorgensen) e à grotesca desfiguração facial da personagem titular pelo ciúme do pretenso amante Laca ( Eric Herrero).

Com seu libreto de perceptível progressão dramática é uma ópera que exige um veemente dimensionamento psicológico em sua performance , já que seu mote é a passionalidade de um amor obsessivo e a visceral resistência à violação do arraigado convencionalismo moral.

Aqui, numa co-produção original da  Buenos Aires Lírica e Cia. Ópera Livre,  no Theatro Municipal/RJ,  os cantores, tendo que se sustentar rigorosamente como atores , alcançam na artesanal conduta direcional de André Heller-Lopes o necessário rendimento dramático/musical de uma ópera dentro de uma peça teatral, como a Salomé (Oscar Wilde>R.Strauss) ou Pelléas et Mélisande (M. Maeterlinck>Debussy).

Emoldurada por uma orquestra(OSTM) conduzida por Marcelo de Jesus, com acurado equilíbrio entre a intensidade  de acordes nervosos ( às vezes soando alto demais com prejuízo das projeções vocais ) e  das alternâncias líricas. Com incidentais  recortes folclóricos nos propícios cantos corais (Jésus Figueiredo) e danças regionalizadas (João Wlamir).

A armação cenográfica (Daniela Taiana) usa da mobilidade de treliças de madeira decoradas com temas florais para sugestionar a ambientação de paisagem rural, moinho e interiores, com uma indumentária(Sofia Di Nunzio), mix anos 30/camponesa. Ressaltada num desenho luminar( Fabio Retti), ora vazado ora  sombrio.

Na extensiva  competência desta montagem,  pela organicidade de um elenco de doze intérpretes, ao lado de elementos do Coro do TM, destacam-se no domínio cênico/musical,  pelo presencial físico e no trânsito por expressiva e naturalista verdade :

O fraseado engenhoso da soprano Gabriella Pace, potencializado entre a quase ingenuidade juvenil do primeiro ato aos solos lamuriosos do desespero materno (“Meu coração sente como se estivesse sendo esmagado por uma pedra”) com a do abandono e a reconciliação amorosa da última cena.

A riqueza dos timbres do tenor Eric Herrero, numa vocalização de belo alcance e até mesmo de demasiado lirismo para a personificação da “vendetta “ agressiva, mas justificada na envolvência emotiva do redentor dueto final com Gabriella Pace.

Mas, sem qualquer dúvida, o fio condutor de alta envergadura musical, maturidade vocal e exercício pleno do talento de cantora e atriz, é o transcendente desempenho, com sangue e alma, da soprano Eliane Coelho, resultando na exaltada adesão e cumplicidade da plateia com Jenufa ,  em uma irresistível  “noite na ópera” 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


JENUFA está em cartaz no Theatro Municipal /Centro/RJ, terça 4 e sexta 7 , às 20h;domingo, 02 e 09 de abril, às 17hs.

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