RETROSPECTIVA TEATRAL 2024 : UM ANO REVELADOR DE DRAMATURGIAS SÓLIDAS SINTONIZADAS COM A PROBLEMÁTICA CONTEMPORÂNEA


Não Me Entrego Não. Flávio Marinho/Dramaturgia/Direção. Com Othon Bastos. Maio/2024. Beti Niemeyer/Foto.


Com ascendente recuperação da atividade teatral, a temporada 2024 teve seus grandes destaques nas peças de consistente teor reflexivo e intencionalismo crítico no entorno da nossa realidade política e social, sob ecos memorialistas de tempos difíceis. Como uma lembrança reflexiva à resistência entre o ontem e o hoje na passagem dos sessenta anos de um infame período de turbação da liberdade e dos direitos humanos mais as ameaças golpistas da recente (des) governança anterior.

A começar por Lady Tempestade, reunindo Silvia Gomez (dramaturgia), Andrea Beltrão (performance) e Yara de Novaes (direção) em tributo cênico aos desaparecidos ou aos mortos sem sepultura num compasso sartreano, sobre uma das mais tormentosas eras da história política brasileira. Além das peças - homenagem com dois ícones do teatro brasileiro entre os séculos XX e XXI – Othon Bastos e Renato Borghi.

Este último com O Que Nos Mantém Vivos?, em  dúplice referencial titular simbólico, incluindo ainda Não Me Entrego Não. Em que, na formatação biográfico-confessional, Flávio Marinho conecta sua envolvente textualidade autoral a um artesanal direcionamento para a carismática performance deste grande ator de ontem, de hoje e de sempre que é Othon Bastos.


A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. Leonardo Netto/Direção. Com Guida Vianna/Silvia Buarque de Holanda. Fevereiro/2024.Nil Canine/Foto.


Sem deixar de destacar, também, Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo, monólogo em que Tuca Andrada, com irrestrita e ininterrupta pulsão de força energética-interpretativa, provoca espontâneo conceitual da frase síntese de uma época, com o apelo poético-libertário de Torquato Neto, “vai bicho desafinar o coro dos contentes”.

E é se inspirando em sinalizadora canção de Cazuza que Rogério Corrêa foi responsável pela mais mordaz tragicomédia de 2024 - Mostra a Tua Cara, revisitando sob riso inteligente, o reiterativo circuito pejorativo de dois presidentes eleitos, a partir do primeiro -  Collor - e ecoando no penúltimo deles auto denominado de "messias". Com quatro personagens folhetinescos, dimensionados com proposital exagero grotesco, irradiando comicidade para desentorpecer conscientizando o mais conservador dos espectadores, numa categórica direção de Isaac Bernat.

Partindo das transposições entre o texto literário e o palco, vamos encontrar duas exemplares versões teatrais, de um conhecido conto de Lygia Fagundes Telles ao romance premiado de um escritor estreante - Stenio Gardel. Na peça A Palavra Que Resta sob um exemplar uso das construções poético/verbais do autor cearense, por Daniel Herz e seus convictos Atores de Laura, transmutadas em luminoso sotaque de um quase manifesto contra o preconceito no que concerne à livre identificação da sexualidade.  

A original gramática cênica alcançada por Analu Prestes, em sua parceria concepcional com a diretora Silvia Monte, fez de Senhor Diretor um dos solos femininos mais tocantes do ano, sabendo como alcançar a completa coesão entre a palavra escrita e falada para contagiar o publico com o singular retrato de uma conservadora “senhorinha” sexagenária.

Outras incursões teatrais em temáticas protagonizadoras da condição feminina tiveram, de um lado, um diferencial estético na abordagem da obra da visionária artista plástica mineira Lygia Clark. Promovendo na peça Lygia, de Maria Clara Mattos, um sensorial convívio especular entre a obra escultórica/manipulável, o espectador e sua exponencial intérprete (Carolyna Aguiar), no comando inventivo de Bel Kutner.  

Além da sempre atenta parceria das atrizes Débora Falabela e Yara de Novaes, as mais recentes sendo Prima Facie e Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante, ambas enfatizando a masculinidade tóxica pelos abusos sexuais, do estupro à violência homicida. Enquanto Daniela Pereira de Carvalho dá um recado contundente numa das mais viscerais análises dos conflitos e da rejeiçao familiar ao relacionamento afetivo entre duas mulheres, em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, com irreprimível direção (Leonardo Netto) e extasíaca interpretação de Guida Vianna e Silvia Buarque de Holanda. 

(Não Me Entrego Não reestreia breve no Teatro Vannucci. Lady Tempestade e Senhor Diretor voltam ao cartaz no Teatro Poeira, em 2025, sendo todas absolutamente imperdíveis, o que se estende, sem qualquer exceção, às 10 peças aqui citadas). 

                                                                                                                 

                                            Wagner Corrêa de Araújo

                                             

Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia.Yara de Novaes/ Direção Concepcional. Com Andrea Beltrão. Janeiro 2024. Nana Moraes/Felipe Ovelha/Fotos.

O QUEBRA-NOZES / BALÉ DO THEATRO MUNICIPAL : SOB MIDIÁTICA PROPOSTA CÊNICA, ENCERRANDO A TEMPORADA CARIOCA DE DANÇA 2024

O Quebra-Nozes/ BTM. Helio Bejani/Jorge Teixeira/ Direção Concepcional/Coreográfica. Dezembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos.


Ninguém jamais poderia imaginar que aquela instável estreia de Quebra-Nozes em São Petersburgo, dezembro de 1892, acabaria transformando o terceiro dos balés de Tchaikovsky, num dos espetáculos favoritos das famílias, especialmente das crianças, com sua conexão temática do encantamento e da magia de uma noite de Natal.

Embora o seu enredo, inspirado num conto gótico de E. T. A. Hoffman, de 1816, sugestionasse inicialmente um clima soturno através das malévolas artimanhas do Rei dos Camundongos, foi a adaptação definitiva por Alexandre Dumas, pai, que transmutou tudo isso numa fábula entremeada por um delirante clima de aventura, mistério e fantasia.

A fascinação exercida por este balé há mais de um século é irrestrita e, além da versão  ligada rigorosamente à sua original concepção coreográfica por Marius Petipa, com inúmeras releituras modernas menos presas à tradição. Como foi o caso da introdução de brinquedos eletrônicos na coreografia de Mark Morris ou de sua partitura sendo executada jazzisticamente, numa subvertida titulação de “Quebra Nozes do Harlem”.

Basicamente, o enredo do emblemático balé mostra uma festa de Natal onde a menina Clara ganha como presente de seu tio Drosselmeyer, um boneco quebra-nozes e, ao adormecer, tem um sonho que a conduz magicamente aos reinos da neve e dos doces, depois dos sustos ao se deparar com uma batalha entre soldadinhos de brinquedo e de raivosas ratazanas.


O Quebra-Nozes/BTM. Helio Bejani e Jorge Teixeira/Direção Concepcional Coreográfica. Javier Logioia Orbe/Regência OSTM. Dezembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos. 
    

Narrativa que acabou transformando O Quebra-Nozes no espetáculo coreográfico mais concorrido, com suas habituais temporadas no mês em que se comemora o evento religioso/social. Por sua atração exercida sobre muitas crianças sendo, quase sempre, o primeiro contato que estas tem com uma performance completa de balé clássico e de uma orquestra sinfônica.

Ausente do palco do Theatro Municipal desde 2016, O Quebra-Nozes volta sob um dúplice comando concepcional e coreográfico (Helio Bejani e  Jorge Teixeira), partindo do original de Marius Petipa. Em montagem com uma maior inclusão dos alunos iniciantes e adiantados da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, ao lado dos integrantes oficiais do BTM, além de nova cenografia (Manoel Puocci/C. Galdino) e de vistosos figurinos (Tania  Agra).

Onde o maestro argentino Javier Logioia Orbe, na firme regencia da OSTM, mostrou sua reconhecida intimidade de longa data com a música de Tchaikovsky para balé. Embora sem conseguir superar os reverberativos acordes das trompas, em algumas das passagens da partitura, num deslize que tem sido ocasional entre os instrumentistas deste naipe.

Havendo a introdução, durante o prólogo orquestral, de uma não habitual representação cenográfica de um orfanato, quebrando em parte a expectativa de surpresa diante do belo cenário natalino. Incluindo-se, ainda, uma possível restrição ao painel frontal do Ato II, pelo sotaque quase apelativo em sua figuração de bolos e tortas, para conceitualizar pictoricamente o Reino dos Doces.

A atuação performática do Corpo de Baile e dos solistas demonstrando um coesivo desempenho tanto nas cenas de conjunto, como nos solos e formações grupais das danças características. Também não deixando de ressaltar, aqui, no staff masculino as seguras participações de Rodrigo Hermesmeyer como partner nas cenas finais, no papel do Príncipe, e de Edifranc Alves, num prevalente uso da pantomima para um ator/bailarino na sustentação do personagem Dresselmeyer. 

Com alguns destaques mais que especiais no cast feminino da estreia, desde uma expressiva Manuela Roçado como a Rainha do Reino das Neves. Ou de Márcia Jaqueline, com precisa técnica e emoção presencial numa convicta Fada Açucarada do Reino dos Doces, no celebrado Pas-de-Deux do Ato II, com um alcance exponencial nas suas extensivas e exigentes variações.

Através de uma superprodução provocadora de inusitado surto de buscas com instantâneo esgotamento de ingressos, o que levou à correta decisão do Theatro Municipal para transmitir as três últimas récitas num telão externo. Num quase processo identitário com midiáticos grupos de rock e de MPB, sob perceptível fenômeno ascendente de ampliação do interesse do público carioca pelo balé clássico...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo  




O Quebra-Nozes/Balé do Theatro Municipal, está em cartaz no TMRJ, com elenco e horários alternativos, desde o último dia 12, quinta-feira, até o próximo domingo, 22 de dezembro.

DE BACH A NIRVANA/FOCUS CIA DE DANÇA : REFINADO DIÁLOGO COREOGRÁFICO ENTRE A MÚSICA BARROCA E O GRUNGE ROCK


Focus Cia de Dança / De Bach a Nirvana. Alex Neoral/Direção/Coreografia. Dezembro 2024. Dan Coelho/Fotos.



De Bach a Nirvana com a Focus Cia de Dança, uma das mais conceituadas no panorama brasileiro contemporâneo, com reflexos além fronteiras, e sempre sob a direção concepcional/coreográfica de Alex Neoral,  promove um atemporal diálogo entre a riqueza harmônica da música barroca de Johann Sebastian Bach e a fluidez energética do grunge rock de Kurt Cobain e sua banda Nirvana.

E é esta integração estética entre excepcionais concertistas e qualitativos bailarinos que faz deste encontro das habilidades técnicas de cada um destes artistas, um espetáculo tanto capaz de se enquadrar no projeto Sala em Movimento da própria Sala Cecilia Meirelles, como na sua possível conceitualização estilística de Recital Coreográfico.

No qual o espaço de um tradicional palco de concertos transmuta-se num dialetal encontro da música clássica,  do rock e da dança contemporânea, incluída a plasticidade dos seus elementos arquitetônicos recentemente restaurados, desde o belo painel modernista frontal às intervenções participativas dos bailarinos, da caixa cênica à plateia. Inicializada com uma indumentária mais cotidiana, alternativa em sua segunda parte nas variações de peitorais masculinos desnudos e dos figurinos femininos de saias a malhas.

Ampliando o subliminar apelo sensorial através dos efeitos de luzes, ora vazadas ora focais, sublinhando com cores os detalhes em relevo branco do painel, no entremeio de expansiva sonoridade acústica nas composições executadas, da expressividade dos acordes bachianos à dinâmica rítmica dos sons grunge/roqueiros.   


Focus Cia de Dança/ De Bach a Nirvana. Alex Neoral/ Direção/Coreografia. Dezembro/2024. Manu Tasca/Fotos.


Onde há que se referenciar a participação no formato de um quinteto dos notáveis instrumentistas, a saber - Erika Ribeiro (piano), Samuel Passos (viola), Nikolay Spoundjiev (violino), Emília Ivova Valov e Daniel Silva (violoncelos), apresentando-se ora em solos a formações grupais, em posicionamentos cênicos diversificados.

Na interatividade com bailarinos da melhor capacitação tecno-artística, caso dos oito do staff da Focus Cia de Dança (Bianca Lopes, Carolina de Sá, Cosme Gregory, Letícia Tavares, Lindemberg Molli, Paloma Tauffer, Yasmin Almeida, Wesley Tavares), além dos convidados especiais (Luísa Vilar e Márcio Jahú).

Todos eles mostrando uma potencial versatilidade, sob  uma atuação conjunta que nunca deixa de relevar aptidões técnicas paralelas à ressonância exterior de uma psicofisicalidade entremeada pela profundidade subjetiva de cada bailarino. Convicta e reveladora para exprimir a envolvência de momentos gestuais catárticos proporcionados pelas incursões, entremeadas com pausas de silêncio, nos Prelúdios, Fugas, Partitas, Contrapontos, Árias e Suítes de Bach.

Ou então, induzidos pela energia de passos mais agitados e desinibidos das composições roqueiras de Kurt Cobain para o Nirvana, numa entrega de sua corporeidade gestual freestyle ao balanço contagiante do quase frenesi de uma disco dance.

Aliás há que se lembrar da contribuição histórica do bailarino Tony (Anthony Hodgkinson) para a pulsão dançante do Nirvana o que fez da banda um tema inspirador para coreografias contemporâneos, como é o caso, aqui, da releitura inovadora de Alex Neoral para clássicos temas da banda.  

Na sua obra De Bach a Nirvana sabendo como imprimir um descortinador elo entre duas épocas, da dança à música, do sugestionamento etéreo do barroco à alegria feérica do rock, em espetáculo retrospectivo com obras aplaudidas antes (Um a Um e Interpret) em circuito internacional (Lyon/França e Montreal/Canadá).

O que, nesta sua última apresentação, acaba por contribuir, não só para o incentivo a uma vinculação maior entre linguagens artísticas diversas, visando tanto o alcance do público habitual de performances coreográficos, como a conquista daqueles aficionados exclusivos da música em salas de concerto.

Fazendo, assim, com que se encerre a temporada carioca 2024 de dança contemporânea com um meta espetáculo, ao mesmo tempo, enunciador, reflexivo e provocante, na sua abertura de perspectivas para a arte coreográfica sob moldes brasileiros...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

De Bach a Nirvana/Focus Cia de Dança. Sala Cecília Meirelles. Numa breve temporada, entre quinta e sábado, de 12 a 14 de dezembro. 

ALASKA : QUANDO A CONEXÃO, SOB UM GLACIAL DESAFETO, DEIXA RASTROS BRILHANTES PARA UM RECLUSO ASSUMIDO E UMA DESAFORTUNADA NOIVA

 

Alaska. Cindy Lou Johnson/Dramaturgia. Rodrigo Pandolfo/Direção Concepcional. Dezembro/2024. Pat Cividanes/Fotos.


Deixe-me dançar com demônios em estrelas mortas. Deixe minhas cicatrizes deixarem rastros brilhantes”... Com estas palavras poéticas e reflexivas a dramaturga americana Cindy Lou Johnson conceitualiza sua peça Brilliant Traces, de 1989.

Agora, finalmente, nos palcos cariocas, sob a simbólica titulação de Alaska. Com uma apurada tradução de Luiza Vilela, sob a direção concepcional de Rodrigo Pandolfo, em dúplice atuação cênica com a atriz Louise D’Tuani, a peça estreou em São Paulo significativamente, por sua abordagem intimista da solidão, no período pós-pandêmico, em 2022.

Em que ele, pela segunda vez, exercia o ofício de diretor teatral, para completar-se vencendo o desafio de uma frustração, depois de uma experiência não muito gratificante, em 2014, com A Moça da Cidade. Mas, em Alaska, no alcance de diferencial sotaque criativo, através de montagem tendo como referência estética a base gestual/dramatúrgica de um teatro coreográfico.

Onde a participação de uma “contraregragem performática”, representada por dois atores/bailarinos  (Alexandre Maia e Tayson Pio) tem maior dimensionamento cênico, com a extensão inventiva de sua direção de movimento (Lavínia Bizzotto) aos protagonistas Rodrigo Pandolfo e Louise D’Tuani.  


Alaska. Cindy Lou Johnson/Dramaturgia. Com Rodrigo Pandolfo e Louise D'Tuani. Dezembro/2024. Pat Cividanes/Fotos.


O que acaba por imprimir maior força dramática a um enredo intimista pontuado pelos conflitos existenciais vividos por um convicto ermitão Henry (Rodrigo Pandolfo), abrigado na ambiência cinzenta e solitária de uma casa cercada pela paisagem branca, fria e  glacial  do Alaska. E que, ao ouvir inusitados toques à sua porta, se depara com o provocador espectro de uma estranha mulher - Rosanna de Luce (Louise D’Tuani) vestida como uma noiva.

Misteriosa e enigmática, ela teria abandonado um automóvel após empreender a fuga de uma indesejada cerimônia nupcial. Representada num clima de delírio e de fantasia com sua indumentária (Jay Boggo), paralelo a um sotaque mais cotidiano e atemporal nos figurinos masculinos.

Tudo isto sugestionado pela pictórica ocupação nebulosa  da caixa cênica (Miguel Pinto Guimarães), com minimalistas elementos materiais capazes, assim, de transmitir a sensorial impressão de gélidos silêncios, sinalizados pelo vazio interior e pela ausência física nas distanciadas relações pessoais dos dois personagens.

Em que este mergulho na psicofisicalidade da dupla vai se transmutando, pela plasticidade sensitiva dos efeitos luminares (Wagner Antônio), ora em tons catárticos, ora energizados, ao compasso das intervenções sonoro/musicais (Azulll), acabando por potencializar uma angustiada corporeidade performática.

A absoluta entrega na personificação de dois amargurados seres é intermediada por inesperadas reações afetivas, como o beijo dado nela enquanto dorme quase desmaiada  ou de repulsa quando a mulher diz a ele - “Quem você pensa que eu sou? Alguém que precisa de alguém para alimentá-la?. Até explodir a  raiva e a rejeição quando Henry deixa seus delicados sapatos queimarem no forno.

Prevalecendo, durante toda interpretação, uma consistente investida psicológica nos contornos identitários destes personagens, o que é expresso em cada uma das suas  nuances vocais. E no desempenho de um fluente inventário dramático dos seus contundentes transes humanos, com uma precisa correspondência na envolvência de sua expressão corporal.

Contando com um qualitativo staff atoral, incluído seu diretor concepcional, esta refinada versão de um texto dramatúrgico que se equilibra, entre uma visão realista e um subliminar suporte onírico, contagia atores-espectadores por sua intrigante e questionadora narrativa.

Alaska, em sua atenta e oportuna releitura brasileira, nunca, enfim, deixando de remeter à pulsão do incisivo ideário dramatúrgico de Cindy Lou Johnson no entorno da conexão que deixa rastros brilhantes (Brilliant Traces) :  “Para mim, esta peça é sobre a necessidade de se conectar com os outros. Estamos aqui. Não estamos isolados”...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

Alaska está em final de temporada no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h, até o próximo dia 15 de dezembro.

CRISTINA 1300 - AFFONSO ÁVILA HOMEM AO TERMO : UM META DOCUMENTÁRIO SOBRE POESIA, LITERATURA E BARROCO MINEIRO

Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

O poeta, ensaísta e pesquisador do Barroco, o mineiro Affonso Ávila é tema de um incisivo filme documentário, sob ideário, roteiro e direção de Eleonora Santa Rosa, que em noite prestigiada no Estação Botafogo, finalmente estreou no RJ, depois de BH, Ouro Preto, São Paulo, seguindo para outras capitais, com previsões no exterior.

O filme traz uma linguagem inovadora para os habituais documentários sobre literatura dando, em caráter prioritário, a palavra ao próprio poeta para falar sobre sua obra em importantes registros opinativos sob o formato de auto-depoimentos, gravados e filmados com o escritor.

Além da proposta de não só ouvir a sua palavra personalista, mas também de mostrar, em plásticas composições gráficas e virtuais, a textualidade dos seus poemas, considerados da maior simbologia como expressão de uma revolução estética na poesia brasileira.


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

Affonso Ávila fez parte de fundamentais movimentos literários a partir dos anos 50, desde a revista Tendência às suas colaborações participativas no Concretismo, através da publicação paulista - Invenção - onde atuou ao lado de outros nomes básicos que revolucionaram o modo de ver e de sentir o ofício poético, com um olhar sempre armado na contemporaneidade.

Com uma vasta bibliografia, em livros publicados indo da poesia ao ensaio literário, além de ser considerado uma autoridade na pesquisa e na valoração do Barroco Mineiro que o tornou um marco, tanto no seu discurso analítico do movimento sob todas as suas derivações, como nos seus reflexos  trans temporais na arte e na cultura brasileira.

Uma exibição mais que afetiva, como sobrinho do casal de poetas Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, com os quais passei dois memoráveis anos adolescentes, em anos turbulentos e obscuros pós implantação da ditadura militar, 1965/66, exatamente no icônico endereço Rua Cristina,1300 para completar o Curso Clássico na quase vizinha Faculdade de Filosofia da UFMG.

Ressaltando ser ali, naquela casa, um quase obrigatório ponto de encontro para a intelectualidade mineira e para escritores além-horizontes das Gerais. Um delírio presencial, só no curto período de convivência familiar com o estimado casal e filhos (a maioria tornada de poetas a artistas).

Imaginem o encantamento, para um inquieto espírito de alguém entre 16/17 anos, ver e ouvir de perto Murilo Rubião ou Murilo Mendes, e até o francês Michel Butor, entre tantos outros da antiga e da novíssima geração, Adão Ventura, Sérgio Santana, Luís Vilela e por aí vai.

Onde, esta noite de exibição representou uma proustiana viagem no tempo, recheada com um sotaque roseano de mineiridade. Completada no reencontro de um dos amigos jovens daquela época de busca e de revelação vocacional, caso de talentos artísticos como o do hoje conceituado nome da criação plástica brasileira Angelo Marzano.

E também pela presença do reconhecido poeta, escritor e tradutor apurado, crítico e ensaísta Julio Castañon Guimarães que tive o prazer de conhecer em tempos posteriores, nos meios acadêmicos-universitários juizdeforanos, ainda no final dos anos sessenta. Ambos, aqui, no uso da palavra certa na hora certa, na mesa de debates depois do filme, coordenada por sua convicta diretora - Eleonora Santa Rosa.

A responsável por esta sessão fílmica de tanta empatia e mergulho sensorial proporcionados, simultaneamente, pela conexão da  luminosidade do legado de um poeta maior, com a magia autoral de um filme, incluída a participação da voz carismática da atriz Vera Holtz na leitura em off dos poemas, tudo, enfim, nos levando a uma emotiva trajetória memorial nos espaços siderais da mente...

                               

                                         Wagner Corrêa de Araújo


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo.  Estação NET Botafogo, 04/12/2024. Da esquerda para a direita, Vera Holtz, Angelo Marzano, Wagner Corrêa de Araújo, Eleonora Santa Rosa e Júlio Castañon Guimarães.

O REI DO ROCK : SOB ENVOLVENTE INCURSÃO DRAMATÚRGICA, A ASCENSÃO E QUEDA DE UM ÍCONE MUSICAL


O Rei do Rock - O Musical. Beto Sargentelli/Dramaturgia Concepcional. João Fonseca/Direção. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos.


Embora a rápida ascensão ao êxito tenha se encaminhado para um controvertido epílogo aos 42 anos, na história daquele que foi titulado como impulsionador de um gênero musical - o rock - de exponencial apelo popular, o legado de Elvis Presley continua vivo meio século depois.

E foi a partir desta narrativa dramatúrgico-musical  que o seu idealizador, autor e protagonista titular - Beto Sargentelli - alcançou um absoluto sucesso de público e o aplauso da crítica desde a sua estreia paulista, seguida por inúmeras indicações a prêmios teatrais.

Chegando, agora, a vez do público e dos palcos cariocas, o privilégio de conhecerem de perto esta bem sucedida produção  - O Rei do Rock - O Musical. Reunindo, em dimensionamento super apurado, desde sua direção artesanal por João Fonseca, a um elenco afinado no traçado presencial de personagens marcantes.

Onde além do brilho imprimido por Beto Sargentelli ao papel de Elvis, não fica atrás especialmente a atuação de Stella Maria Rodrigues como Gladys Presley, uma mãe de fé obsessiva na carreira do filho, ao lado de Stepan Nercessian encarnando o empresário ambicioso - Coronel Tom Parker - que levou Elvis às alturas concorrendo, ao mesmo tempo, para a dramática crise no ocaso dos últimos anos.


O Rei do Rock- O Musical. Com Nathalia Serra, Beto Sargentelli, Bel Moreira. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos. 


Enquanto Stella Maria Rodrigues assume tons emotivos tanto em suas intervenções verbais como na sua expressiva vocalização de temas que a caracterizam, Stepan Nercessian destila um humor irônico no entremeio da malandrice de suas atitudes como promoter interesseiro do roqueiro.

Mas também vale ressaltar a adequação convicta, entre outros atores/cantores, a personagens tais como os de Bel Moreira (Priscilla Presley), Danilo Moura (B.B. King) e Tati Christine (Sister Rosetta Tharpe), integrando um extenso cast, ora mais protagonista ora mais coadjuvante, com boas e coesivas atuações.

Numa cenografia (Giorgia Massetan) despojada mas de plasticidade funcional, incluído um quase atemporal sotaque indumentário (Fábio Namatame), sob teor bastante identitário na figuração de Elvis. Sempre ampliada nos habituais efeitos luminares de Paulo Cesar Medeiros, para o alcance dos propósitos de um espaço cênico preenchido por falas teatrais, dança e muita musicalidade.

Priorizando um repertório de algumas das canções antológicas como Love Me Tender, Suspicious Mind, Burning Love, entre as que referenciam desde a base formadora, do country e do blues, direcionando-se sequencialmente aos acordes composicionais daquela que seria a marca estética  sinalizadora do Rock N’Roll.

Para isto, há um potencial empenho de Thiago Gimenes na direção musical conectando o energizado ritmo à correspondente corporeidade gestual pelas coreografias de Keila Bueno. E que acabam por contagiar palco/plateia nas interações físicas de Beto Sargentelli com entusiasmadas espectadoras.

Este, partindo de uma pesquisa exemplar, com visitas a Memphis e outros locais norte-americanos que vivenciaram a jornada criativa de Elvis Presley e também os seus dramas pessoais, dos 18 aos 42 anos. Tudo, enfim, para concretizar um tributo ao pai Roberto Sargentelli, profundo conhecedor do cancioneiro de Elvis, influindo na decisiva vontade de realizar este espetáculo.

Na dúplice intenção concepcional - performática de Beto Sargentelli, já bem reconhecido neste gênero dramatúrgico/musical e, aqui, tanto na função autoral como no ofício de ator protagonista, sendo favorecido pela sua transmutação ao vivo e a cores num singular sugestionamento do próprio Elvis.

O que nesta representação de O Rei do Rock - O Musical, em mais um dos acertos do comando direcional de João Fonseca, só poderia resultar num dos mais surpreendentes espetáculos musicais da temporada teatral 2024...


                                      Wagner Corrêa de Araújo


O Rei do Rock – O Musical está em cartaz no Teatro João Caetano/Centro/RJ,  sexta às 14h e 19h; sábado, 13h e 17h; e domingo, às 11h e 17h; até o dia 08 de dezembro.

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