ANNA KARENINA / EIFMAN BALLET : DEVER FAMILIAR, AMOR PASSIONAL E MORTE SUICIDA NUM INSTIGANTE PAS DE TROIS COREODRAMÁTICO


Anna Karenina/Eifman Ballet. Boris Eifman/ Coreógrafo/Diretor. Outubro/2024. Souheil/Michael Khour/Fotos.


Desde a fundação de sua Cia – o Eifman Ballet de São Petersburgo, nos idos de 1977, o coreógrafo Boris Eifman enfrentou o desafio de assumir uma criatividade pioneira com seu sotaque modernista no conservador universo da dança soviética, chegando inclusive a usar inserções sonoras eletrônicas e roqueiras em seus balés, em tempos políticos ainda recessivos.

Suas coreografias ousavam não só na sua liberdade gestual, ainda que partisse de uma sólida base acadêmica, como na abordagem psicológica de temas inusitados. Caso da sua instigante releitura de um clássico da literatura russa, imprimindo-lhe cenas erotizadas, além do vício no ópio e alucinações (inéditas no romance original) e que precipitam o final trágico de Anna Karenina.

Ao mesmo tempo, as produções de seus espetáculos tem um requinte especial desde os elementos cenográficos  (Zinovy Margolin) aos elegantes figurinos atemporais (Vyacheslav Okunev). Em cenas frontais com espelhos que refletem os bailarinos na ambiência aristocrática de um baile em São Petersburgo ou em externas de uma passarela adornada com esculturas clássicas.

Enquanto luzes vazadas (Gleb Filshtinsky) são alternadas com tonalidades pictóricas chegando a usar efeitos psicodélicos para marcar os delírios e visões de uma mulher atormentada. E indo longe no sugestionamento de um violento ato sexual entre o marido revoltado Karenin (Sergey Volubuev) e a infiel Anna Karenina (Maria Abashova). Ao mesmo tempo provocando uma imersão metafórica num extasíaco envolvimento amoroso à distância de Anna com o jovem oficial de cavalaria Vronsky (Artyom Lepkov).


Anna Karenina/Eifman Ballet. Boris Eifman/ Coreógrafo/Diretor. Outubro/2024. Souheil/Michael Khour/Fotos.

Tudo se completando com uma trilha marcada por trechos de composições de Tchaikovsky, evitando usar qualquer referência dos seus três grandes balés, fazendo prevalecer obras que serviram de temas musicais para Balanchine - da Serenata de Cordas ao Tema com Variações.

Este último na reconstituição de um carnaval em Veneza onde predominam bufões, arlequins e colombinas, deslumbrantemente mascarados, sob uma envolvente Polonaise do Corpo de Baile, ocultando o disfarce dos dois enamorados (Anna e Vronski) sentindo-se forçados a estarem ali para evitar os olhares recriminatórios da sociedade russa.

Ou com inserções, em passagens mais trágicas, de acordes da Sinfonia Patética e da Abertura Fantasia Romeu e Julieta, surpreendendo o público com curiosos sons eletroacústicos para figurar, através do naipe masculino de bailarinos, o energizado movimento e os ruídos de um trem na cena suicida de Anna, no epílogo.

Se aos puristas possa até incomodar a adaptação do épico romance russo concentrada apenas em três personagens (a mulher, o marido e o amante), fica clara a influência de uma dança-teatro expressionista, indo de Béjart a Pina Bausch, no dimensionamento coreográfico e dramático da obra.

Com tal força simbólica a começar na brusca ruptura dos parâmetros estéticos de uma típica cia de balé russa,  sabendo tornar coesivo um subliminar gestual clássico com pulsões acrobáticas e contorsões de dança contemporânea, nas elevações especialmente da protagonista titular.

Com três luminosos protagonistas (alternativos nas outras apresentações) de um perfecionista pas de trois psicanalítico, emotivo e alucinatório de mentes subconscientes em visceral conflito – Maria Abashova  (Karenina), Sergey Volobuev (Karenin) e Artyom Lepkov  (Vronsky)

Acompanhados por um potencial staff de bailarinos, esguios, atléticos e bonitos, sob um porte fisico de modelos fotográficos, preenchendo a caixa cênica em figurações contrastantes do prazer e do pânico, da embriaguez orgiástica dos oficiais colegas de Vronsky ao pesadelo demente e surrealista de Anna Karenina.

Para quem teve a chance de conhecer ou de rever o Eifman Ballet que já passou por aqui uma vez, foi um privilégio absoluto compartilhar momentos de carismático encantamento palco/plateia, na brevíssima temporada de apenas tres apresentações em dois dias paulistas e dois cariocas.

E que este aplauso se estenda à criteriosa seleção do projeto Russian Seasons / Dellarte, na sua destacável missão de abertura de novos horizontes artísticos para a dança e para o público brasileiro...


                                               Wagner Corrêa de Araújo



Anna Karenina/Eifman Ballet se apresentou em dois finais de semana, em SP e no RJ, de 16 a 20 de outubro, respectivamente no Teatro Bradesco e na Cidade das Artes

TRIPLE BILL / BTM : COM UMA DIFERENCIAL VERSÃO COREOGRÁFICA DE RICARDO AMARANTE PARA SCHEHERAZADE


     

Triple Bill / BTM/RJ. Rodrigo Amarante/Concepção Coreográfica. Em cena, Scheherazade. Outubro/2024. Filipe Aguiar/Fotos. 


No apogeu dos Ballets Russes de Serge Dhiaghilev acontece, em 1910, a concepção coreográfica de Mikhail Fokine inspirada pela suíte sinfônica Scheherazade, de Nikolai Rimsky-Korsakv, 1888, numa época em que o exotismo orientalista estava em moda nos circuitos artísticos parisienses. A obra, originalmente em quatro movimentos, não seguiu rigorosamente a temática, a partir das fábulas árabes das Mil e Uma Noites, nem pela titulação conferida pelo compositor a cada um dos seus quatro movimentos.

Tendo na sua estreia, nos papéis protagonistas, a bailarina Ida Rubinstein ao lado do então grande fenômeno da época Vaslav Nijinsky.  Musicalmente um hit sinfônico através de maestros da categoria de Stokovsky a Bernstein e Karajan, sendo por vezes abordada em concepções mais avançadas por novos coreógrafos e cias, especialmente a partir da comemoração centenária dos Balés Russos de Dhiaghilev.

E entre estas, das mais recentes, está a do coreógrafo brasileiro Ricardo Amarante, concebida para o Vanemuine Ballet, Estônia, março de 2022, reapresentada em outros palcos mundiais e, agora, pela primeira vez no Brasil, com o Balé do Theatro Municipal carioca. Scheherazade integrando o espetáculo Triple Bill, completado por mais duas coreografias de Ricardo Amarante - Love Fear Loss e o Bolero, de Ravel, estas já apresentadas ali.

Em suas linhas básicas, o enredo fabular é no entorno de um sultão com seu harém de concubinas virgens onde as escolhidas são eliminadas após a primeira noite de prazeres. Escapando sempre Scheherazade ao narrar contos cuja sequencia era adiada às noites seguintes, até que esta é acusada de trair o sultão com um escravo prisioneiro, conduzindo a um trágico epílogo.


Triple Bill/ Ricardo Amarante/Coreografia. Love Fear Loss. Outubro/2024. Filipe Aguiar/Fotos.


Numa coreografia de Ricardo Amarante que não altera a sequencialidade narrativa da original de Fokine, mas  imprime um subliminar sotaque mais contemporâneo, sustentado em maior sensualidade gestual das cenas amorosas, entre solos e formações grupais, sob movimentos mais atléticos no naipe masculino dos bailarinos.

Com um bem ensaiado corpo de baile e convictos solistas, destacando-se em caráter especial,  o absoluto brilho performático da primeira bailarina Márcia Jaqueline no papel titular, alternado em outros dias por Juliana Valadão e Marcela Borges.

Ampliados pela funcional concepção cenográfica e indumentária de Renê Salazar, sob um evocativo décor árabe/orientalista e por um acurado acompanhamento da OSTM, na firme regência de Felipe Prazeres, sabendo como transmitir o fascínio sensorial  da mais emblemática obra sinfônica de Rimsky-Korsakof.

O programa Triple Bill, com obras do conceituado coreógrafo paulista Ricardo Amarante, sequenciado por Love Fear Loss, seu balé mais representado e aplaudido pela crítica, estruturado em três pas-de-deux, tendo como substrato a temática lírica e trágica de canções que celebrizaram Edith Piaf. Sugestionando o despertar da paixão amorosa (Hymne a l”Amour), dos conflitos da separação (Ne Me Quitte Pas) à dor causada pela perda (Mon Dieu).

A partir das releituras pianísticas (Natahliya Chepurenko), num palco, entre luzes e sombras, com um pianista ao vivo (Murilo Emerenciano) onde tres casais de bailarinos, em indumentárias romantizadas  (ofício inventivo tríplice do coreógrafo), percorrem uma trajetória de passional intimismo pelas emotivas canções compostas por Jacques Brel, Charles Dumont e a própria Piaf (em parceria com Marguerite Monnot).

Com alcance de potencial apelo interpretativo, expressivo e técnico, pelos duos (alternados na temporada) no entremeio dos acordes em compasso de prevalentes adágios, sucedendo-se os seis bailarinos em arabescos, giros, entrelaces e elevações. Sob luminosa performance de entrega amorosa dos três casais, nas sequenciais partes - Love (com Marcella Borges/Michael Willian), Fear (por Claudia Mota/Edifranc Alves) e Loss (através de Juliana Valadão/Cícero Gomes).

Para fechar o espetáculo o popular Bolero de Ravel, outra das vigorosas concepções autorais de Ricardo Amarante que o celebrizaram, além fronteiras, como mais um destes reconhecidos bailarinos/coreógrafos brasileiros. Em momento propício para avaliar, também, o ascendente nível do Balé do Theatro Municipal/RJ, depois de anos difíceis com perda progressiva de sua qualitativa tradição de cia clássica...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo



Triple Bill/BTM, em cartaz no TMRJ, em curta temporada, com horários diversos, de 16, quarta, até domingo, 20 de outubro.

MAESTRO SELVAGEM : NECESSÁRIO RESGATE DRAMATÚRGICO DA VIDA E DA OBRA DE CARLOS GOMES


Maestro Selvagem. Miriam Halfim/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Outubro/2024. Guga Melgar/Fotos.


Este jovem começa onde eu termino”(Giuseppe Verdi).  Foi através destas palavras de entusiasmo e prenúncio de uma trajetória musical, ao assistir (1870), no Scala de Milão, à estreia de Il Guarany,  que o então mestre dos mestres da ópera  italiana, reconheceu o original talento de um brasileiro de origem provinciana - Antonio Carlos Gomes.

Qualquer um de nós, desde a sua infância, é capaz de se identificar com os conhecidos acordes iniciais da abertura da ópera Il Guarany, tema do programa radiofônico oficial  A Voz do Brasil, desde a sua criação em 1935, por Getúlio Vargas e sempre no ar às 19 hs.

Mas, certamente, poucos devem saber sobre a sua vida e obra, entre o Brasil e a Itália, no entremeio de sucessos e tragédias, daquele que viria a ser considerado o maior compositor operístico das Américas, no século XIX. Através de um legado de oito óperas, e algumas incursões em opereta, oratório, sonata, além de hinos, modinhas e canções que se  tornaram populares.

E se você for um destes que se interessam pela história da nossa música sem restrições de gêneros e estilos, corra para ver Maestro Selvagem, mais uma das apuradas criações dramatúrgicas de Miriam Halfim e, aqui, outra vez, sob a artesanal direção de Ary Coslov, tendo como protagonista titular o conhecido ator em atuações no teatro, na televisão e, especialmente, no cinema, estendendo-se à produção e direção cinematográfica, Luciano Quirino.


Maestro Selvagem. Miriam Halfim/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção. Luciano Quirino/Protagonista Titular.  Outubro/2024. Guga Melgar/Fotos.


O minimalista cenário (Marcos Flaksman) ambienta um clima atemporal, através de um painel frontal com projeções videograficas, extensivo a um figurino contemporâneo cotidiano (Samuel Abrantes) com sutil sugestionamento de costumes de época, sob os efeitos luminares, ora vazados ora focais, de Aurélio de Simoni.

Em mais uma de suas primorosas seleções musicais, Ary Coslov, em função dúplice como diretor, dá um panorama antológico entre trechos sinfônicos e vocais das óperas de Carlos Gomes. Incluindo, ainda, um movimento de sua inspirada Sonata Para Cordas, e algumas de suas melodiosas canções, destacando-se a personalista versão cantada de Ney Matogrosso para a modinha Quem Sabe.

O que é correspondido no espontâneo registro gestual (Marcelo de Aquino) do ator em suas movimentações pela caixa cênica ou pelas inflexões referenciais de um maestro regendo, com um discricionário acerto, embora não consiga escapar de reiterativos movimentos, longe da modulação composicional das obras apresentadas.

Onde a força da narrativa dramatúrgica (Miriam Halfim) com uma assumida sequencialidade coloquial dos desafios enfrentados por Carlos Gomes, de sua infância em Campinas, passando pelos seus encantamentos amorosos e sua chegada à capital do Império acabando por conquistar, por seu talento,  o reconhecimento de D. Pedro II, indo se aperfeiçoar em Milão, e compensado pelo triunfo de Il Guarany e de algumas outras óperas.

Até o advento de períodos difíceis, acentuados pelo fracasso de Maria Tudor, pela Proclamação da República (sendo ele, mais monarquista que o próprio Imperador) e por um câncer terminal, interrompendo seu derradeiro alento artístico no Conservatório de Belém do Pará, em 1896, completados seus sessenta anos.

Enquanto o enredo da peça no seu angulo musical faz ecoar a importância de um compositor que, embora preso a um melodismo operístico italiano, ousou abordar temas pátrios como o indigenismo usando instrumentos nativos e a escravidão, falando para o nosso tempo com o presencial de um ator (Luciano Quirino), subliminarmente identificável física e racialmente com Carlos Gomes.

Conectado por uma qualitativa  trilha sonora (Ary Coslov)  capaz de caracterizar as várias facetas do estilo de um  compositor entre a linguagem musical italiana, mas também habilitado por imprimir um sotaque artístico sob raízes brasileiras. Ou mesmo de vislumbrar um ocasional e discreto experimentalismo à moda wagneriana.

Tudo enfim concorrendo - dramaturgia refinada, direção luminosa e convicta performance atoral - para um espetáculo que merece ser conferido por sua proposta teatral didática, de resgate e tributo a um dos grandes personagens da arte musical e da cultura brasileira.


                                                  Wagner Corrêa de Araújo


Maestro Selvagem está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal/Centro/RJ,  quinta e sexta, às 19h; sábado e domingo, às 18h. Ate o dia 27 de outubro.

SENHOR DIRETOR : UM ACERTADO LANCE DE DADOS ENTRE A LITERATURA E O TEATRO

 

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Senhor Diretor. De um conto de Lygia Fagundes Telles. Silvia Monte/ Direção Concepcional. Com Analu Prestes. Outubro/2024. Alexia Maltner/Fotos.


A função do escritor? Escrever por aqueles que não podem escrever. Falar por aqueles que muitas vezes esperam ouvir de nossa boca a palavra que gostariam de dizer”. (Lygia Fagundes Telles).

Reflexão da escritora que remete à sua inventividade de personagens ficcionais tão carregados de verdade confessional e com os quais podemos cruzar, a qualquer hora nas esquinas da vida, como é o caso de Maria Emília. Tema de seu conto Senhor Diretor, no livro Seminário dos Ratos, 1977.

Com similar titulação no formato de um monólogo, em preciosa versão dramatúrgica dirigida por Silvia Monte, preservando o seu original dimensionamento literário, tendo como protagonista, cenógrafa, figurinista e atriz, Analu Prestes com o seu multifacetado talento.

Para um espetáculo direcionado, desde já, como uma bela surpresa, tanto para aficionados da literatura como para os espectadores, por uma despretensão minimalista como montagem cênica mas que faz dele um primor do puro teatro da palavra.

Assistindo-o é como se estivéssemos desfrutando de um inusitado encontro metafórico com a curiosa personagem de Maria Emilia (Analu Prestes), através de sua mentora Lygia Fagundes Telles, conduzidos nesta viagem imaginária, por duas decifradoras presenciais de um espaço tempo quase cinquentenário, capaz ainda de tanto resistir, com seu arraigado conservadorismo comportamental e moral, nos dias de hoje, neste país em que vivemos.


Senhor Diretor. De um conto de Lygia Fagundes Telles. Silvia Monte/ Direção Concepcional. Com Analu Prestes. Outubro/2024. Alexia Maltner/Fotos.


A senhorinha Emília (Analu Prestes) professora aposentada beirando quase setenta anos, sendo então um protótipo de uma daquelas típicas defensoras da tradição na família e nos hábitos sociais, assustada com o que vê numa banca de jornal, ao dar uma voltinha pela rua, certificando-se sobre inaceitáveis e absurdos  sinais dos tempos.

Diante das manchetes sobre desmandos da liberdade sexual, as capas de revista com um jovem casal seminu, ela de biquíni amarelo deixando aparecer partes intimas, sendo enlaçada por braços peludos, decide escrever uma carta de protesto ao Senhor Diretor do Jornal da Tarde.

Onde o frugal elemento cenográfico material se concentra em uma cadeira com braços identificando-se, ora como um móvel doméstico ora como uma poltrona de cinema. Num dúplice sugestionamento plástico (por Analu Prestes) que converge também a uma discricionária e formal indumentária feminina, encimada frontalmente pelo aplique de um esmaecido cravo na lapela.

Completando-se a plasticidade da caixa cênica circular de uma pequena arena, com projeções nas paredes frontais de detalhes de uma banca de jornais e revistas e de um fotograma sem imagens internas, numa funcional ambientação de luzes claras entre sombras (José Henrique Moreira).

Os efeitos da interveniência musical (Yahn Wagner) com um absoluto acerto referencial às escrituras do conto, nos seus instântaneos acordes, lembrando o leitmotiv cinematográfico de Gato Barbieri para O Último Tango em Paris, ou com um novo arranjo coral para a composição de Gilberto Mendes no entorno do poema concretista de Décio Pignatari - Beba Coca-Cola.

A narrativa dramatúrgica sustentando-se numa dinâmica precisa, sabendo como materializar a construção de um personagem, entre o irônico e o risível em seus conceitos  moralistas plenos, tanto de um desalento como de uma bem humorada carga emotiva, direcionados a um contraponto crítico que seduz o espectador.

O que a convicta direção de Silvia Monte imprime ao espetáculo, na fluência coesiva de suas linhas dramáticas e cômicas, numa trama de aparente simplicidade mas que, em compasso paralelo, possibilita transmutar a transparente força do texto literário em envolvente gramática cênica.

Ampliada no domínio completo de Analu Prestes sobre seu papel, nas suas nuances gestuais e vocais, transcendendo-se, mais uma vez, na sua performance irrepreensível, como uma das grandes atrizes de sua geração.

E é ressaltando  o ideário pensante desta peça, resultado de uma qualitativa parceria entre Silvia Monte e Analu Prestes para um feliz experimento com dados  literários><dramatúrgicos, que se pode perceber, ali, um subliminar sotaque do inventivo signo mallarmaico para o ofício da criação : “Todo pensamento emite um lance de dados”...

 

                                      Wagner Corrêa de Araújo

 

Senhor Diretor está em cartaz no Espaço Abu/Copacabana, de sexta a domingo, às 20hs, até 10 de novembro.

A ÚLTIMA SESSÃO DE FREUD : INSTIGANTE DIALETAÇÃO DRAMATÚRGIA ENTRE O RACIONALISMO CIENTÍFICO E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO


A Última Sessão de Freud. Mark St. Germain/Dramaturgia. Elias Andreato/Direção Concepcional. Outubro/2024. João Caldas/Fotos.


Inspirada no livro de 2005 - Deus em Questão - do escritor e psiquiatra Armand M. Nicholi Jr, a peça A Última Sessão de Freud, do dramaturgo Mark St. Germain, transmutou-se em sucesso desde sua estreia na Broadway, em 2009. E mais recentemente - 2023 - dos palcos chegou às telas, em versão direcional de Matthew Brown, tendo como protagonista titular Anthony Hopkins.

E no Brasil, sob a acurada tradução de Clarisse Abujamra, repetiu o êxito da peça original em turnês nacionais, a partir de 2023, chegando, agora, ao palco carioca, com a direção concepcional de Elias Andreato, tendo como intérpretes os atores Odilon Wagner, no papel de Freud, e Marcelo Airoldi (nesta temporada, no lugar de Cláudio Fontana) como o escritor e teólogo irlandês C. S Lewis.

Além de ser indicada aos principais prêmios teatrais paulistas, sua receptividade foi absoluta tanto entre o público como no aplauso da crítica, não só pela sua detalhada reconstituição realista do gabinete de Sigmund Freud. E mais ainda pela luminosa performance dos seus dois atores, por intermédio do artesanal comando de Elias Andreato, com um rico referencial da tradição a que se denominou grande teatro ou, popularmente, “teatrão”.


A Última Sessão de Freud. Elias Andreato/Direção. Com Odilon Wagner (Freud) e Marcelo Airoldi (Lewis). Outubro/2024. João Caldas/Fotos.

Onde o primeiro encantamento da plateia ocorre ao se abrir a cortina e se deparar com uma inacreditável visão naturalista da sala de Freud em Londres, frontalizada,  por uma estante alta preenchida por livros antigos sugestionando edições raras, além de réplicas arqueológicas egípcias, gregas e indianas. Paralelo a um grande e ancestral rádio, sem faltar, é claro, o célebre divã e o indispensável charuto nas mãos do personagem.

Tudo isto, mais os formais figurinos masculinos dos dois atores, numa dúplice plasticidade de raro requinte, por Fábio Namatame, estendendo-se a duas entradas laterais, mostrando uma pia onde Freud expele o sangue de seu terminal câncer oral, enquanto do outro lado, há uma janela de onde se ouvem latidos externos de um cachorro.

O sensorial realismo cenográfico sendo ampliado pelos efeitos sonoros (Raphel Gama) e variações luminares (Gabriel Paiva/André Prado), ora com interrupções por transmissões radiofônicas sobre a iminência de uma guerra mundial, intermediadas por instantâneas intervenções sinfônicas, ou súbitos alarmes de um bombardeio próximo, apagando-se as luzes.

A narrativa dramatúrgica promovendo um encontro imaginário no dia 3 de setembro de 1939 - data  em que a Inglaterra declara estado de guerra contra a Alemanha nazista – entre Sigmund Freud (Odilon Wagner) aos 83 na derradeira fase de sua vida,  com o professor de Oxford, o escritor C.S.Lewis (Marcelo Airoldi), conhecido mais tarde como o autor de As Crônicas de Nárnia e então com 40 anos, no gabinete do psicanalista, para uma conversa dialética e metafísica entre um assumido ateu  e um recém convicto cristão.

Ali, a conversa iniciando-se por polêmica discussão sobre a crença na existência de um Deus magnânimo, pela parte de Lewis, diante dos argumentos contrários do pai da psicanálise, extremados pelo sofrimento de uma doença terminal e pela sua dúvida em crer diante da inexorabilidade de tantas dores no mundo.

Estendendo-se a outros temas como sexualidade, com um conceitual da vida dos dois personagens, e das citações de Freud sobre sua filha Anna e seu médico Max Schurr. Com ritmo preciso nos diálogos que, mesmo sob um sotaque de prevalência analítica e intelectual, não deixa desatento nenhum espectador.

Tanto o Freud de Odilon Wagner, como o Lewis de Marcelo Airoldi, jamais deixando de fluir, com potencial veemência e espontaneidade, a caracterização de  cada um dos seus multifacetados personagens. O que, sobretudo, se irradia através do investimento estético/ideológico imprimido por uma irrepreensível autoridade cênica e diretorial de Elias Andreato.

Ecoando um apelo reflexivo sobre estes tempos, tão dissonantes e de tantas intolerâncias em que estamos vivendo, com sua lição de convivência entre pensamentos díspares, onde tanto a espiritualidade como o secularismo tem suas razões próprias de existir e não podemos sair por aí atirando cadeiras no próximo...

 

                                         Wagner Corrêa de Araújo

 

A Última Sessão de Freud está em cartaz no Teatro Adolfo Bloch/Glória/RJ, sextas às 20h; sábados, às 17h e às 20h; domingos às 17h; até o dia 20 de outubro.

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