Alguma Coisa Podre. Um musical da Broadway sob direção concepcional de Gustavo Barchilon. Julho/ 2023. Fotos/Caio Gallucci. |
Desde sua estreia na Broadway em 2015, o musical Alguma Coisa Podre! (Something Rotten!), na dúplice autoria de Karey Kirkpatrick e John O'Farrell, tornou-se um fenômeno
simultâneo de sucesso e de contestação. Lembrando a mesma irreverência que
transformou O Livro dos Mormons e Monty Python em tops absolutos do teatro musical.
Afinal, seu assumido caráter de deboche irônico sobre
fictícios mecanismos da criação teatral usados por William Shakespeare tornou-o, por um lado, espalhafatoso com um
subliminar sotaque de escracho sob exagerados traços burlescos mas, ao
mesmo tempo, sendo uma paródia satírica e inteligente da era elisabetana.
Chegando pela primeira vez à cena paulista com perspectivas
de também chegar ao Rio, em mais uma das caprichadas direções concepcionais
para este gênero por Gustavo Barchilon, reunindo em sua ficha técnica craques
do teatro musical, como Cláudio Botelho e sua sempre precisa brasilidade nas
versões textuais do musical além fronteiras.
Contando, aqui, com um grande elenco integrado por nomes estelares como Laila Garin, George Sauma, Leo Bahia, Wendell Bendelack e Marcos Veras, os dois últimos em suas primeiras incursões como protagonistas de um musical. E, ainda, alguns outros destacando-se, ora em atuações coadjuvantes, ora como covers nos papéis principais.
Alguma Coisa Podre! George Sauma, Marcos Veras, Wendell Bendelack, Léo Bahia e Laila Garin. Julho/2023. Fotos/Caio Gallucci. |
Partindo, na proposta titular, da celebrada advertência em Hamlet (“Há algo de podre no reino da Dinamarca”), o musical usa frases de
efeito, trocadilhos, palavrões, pastiches e muito duplo sentido para mostrar os
bastidores do processo de criação teatral. Indo da era shakespeariana, com foco mais específico nas imaginárias escrituras cênicas que
teriam conduzido àquele personagem, aos procedimentos intrigantes e “podres” que estariam também por trás dos
grandes musicais a la Broadway.
E, nesta montagem, não deixando de lado a adequação de uma dramaturgia psicofísica ao nosso linguajar popular, com oportunas referências às disparidades
do Brasil de hoje. O que provoca um inventivo contraste com a sua fidelidade à tradição,
tanto no belo ideário convencional do aparato cenográfico (Duda Arruk) como na artesania
da elegante concepção indumentária (Fábio Namatame).
Já no prólogo, em seu primeiro e cativante tema musical,
partindo para a mordacidade risível e a ironização demolidora em Olha a Renascença Aí, com performance
coletiva da Companhia, incursionando por instantâneos acordes de hits
do circuito Broadway. Para, a seguir, fazer, com cara e coragem, um sarcástico deboche
do Bardo inglês na canção Vai se Fuder Shakespeare.
Com um tratamento ágil e divertido da trilha sonora original,
nos arranjos e direção musical de Thiago Gimenes, correspondido pela segura habilidade
de Alonso Barros na diferencial coreografia que imprime ao elenco de
cantores/dançarinos, abusando de tiques cômicos no vocabulário do movimento, incluído um
sapateado envolvente. Numa ambientação multicolorida, ampliada na plasticidade pictórica dos tons de
luzes entre sombras por Maneco Quinderé.
Onde a narrativa rocambolesca vai concedendo a Shakespeare (George Sauma) caracterizações
de um dramaturgo pop star, numa
espécie de glam performance, em seus
confrontos dialetais com o rival Nick
(Marcos Veras), este na convicta e arrogante personificação de um jovem autor
teatral em busca da fama custe o que custar.
Sem deixar de falar nos histriônicos arroubos de dois experts no ofício do fazer rir – Wendell Bendelack fazendo Nostradamus e Léo Bahia, atuando como Nigel, um diretor de Cia. teatral. E das carismáticas intervenções femininistas de Laila Garin, como Bea, a esposa grávida de Nick, mais as engraçadas passagens quando é mostrado o recato de Portia (Bel Lima) a esposa de Nigel, conectado ao obsessivo e neurótico puritanismo de seu pai - o Irmão Jeremiah (Rodrigo Miallaret).
Todos potencializados num completo timing de comédia musical e tudo convergindo, afinal, a partir deste afinado elenco, para um enredo melodramático com briga de egos e a inserção de meta profecias teatrais, onde as rivalidades de dois dramaturgos só se resolveriam no palco, por intermédio da premonição de um mágico musical de sucesso.
Despertando entusiasmo por seus ingredientes de loucura
fabular e de anárquica conduta novelesca, brilhantemente burilados pelo comando
direcional de Gustavo Barchillon. Numa ousada aventura caricatural que pode incomodar
os tradicionalistas mas que, em seu conceitual estético de despretensioso e lúdico humorismo musical, é capaz de levar às gargalhadas o mais comedido dos
espectadores...
Wagner Corrêa de Araújo