A Herança. De Matthew Lopez. Zé Henrique de Paula/Direção Concepcional. Julho/2023.Fotos/Hudson Rennan. |
Inspirada na conexão metafórica da trama ficcional do romance
de E. M. Forster “Howards End” e do enredo dramatúrgico de
Tony Kushner para “Angels in America”, a extensiva
trajetória em duas partes da peça A
Herança, alcançou um emblemático êxito,
desde a sua estreia londrina, em 2018 no West
End, à sua representação no circuito da Broadway,
no ano seguinte.
Da lavra de um conceituado dramaturgo e roteirista da última
geração americana - Matthew López - a
peça chega finalmente aos palcos brasileiros graças ao corajoso empenho e ao
ideário dúplice do ator Bruno Fagundes e do diretor Zé Henrique de Paula.
Reunindo doze atores e uma atriz a uma dezena de outros participantes, estes em
performances mais figurativas, com a acurada tradução e a luminosa direção
concepcional de Zé Henrique de Paula.
Potencializando, via sua narrativa teatral, um expressivo e pungente
retrato dos embates da comunidade gay
em suas lutas de afirmação libertária pela prevalência da livre identificação sexual.
Das árduas conquistas pelo reconhecimento social aos desafios de sua retomada,
pós onda derrotista causada pelo preconceito à causa do pesadelo da AIDS, a que se nominou, em caráter depreciativo,
de “câncer gay”.
Tendo como substrato conceitual subliminar os conflitos da
intolerância moral na Inglaterra 1910 (em Howards Ends) através de personagens
protagonistas que se transmutam em aproximativa similaridade dialogal com
aqueles de A Herança. Enquanto há o
referencial de “Angels in America” no
incisivo pânico causado pela “peste” mortal anos 80/90 com o surto do HIV. E ainda
capaz de fazer ecoar riscos de retrocesso especular nos avanços de hoje do coletivo LGBTQIAPN+.
Na originalidade de um processo cênico que se desenvolve por
intermédio de uma espécie de oficina de criação literária/dramatúrgica possibilitando
uma intervenção alterativa de cada um dos 12 atores, com sugestionamentos personalistas
no entorno da trama, tornados cada um deles simultâneos narradores e personagens. Inicializado pelo alterego do escritor E.M.Forster, no papel guia assumido, em
cativante envolvência, por Marco Antônio Pamio.
A Herança. De Matthew Lopez. Zé Henrique de Paula/Direção Concepcional. Julho/2023.Fotos/Hudson Rennan. |
Numa ambiência cenográfica (Zé Henrique de Paula) minimalista
em que a caixa cênica é preenchida durante o longo percurso das duas partes pelo
presencial no palco da maioria dos atores, entre ocasionais entradas e saídas.
Caracterizados por figurinos cotidianos (Fabio Namatame), vazados efeitos luminares (Fran Barros/Tulio
Pezzoni) e com incidentais acordes sonoros, ora de temas impressionistas ora com
citações melódicas de época (sempre com o peculiar acerto das trilhas de Fernanda
Maia).
Onde cada espectador vai se identificando com a imbatível competência
atoral imprimida aos personagens delineados num dimensionamento de maior protagonismo,
a começar pelo sensitivo Eric (Bruno
Fagundes com o emocional à flor da pele sob carismática convicção), como um jovem judeu intelectual de classe média, e seu conturbado namorado Tob (Rafael
Primot) na ascendente celebridade como dramaturgo.
E que, em sua volatilidade, acaba cooptado pelo apelo sensual
do ator Adam (André Torquato), por um
possível papel em sua próxima peça. Este último também em atuação alterativa
como Léo, um garoto de programa, na instantaneidade
das aventuras erotizadas por dinheiro, sendo assediado pela compulsiva solidão
de Tob. Destacando-se ambos por uma instigante psicofisicalidade em seus respectivos personagens.
Aparecendo também um casal vizinho, o mais velho no caso de Walter (em papel sentimentalizado por Marco Antonio Pamio) e o de maior aparência atlética Henry (por um mais racionalizado Reynaldo Gianecchini), exercendo o primeiro uma profunda ascendência reflexiva sobre Eric ao revelar seu afetivo acolhimento numa casa de campo a doentes terminais de AIDS. Enquanto Henry, o empresário de espírito mais prático, com a súbita morte do companheiro, acaba assumindo-se como restrito partner amoroso de Eric.
Com duas passagens provocativas ao final de cada uma das
partes capazes de transtornar até as lágrimas o mais resistente e acomodado espectador
heterossexual, ou indo mais longe, no toque de qualquer coração insensível de
algum imprevisto homofóbico que estiver por
ali.
Impactante na patética e crua veracidade do monólogo de Walter/Forster (M. A. Pamio) pranteando
os mortos condenados pela sentença terminal da Aids, na primeira parte. Ou no epílogo da peça, o melancólico
complexo tardio da culpa de uma atormentada mãe e zeladora da casa/abrigo (na comovente atuação de Miriam Mehler) por
não aceitar a condição gay de seu filho até que este também se tornasse outra vítima
fatalista da doença.
Transmutando-se tudo na integralização de um retrato sem retoques do legado conceitual para um Cânone Gay, numa América em três tempos. Explicitado aqui na simbologia, em compasso de transe, da própria sinalização titular da peça como A Herança, conferida à peça por seu autor. Que conecta a maldição de um passado devastador a um presente de resiliente combate à hostilidade, mostrando o Século XXI com um olhar questionador, armado na perspectiva de que poderia, enfim, ser mais promissor, quem sabe, este incógnito futuro...
Wagner Corrêa de Araújo
Um comentário:
Aqui é a historiadora de arte e cultura Cristina Avila, estou impactada com as tramas e referências historiográficas a luta pela liberdade do ser afetivo, em suas posições de gênero homoafetivos. A Critica nos instiga a conhecer a realidade e os sonhos possíveis a vida de intelectuais , artistas ,etc em seu relacionamentos e personalidades fora do senso comum. PARABÉNS!
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