ALMA DESPEJADA : RESIGNIFICANDO O LEGADO EXISTENCIAL SOB METAFÓRICO RETORNO POST MORTEM

 

Alma Despejada. Andréa Bassit/Dramaturgia. Elias Andreato/Direção. Irene Ravache/Intérprete. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.

 

Há peças que fascinam tanto pela luminosidade imprimida por seu intérprete que o espectador acaba imergindo em estado de absoluto encantamento como é o caso do monólogo Alma Despejada, com Irene Ravache, uma das maiores surpresas na atual temporada dos palcos cariocas.

Um dos experimentos mais vistos do teatro virtual do período pandêmico e, agora, de volta desta vez em formato presencial. Depois do êxito nas telinhas, com muitas indicações e prêmios dos júris teatrais, no biênio de um surto que não só assustou mas apressou o fim de muitos dos humanos.

Em que a assumida despretensiosidade de sua dramaturgia, por Andréa Bassit, estabelece um clima fabular no relato da volta post mortem de uma velha senhora àquele que fora o seu último habitat antes da sua partida terminal, num quase reflexo especular daqueles dias de pânico e de morte.  

Sua dramaturgia autoral vai avançando pelos espaços memoriais da simples trajetória existencial de uma professora aposentada de português, apaixonada pela pronúncia e pelo significado das palavras, no entremeio de suas lembranças da ambiência familiar, junto ao marido, dois filhos e uma sempre fiel empregada doméstica.

Onde o convicto comando direcional de Elias Andreato confere ao espetáculo uma singular climatização emotiva aos relatos dia-a-dia de Teresa (por Irene Ravache), a personagem protagonista, “alma despejada", descortinando como uma morta, fatos de seu cotidiano enquanto viva.


Alma Despejada. Andréa Bassit/Dramaturgia. Elias Andreato/Direção. Irene Ravache/Intérprete. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.


Em espaço cenográfico sendo desconstruído no imaginário de seu acúmulo de caixas, por Fábio Namatame, também responsável pela indumentária dia-a-dia da atriz. Sugestionando apenas a lembrança do que restou daquele apartamento, ressaltada em luzes ambientais mais vazadas, por Hiram Ravache, filho da atriz, e enfatizada por incidental e discricionária trilha  sonora (Daniel Grajew e George Freire).  

Onde uma personagem feminina conecta, em linguajar marcado pela sutileza ingênua dos lugares comuns, sob irônico bom humor, as impressões espectrais de uma mulher morta. Aparentando neste papel ser de avançada idade, em funcional coesão com a própria fisicalidade de Irene Ravache tornada, em 2024, octogenária.

Na tessitura de narrativas, do que fora visto ou ouvido pela personagem, com um sotaque mais de prevalente impessoalidade no dimensionamento sobre o convívio com os seus através do olhar armado de um ser vivo que, ali, no papel de professora, esposa e mãe, teria sido testemunha de tudo e de todos.

Das histórias em família sinalizadas como felizes, paralelas a eventos externos com envolvimento de seu marido Roberto em saga de corrupção política. Ao mesmo tempo em que mostra Teresa, na sua tipicidade de mulher classe média, deixando-se apegar ao estado de noveau-riche, sem atentar ter sido isto resultado das armações escusas do seu consorte.

Este desvio, com superficial abordagem de caráter político-policialesco, interrompendo temporariamente a atenção do espectador acostumado, até então, a uma textualidade de fluente leveza através de sua identificação com os delicados relatos triviais de uma vida comum como qualquer outra.

Ampliada, se tentarmos decifrar o sentido vocabular do nome Irene, em sua ancestralidade  grega traduzido como um significativo de paz. Irene Ravache, sendo mulher e atriz, na carismática envolvência de sua performance,  quebrando as barreiras do mais distanciado e insensível espectador.

Sem deixar, também, de ecoar as reflexivas palavras de um artesanal empenho de Elias Andreato, na simbolização metafórica de seu ideário estético, na entrega ao processo da direção concepcional para Alma Despejada : “É como se precisassemos abandonar a matéria para sermos conscientes de nós mesmos”...

 

                                        Wagner Corrêa de Araújo



Alma Despejada está em cartaz no Teatro dos Quatro, Shopping da Gávea, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até dia 29 de setembro.

A CRÍTICA DIGITAL DE DANÇA PASSA A INTEGRAR O ACERVO DA BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA

 

Biblioteca Nacional da França/ BNF. Salão Oval/BNF. Agosto/2024. Foto/Divulgação/BNF/Site Richelieu.


Numa iniciativa pioneira em termos mundiais, uma das mais tradicionais instituições culturais francesas - a Biblioteca Nacional - acaba de reconhecer que a crítica digital de dança desenvolvida pela conceituada revista virtual danse.org – criada em Paris pelo ex-bailarino, coreógrafo e crítico franco-americano Patrick Kevin O’Hara – passe a integrar os arquivos da BNF, onde estará disponível para pesquisadores e historiadores para estudo e posterior publicação acadêmica.

Isto significa o reconhecimento de todas as análises críticas, no formato das plataformas digitais, postadas por seis correspondentes, sob o título geral de Dance Reviews, de sua sede oficial em Paris (pelo criador e editor da revista Patrick Kevin O’Hara), além dos renomados críticos Henning Rübsan (Nova York), Alice Heyward (Berlim), Michele Olivieri (Milão) Alastair Macaulay (Londres), incluindo a Brazil Dance Reviews, esta última assinada pelo crítico mineiro, radicado no RJ, Wagner Corrêa de Araújo.


Patrick Kevin O'Hara, bailarino, coreógrafo, professor e crítico, foi o idealizador e é o editor das revistas digitais danse.org e dancer.net  Foto/Divulgação.


Segundo a publicação do Diário Oficial da República Fancesa, o objetivo é ajudar o desenvolvimento da dança em todos os seus aspectos, pelos meios físicos, virtuais e imateriais, pela significante contribuição do site danse.org nas exposições e festivais, com o reconhecimento dos atos de mérito na dança e nas artes relativas à diversidade global da criação coreográfica.

O que deverá ser ampliado pelo intercâmbio com outras bibliotecas nacionais como um primeiro passo pela valorização de colunas críticas culturais em  sites e blogs de outros países, uma constatação de que tudo isto é um reflexo do papel cultural, em novos tempos, assumido pelas plataformas digitais.

O maior exemplo é o da mais antiga e tradicional revista de dança impressa mundial a centenária Dancing Times Magazine, criada em Londres, 1894, e que, pós-pandemia, transmutou-se também numa revista virtual – www.dancing-times.co.uk

Para os pesquisadores, críticos e aficionados do atual panorama da dança contemporânea, o acesso aos textos, às fotos e aos vídeos na página oficial da Biblioteca Nacional da França o endereço é www.bnf.fr - a seguir catalogue.bnf.fr completando-se em www.danse.org .

Segundo o critíco franco-americano Patrick Kevin O’Hara, idealizador e editor da danse.org e da danser.net : “Isto significa que estas resenhas serão imortalizadas para as gerações futuras e tornadas acessíveis para pesquisadores e historiadores do mundo em todas as bibliotecas nacionais. Ressaltando que  a aceitação de publicações digitais sobre dança nos arquivos nacionais da BNF é uma novidade mundial”.


La Fille Mal Gardée. Balé do TM/RJ. Ricardo Alfonso/Concepção Coreográfica. Agosto/2024. Foto/Daniel Ebendinger. A mais recente postagem crítica da Brazil Dance Reviews - 18/08/2024 - na revista virtual danse.org e já no acervo da BNF - Biblioteca Nacional da França.



PARSONS DANCE : ENERGIZADA LINGUAGEM COREOGRÁFICA, SOB PROEZAS AERÓBICAS E EFEITOS LUMINARES


Parsons Dance.  Criação concepcional/coreográfica/David Parsons. Nascimento/ Parsons Dance. Agosto/2024. Fotos/ Divulgação Parsons. 

 


A sua trajetória artística, como bailarino e coreógrafo americano, dividia-se entre ser atleta e a pretensão de se tornar um modelo fotográfico. E, a partir de 1978, foi  integrando a Paul Taylor Dance Company onde despontou logo como um de seus principais bailarinos. Estreando ali sua criação coreográfica, dois anos antes de criar sua própria cia a novaiorquina Parsons Dance, em 1984.

David Parsons se notabilizando por uma linguagem coreográfica singular, tendo como subliminares referências, os princípios estéticos de seu impulsionador artístico Paul Taylor, paralela a uma tendência daquela época de priorizar efeitos plástico-luminares em criação coreográfica multimídia, inicializada por Alvin Nikolais.

Surpreendendo o público e a crítica, desde suas primeiras apresentações no Brasil, a Parsons Dance está mais uma vez de volta, trazendo, nesta nova turnê um repertório de seis obras, entre inéditos e o retorno de dois de seus maiores sucessos aqui e nos circuitos mundiais.


Parsons Dance. Direção/Coreográfica/David Parsons. The Shape of Us/Parsons Dance. Agosto/2024. Fotos/Divulgação Parsons.

Wolfgang abrindo não só numa espécie de tributo às composições de Mozart, mas como  original introdução cênica ao processo de criação coreográfica de David Parsons. Três movimentos, não específicamente de uma mesma obra mozartiana, na sua caracterização indumentária e no seu gestualismo fazendo uma sutil referência ao neoclassicismo, conectada a uma livre releitura destes dois elementos estéticos, sob a pulsão de um olhar priorizado pela contemporaneidade.

Já o luminoso solo masculino Balance of Power, criado em 2020, avança numa proposta que remete em parte a outra peça solista - Caught, de 1982, sendo, até hoje, a mais emblemática marca da inventividade de Parsons na memória de todos os que a viram pela primeira vez no palco do Municipal carioca.

Nesta enigmática Balance of Power enquanto o performer aparece fixamente num ponto central do palco, movimentando vigorosamente partes isoladas de sua corporeidade, sua estrutura muscular rompante parece fazer parte da trilha autoral percussiva, normalmente apresentada ao vivo, por Giancarlo De Trizio.

Encerrando a primeira parte e datada de 2024, uma das recentes  coreografias da Cia - The Shape of Us – para seus oito bailarinos e que funciona como uma homenagem às criações entre solos e formações grupais dimensionadas por Paul Taylor. Assumindo, também, um desafio performático na coesão de estilos gestuais de bailarinos-atletas e vice versa.

Numa similaridade de variações da fisicalidade que acompanhem um mesmo tema com a insistência de desenvolvê-lo, simultaneamente, num corpo jazzístico, sob acordes sonoros sequenciais ou alterativos como acontece em Juke, outra criação de 2024, esta inspirada numa clássica composição de Miles Davis. Sem que um gênero prevaleça sobre o outro, ao propor o convívio espontâneo das técnicas musicais com os movimentos coreográficos.

Chegando o espetáculo ao seu epílogo, através das icônicas e mais antigas obras do repertório da Parsons Dance - amplamente conhecidas e sempre lembradas  -  Caught e Nascimento, esta última demonstrativa da paixão  de um compositor brasileiro pela obra do coreógrafo americano.  

O sempre instigante solo Caught, 1982, ao se sustentar no conluio entre a brava exposição acrobática e o ilusionismo de um avançado e precursor design de iluminação estroboscópica. 

Provocando psicodélica surpresa, na sua alternância inventiva de instantâneos cortes cinéticos de imagens congeladas ao vivo, no entremeio de luzes e escuridão, nas posturas solares e saltos espaciais do performer.

Enquanto Nascimento, de 1990, repercurte a mineiridade de um Milton numa pulsão criativa roseana em composição musical direcionada pelo seu mágico encantamento diante da Parsons Dance. Em carismático apelo à brasilidade numa atmosfera de alegórico alcance, dos seus contagiantes ritmos ao emotivo gestualismo, como reflexo especular do ideário de David Parsons : “Adoro quando faço uma multidão suspirar. É quem eu sou"...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Parsons Dance apresentou-se em temporada brasileira pela DellArte, em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de 14 de agosto até o domingo 24, em horários diversos.

LA FILLE MAL GARDÉE / BTM : ENVOLVENTE PANTOMIMA E CLASSICISMO PASTORAL NA RECONSTITUIÇÃO COREOGRÁFICA DE RICARDO ALFONSO


La Fille Mal Gardée. BTM/RJ. Ricardo Alfonso/Concepção Coreográfica. Agosto/2024. Fotos/Daniel Ebendinger.


No primeiro dia de julho, 1789, quase às vésperas da Revolução Francesa estreava em Bordeaux - La Fille Mal Gardée - que trazia um novo conceitual coreográfico por Jean Dauberval, sem príncipes e deuses mitológicos, com sua inspiração em temas e canções populares. E que, na trajetória histórica do repertório de balé clássico, acabou considerado um marco sinalizador.    

Ambientada no clima pastoril da propriedade rural da  viúva Simone e sua filha Lise, onde seus personagens são camponeses e a trama idílica mostra a atração dela pelo lavrador Colas, indo na contramão do desejo de sua mãe em vê-la casada com o ingênuo Alain, filho de um rico fazendeiro. 

Espalhando-se, sequencialmente, por outros palcos e países antes de chegar à Ópera de Paris, na releitura musical de 1828, por Ferdinand Hérold que se tornaria, a partir daí, a partitura definitiva. Embora seguida por diferenciais versões coreográficas, entre as quais a de maior perenidade e representações, deve-se a Frederick Ashton, no Royal Ballet, em 1960.

E é esta concepção que vem sugestionando, em suas linhas básicas, praticamente  todas as remontagens deste balé, mesmo a do coreógrafo suiço Heinz Spoerli,  que ele titula de nova versão, em 1981, e onde as revisões ocorrem mais em sua partitura original. Enquanto a direção concepcional/coreográfica do uruguaio Ricardo Alfonso, estreada em dezembro de 2023, e que é mostrada, agora, pelo Balé do Theatro Municipal carioca, continua mais próxima daquela de Frederick Ashton.


La Fille Mal Gardée. Balé do TM/RJ. Ricardo Alfonso/Concepção Coreográfica. Agosto/2024. Fotos/Daniel Ebendinger.


Ricardo Alfonso integra o naipe de uma nova e reveladora geração coreográfica nos países da America Latina, tendo já uma vasta trajetória de obras suas, entre o repertório clássico e contemporâneo, com uma identidade autoral bem singularizada, entre a fidelidade à tradição e o espírito inovador.

É o que ele demonstra muito bem neste seu olhar no entorno de La Fille Mal Gardée, imprimindo charme e simpatia à rusticidade natural de personagens campônios. Ao mesmo tempo em que enfatiza uma bem humorada pantomima à burlesca representação da viúva Simone, sob a carismática teatralidade mimética do bailarino Edifranc Alves.

Na continuidade do alcance de um brilho performático, o protagonismo dúplice de Cicero Gomes como Colas e de  Márcia Jaqueline como Lise, o jovem casal em seu embate afirmativo de um amor recíproco, é o outro destaque absoluto pela química técnica e interpretativa nestes personagens.

Cicero Gomes exorbitando, como de hábito em reconhecido virtuosismo, nos seus contagiantes solos entre jetés e piruetas. Ao lado de Márcia Jaqueline que completa vinte anos de estreia neste papel e que, cada vez, mais exerce fascínio por sua instintiva graça e seu refinado porte de uma primeira bailarina.

Ambos, enfim, com altos dotes qualitativos tanto na demonstração de uma convicta pirotecnia, como na sua entrega a um timing cômico, das expressões faciais ao gestualismo na corporeidade. O que os faz completos atores/bailarinos em sintonia com um funcional sustento coreográfico dos outros integrantes do Corpo de Baile.

Os figurinos sempre caprichados de Tania Agra destoam de uma cenografia (Manoel dos Santos) meramente convencional, sob luzes vazadas (Paulo Ornellas) com algumas raras variações entre sombras e claros na cena da tempestade no campo.

O artesanal empenho da conduta do maestro Silvio Viegas frente à OSTM ressalta bem a leveza romântica e um caracter prevalente de allegros quase marciais, em energizados temas musicais, entremados por subliminares fraseados rossinianos.

Valendo, antes de tudo, registrar o quanto é fundamental este intercâmbio com outras visões coreográficas, promovido por bela iniciativa do comando e supervisão artística  (Hélio Bejani e Jorge Teixeira) do Balé do TM/RJ. Tal como a representividade do convite ao uruguaio Ricardo Alfonso, além de brasileiros como Ricardo Amarante, com coreografias suas idealizadas para a Cia Colombiana de Ballet que chegaram também ao palco do Municipal.

Onde este acervo de criações voltadas às companhias latino - americanas, incluído o Brasil, possa reafirmar o potencial e o maior reconhecimento de um precioso panorama coreográfico destes países, mote de uma importante série de análises da conceituada crítica argentina Fatima Nollen (radicada em Londres) para a secular revista inglesa Dancing Times Magazine...

 

                                     Wagner Corrêa de Araújo




La Fille Mal Gardée/BTM está em temporada no Theatro Municipal/RJ, desde o dia 15/08, com alternância nos elencos, até o próximo domingo, 25 de agosto, em horários diversos.         

NESTE MUNDO LOUCO, NESTA NOITE BRILHANTE : VIOLÊNCIA E CATARSE SOB UM COMPASSO TEATRAL PÓS- DRAMÁTICO

 

Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante.  Silvia Gomez/Dramaturgia. Com Debora Falabella/Yara de Novaes. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.

A parceria entre as atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes, tem propiciado algumas surpreendentes criações teatrais de nossa contemporaneidade, sempre sob o crivo de uma busca por novos caminhos e, agora, de volta, na última peça de Silvia Gomez – Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante.

Depois de Love, Love, Love, de Contrações e de Prima Facie (onde Yara de Novaes assume a direção), é a hora e a vez de, novamente, as duas atuarem em cena numa corajosa abordagem de um dos  temas mais polêmicos e que vem impactando brutalmente, em processo ascendente, o cotidiano comportamental brasileiro.

Trata-se aqui da violência que se tornou lugar comum, perpetrada pela selvageria de uma masculinidade tóxica, que continua a excercer sua ancestral subjugação da condição feminina pelo abuso sexual de sua corporeidade, através da tortura psicofísica representada pelo estupro.

Nesta recente criação do Grupo 3 de Teatro,  sinalizado sempre por uma tríplice integração talentosa dos mineiros Débora Falabella, Yara de Novaes e Gabriel Fontes Paiva, direcionando-se a uma das diferenciais incursões dramatúrgicas na absurdidade deste fato de caráter criminal. Ao lado de uma simbólica e presencial equipe técnica e artística absolutamente feminina em palco vazado, sob a quebra completa de sua quarta parede.


Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante.  Silvia Gomez/Dramaturgia. Gabriel Fontes Paiva/Direção Concepcional. Agosto/2024. Fotos/João Caldas.


Capaz de gerar um desassossego imediato atores/espectadores que pertuba com seu árido referencial de tantos dias indo e vindo sem nada mudar. Ora pelas dolorosas queixas das vítimas, ora de um assombramento do seu circuito familiar e social pela publicidade virtual dos registros policialescos. Enquanto, apesar de tudo, persistem as estatísticas : a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil.

Onde o espaço cenográfico (André Cortez) é configurado como uma plataforma inclinada que sugestiona uma pista de aeroporto ou uma estrada obscura cercada por refletores laterais e por projeções frontais que ora visualizam, pictoricamente, uma paisagem florestal ora um céu coberto pelo brilho das estrelas.

Numa proposta em que as variações luminares (André Prado e Gabriel Fontes Paiva) e as interferências da trilha sonora autoral (Lucas Santtana e Fábio Pinczowski), executada pela Banda Las Majas, acontecem através das induções verbais de Yara de Novaes. Como parte de seu ofício performático no papel de uma policial rodoviária e  de acordo com a ambiência e o clima psicológico da narrativa dramatúrgica.

Este procedimento é configurado com as luzes ainda acesas quando, com o público ainda se acomodando, as duas atrizes simulam uma maratona ginástica marcial, como uma espécie de prévio relaxamento corporal, prevenindo-se a si mesmas e numa advertência aos espectadores, para o enfrentamento do sequencial clima de medo e pânico.

Inicializando-se a trama em compasso de um thriller, na percepção aproximativa da vigia do km 23 (Yara de Novaes), por intermédio de uma lanterna, no entorno de uma violentada vítima feminina (Débora Falabella), caída na pista e em surtos alucinatórios, depois de ser estuprada, ali, seguidamente por vários homens.

O texto na sua transposição cênica, com a sintonizada performance de duas potenciais atrizes, imprime ao inventário dramatúrgico um contraponto crítico ao desalento em tempo real da personagem estuprada, paralelo ao distanciamento reflexivo da outra nas postulações pela superação da dor em busca da solidariedade humana.

Convergindo esta ímpar interpretação feminina para o transgressivo dimensionamento de uma estética teatral pós-dramática, na meta linguagem de uma gramática cênica assumida pelo convicto comando direcional de Gabriel Fontes Paiva. Transcendida por uma pulsão sensorial de cumplicidade palco/plateia para que, assim, possa ecoar como denúncia política e redenção poética :

Se eu for capaz de cantar uma canção de amor neste mundo louco, nesta noite brihante, então tudo será possivel, até dar o fora daqui”...

 

                                         Wagner Corrêa de Araújo



Neste Mundo Louco, nesta Noite Brilhante está em cartaz no Teatro Sesi/Firjan/RJ, quinta e sexta, às 19h; sábado e domingo, às 18h. Até 18 de agosto.

HAIRSPRAY : MODISMOS, PRECONCEITOS E HUMOR EM MUSICAL ÍCONE SOBRE OS ANOS 60

Hairspray. Musical. Antônia Prado/Tiago Abravanel/Tinno Zani/Direção Concepcional. Agosto/2024. Fotos/Ricardo Brunini


O ideário original de Hairspray foi do polêmico cineasta americano John Waters em filme de 1988 protagonizado pela travesti Divine, um ator performático adorado por ele, e que entre aplausos e censura se tornou, na cinematografia vista como marginal, um absoluto cult.

O impacto provocado pelo filme acabou inspirando a criação de um musical diferencial do estilo Broadway estreado em 2003. Que por sua vez levou a outra película sob mesma titulação, na versão de Adam Shankman, direcionada a fazer com que John Travolta assumisse o mesmo papel da  Divine.

E no final das contas, o musical acabou virando um campeão de prêmios do Tony, com sua narrativa ironica à base de um humor crítico abordando comportamentos políticos e sociais eivados de preconceitos raciais e também da gordofobia que ia contra a maré de uma crescente onda da estética física perfeccionista.

O que é representado ali através das pretensões de uma adolescente gorda em se tornar uma estrela dançante e cantante no ambicionado show popular televisivo The Cornin Collins Show de uma emissora de tv local em Baltimore. Tracy vai em frente, sem medo de desafiar estes tramites de exclusão, e acaba sendo a vencedora da competição.


Hairspray. Musical. Com Tiago Abravanel (Edna Turnblad) e Vania Canto(Tracy). Agosto/2024. Fotos/Ricardo Brunini.


E para isto contando com o estímulo apoiador da sua mãe Edna Turnblad, enfrenta todas as barreiras ao derrotar o mau humor e o ciúme rancoroso de Velma, ex miss Baltimore a favor de sua filha Amber, numa reviravolta que faz o papel do seu futuro noivo Link mudar pra o lado de Tracy.

Todos estes personagens de destaque sendo representados, sempre com rara maestria, ora por um irresistível Tiago Abravanel no papel drag de Edna Turnblad, ora por uma energizada e engraçada Vania Canto na performance da adolescente gorda Tracy, sem se esquecer das boas intervenções do pai, um pouco menos indulgente, Turnblad (Lindsay Paulino).

Enquanto um romantizado Ivan Parente como o galã Link Larkin do programa de tv, uma Verônica Goeldi como a orgulhosa Amber, a filha da intolerante Velma  (por Liane Maya em mais uma de suas irreprimíveis atuações) ampliam o timing cômico do musical.

A trama dramatúrgica de Hairspray, escrita a quatro mãos por Mark O’Donnel e Thomas Meehan partindo, em suas linhas básicas, do filme de John Waters sabendo como transcender sua época levando a um envolvimento além tempo, capaz de interessar espectadores de quase cinco décadas após, em versões com muitas idas e voltas.

E mesmo que sua trilha (Scott Wittman/Marc Shaiman) se sustente em nostálgico estilo do rock primitivo, até hoje ainda entusiasma com suas pegadas acertadas de rythm and blues. Além do sotaque subliminar de uma tessitura pop mais contemporânea imprimida nesta releitura musical por Rafael Vilier para um grupo de 12  instrumentistas. Com um envolvente alcance no agitado gestual coreográfico de Tiago Dias capaz, aqui, de não deixar indiferente o mais acomodado dos espectadores.

A concepção cenográfica (Rogerio Falcão) remete aos filmes de animação e aos cartoons. Onde a indumentária, no exagero caricato de suas cores, ao lado do exotismo de um visagismo facial (Feliciano Sanroman) encimado por cabelos laqueados, sugestiona uma ambiência psicodélica quando ressaltada nos brilhos de efeitos luminares (Wagner Antônio).

E é, especialmente, na tipicidade de um daqueles ancestrais programas televisivos de auditório, no caso o Corny Collins Show da cidade de Baltimore, que a disputa da rechonchuda Edna Turnblad pelo primeiro lugar faz aflorar momentos de discriminação preconceituosa de suas rivais.

Ao superar o complexo provocado pela gordofobia da personagem, por um impulso cúmplice de idealismo, ela também apela e se insere na luta contra a segregação racial. E ainda ganha o amor daquele charmoso Link que vai se tornando, a partir daí, um ex de sua concorrente Amber.

Numa recriação teatral acurada, sob tríplice direção concepcional (Antônia Prado, Tiago Abravanel e Tinno Zani), no entremeio de Humor, Pantomima, Preconceito, Moda e Programa de TV anos 60, apesar de uma certa ingenuidade cotidiana em suas abordagens comportamentais e de um ar de dejá vu em temas melódicos e ritmos roqueiros quase esquecidos, Hairspray nunca deixou de ser um ícone do teatro musical. Nesta sua mágica imersão nostálgica em tempos idos sempre traz o riso de volta com um olhar ancorado na reflexão. Afinal, para aquilo que foi bom, saudade nunca terá idade...

                            

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

Hairspray está em cartaz no Teatro Riachuelo/Cinelândia, quintas e sextas, às 20h; sábados às 16h e 20h; domingos, às 15h e 19h, até o dia 18 de agosto.

QUERIDO EVAN HANSEN / O MUSICAL : O CONFLITO DE UM ADOLESCENTE PROBLEMA NO DESAFIO DE UMA FAKE NEWS

 

Querido Evan Hansen. Tadeu Aguiar/Direção Concepcional. Agosto/2024. Fotos/Silvio Júnior.


Desde sua estreia na Broadway, em 2016, à sua versão fílmica, em 2021, Querido Evan Hansen vem levantando polêmicas no entorno de uma temática não muito convencional para o teatro musical. O que acabou dividindo as opiniões dos especialistas na crise mental adolescente, vista por eles como um retrato superficial, estendendo-se ainda às normais preferências do público e da crítica quanto a este gênero teatral.

No formato de musical, sob a sempre artesanal direção concepcional de Tadeu Aguiar, Querido Evan Hansen finalmente chega aos palcos brasileiros, com breve temporada, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Contando com um elenco de conceituados nomes do teatro ao lado de reveladoras atuações de uma nova geração de atores/cantores.

O caráter diferencial já começando pelo libreto de Steven Levenson que fala aqui sobre a narrativa sintomática de um conflituado adolescente de curso médio que tem, como prescrição de seu terapeuta, a tarefa de escrever no computador cartas motivacionais  para si mesmo.

Para, assim, tentar aliviar sua ansiedade no crescente isolamento familiar diante de mãe solteira, sempre ausente numa jornada diária de enfermaria, e do seu difícil convívio com colegas de escola com os quais mal consegue se comunicar, deixando um vazio até na sua pretensão amorosa por uma de suas amigas.


Querido Evan Hansen. Com Hugo Bonemer (Connor) e Gab Lara (Evan). Agosto/2024. Fotos/Silvio Júnior.


E é a partir de um encontro casual com o também problemático Connor que, este ao assinar no braço engessado de Evan, surrupia de seu bolso uma carta enigmática que vai precipitar a trama paralela no sequencial suicídio deste colega de classe.

Ao encontrarem junto ao corpo do filho Connor a estranha missiva, seus pais passam a julgar que Evan certamente deveria ser o seu amigo mais confiável. Imerso numa confusa trajetória Evan assume esta mentira que vai conectar os acontecimentos de uma forma inesperada.

Outro caracter conceitual do musical é sua trilha, escrita por uma dupla (Benj Pasek e Justin Paul) premiada com o Oscar de melhor canção pelo filme La La Land, estruturada, agora, mais sob um dimensionamento contemporaneo psicoreflexivo, entremeado por acordes roqueiros mais suaves e menos expansivos.

Na caprichada direção musical e arranjos de Liliane Secco atenta à proposta terapêutica do enredo, com canções melodiosas e emotivas, mesmo que não alcancem o eco mais energizado de uma ambiência mental tipicamente adolescente. Capaz de destacar a tessitura vocal aguda, com um sutil sotaque de contra tenor, pelo protagonista Gab Lara. 

O jogo comportamental incitado pelo acaso de um fato incidental leva Evan, com sua recusa para negar que aquilo em que acreditavam os pais e amigos de Connor, a nada desmentir. Tal como um destes prognósticos avassaladores do mundo virtual por intermédio das fake news, tornando-o um falso herói no seu meio comunitário.

O elenco com oito integrantes, entre novos talentos e conhecidos atores, traz no papel titular a supreendente performance titular de Gab Lara como o adolescente em crise. Sabendo como se adequar a um gestual e a expressões faciais de timidez capazes de  remeter ao seu solitário mundo, pleno de ansiedade e depressão, recorrendo a quaisquer recursos que o tornem, afinal,  um vencedor na escola e no amor.

No seu circuito de amigos com idade e condições psicofísicas de escolares jovens, aparecem Thati Lopes (Zoé), a irmã de Connor (Hugo Bonemer em papel de breves aparições), além de Gui Figueiredo (Jared) e Tati Christine (Alana). Entre os papéis adultos, a luminosa atuação vocal de Vanessa Gerbelli (mãe de Evan) e a coesiva e funcional interpretação de Mouhamed Harfouch e Flávia Santana, como o casal Murphy  progenitor dos irmãos Connor e Zoé. 

A arquitetura cenográfica em três planos paralelos, tendo ao fundo um painel com projeções de recortes virtuais fotográficos, tem a acertada assinatura de Natália Lana. Os figurinos (Dani Vidal/Ney Madeira) com um sugestivo suporte cotidiano, sob efeitos luminares (Dario Sanchez), incidindo sobre as ocasionais intervenções coreográfico/gestuais de Sueli Guerra.

Mesmo longe de um carismático envolvimento palco/plateia Querido Evan Hansen vale ser conferido por representar não só uma busca experimental, antes de tudo qualititiva, de outros caminhos para o musical, quase camerístico em seu menor porte concepcional...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Querido Evan Hansen está em cartaz no Teatro Liberdade / São Paulo, sexta às 21h; sábados, às 16 e 20h; domingo, às 16h. Até  22 de setembro.

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