GALÁXIAS I : POR UMA INSTIGANTE DRAMATURGIA POLIFÔNICA


FOTOS/LEO AVERSA

Polifonia - termo derivado do grego, significando “vozes múltiplas”, usado para a música em que duas ou mais linhas melódicas soam simultaneamente”. (Dicionário Grove de Música).

Transcendendo o discurso exclusivamente musical, o teatro também é uma criação de significante substrato polifônico onde, para E. Barba,  todas as relações, todas as interações entre os personagens ou entre estes e as luzes, os sons e os espaço, são ações”.

Reflexões perceptíveis após conferir o investigativo jogo teatral contextualizado pelo autor e diretor Luiz Felipe Reis em Galáxias I : Todo Esse Céu É Um Deserto de Corações Pulverizados, outra realização de sua Polifônica Cia.

Desta vez com a participação performática de Leo Wainer, Ciro Sales e Julia Lund, os dois últimos em dúplice ofício atuando tanto em cena como no ideário dramatúrgico. Incluindo-se aí o apoio colaborativo de Fernanda Bond, extensivo à codireção.

Numa pulsão de work in progress a peça tem seu substrato autoral e inspirativo em textos do escritor argentino J. P. Zooey. Que acaba, simbioticamente, titulando os personagens da peça – dos irmãos JP (Ciro Sales) e Zooey (Julia Lund) ao referente alter ego deste no professor/pensador (Leo Wainer).

Em espetáculo integralizado numa textura dramática de plena convergência interativa com os seus outros elementos composicionais. Arquitetando uma cenografia (Júlio Parente/Luz Felipe Reis) polifônica de fisicalidade, dialetação e solilóquios. Entre textualidades vocais, projeções documentárias e gráficas, além da recorrência ao formato web de transmissões.

Do ambiental desenho de luz e projeções (assumidos por Corja e Leandro Barreto), à envolvência da composição e direção musical de Pedro Sodré, dividindo a parte instrumental, ao vivo e as gravadas, com Rogério da Costa e Rudah. Mais a indumentária (Luiza Mitidieri) cotidiana, radicalizada na fantasia leonina da personagem feminina ao voltar de um teste publicitário.

A reiterativa indagação filosófica sobre a origem, sentido e final da vida humana se estende à crise civilizatória que leva o planeta Terra à iminência de sua apocalíptica terminalidade. Polemizada na inversão teórica da cientifica descendência dos macacos redirecionada aos pássaros, os únicos detentores de mensagem do Sistema Solar sobre o caos derradeiro.

Enquanto o professor (Leo Wainer) em postura conferencial faz admoestações, entre nuances de pânico e de delírio poético, sabendo preencher, com angustiosa tensão e sobriedade, o dimensionamento de seu papel. 

Paralelo às indagativas reflexões existencialistas do casal de irmãos/artistas sobre o pós legado de escritos  literocientíficos do professor suicida, com absoluta adequação física, gestual quase coreográfico e contraponto emotivo dos atores Julia Lund e Ciro Sales.

Conduzindo, com autoridade cênica, a progressão dramática de uma narrativa sintonizada com a contemporaneidade da experimentação teatral Luiz Felipe Reis alcança um surpreendente resultado em sua proposta de natureza polifônica.

Desde significante fundamentação teórica capaz de remeter à uma simbólica exposição, na lateral do palco,  do afiche de A Classe Morta, concebido orginalmente para a cia Cricot 2 de Tadeusz Kantor na sua “tentativa de criar uma esfera de comportamento artístico livre e gratuito”.

Que esta Galáxias I, com sua inventiva cosmogonia cênica – “a vida é um rasgo de luz que a gente surfa na escuridão do cosmos”, seja, enfim, capaz de trazer também ao espectador um instante estético provocativo e demolidor da insistente acomodação ao convencional.

                                             Wagner Corrêa de Araújo 


GALÁXIAS I está em cartaz no Sesc Copacabana/RJ, de quinta a domingo, às 20h. 100 minutos. Até 2 de dezembro.

TURANDOT : INOVAÇÃO À BEIRA DO CONVENCIONAL

FOTOS/FABIANA STIG

Em tempos sombrios para a produção operística em palcos brasileiros, esta TURANDOT do Municipal paulista não deixa de ser eficaz como uma montagem de bons propósitos, entre ocasionais deslizes e dignos acertos.

Com sua intencionalidade de resgatar os princípios básicos que configuram o conceitual da Grande Opera, seu diretor e idealizador cênico André Heller-Lopes desta vez ousou sem avançar muito na sua releitura concepcional da derradeira ópera de Puccini, deixada incompleta no ano de sua morte (1924).

Optando pelo mais usual dos seus finais, o que o compositor Alfano lhe imprimiu (embora exista um outro mais contemporâneo de Luciano Berio), respeitando sua progressão dramática original, mas alterando a cena final do suicídio da personagem Liu o que não chega a provocar um absoluto incomodo.

Estruturando-a em três planos de tempo/espaço para visualizar uma China milenar, entre o fabular e o histórico, mas com o olhar armado na contemporaneidade. O que plasticamente é expresso na indumentária anos 60 do coro contrastando com a tradição de figurinos referenciais da Ópera de Pequim.

Teatro dentro do teatro, a trama ocorre no limitado espaço arena, entre galerias superpostas ocupadas pelos integrantes coristas, em formato circular com uma nuance dos palcos de representação elisabetanos no bonito e funcional desenho cênico de Renato Theobaldo.

O que não ocorre em total sincronicidade com os figurinos (Sofia Di Nunzio) misturando o aristocrático com o circense numa profusão de cores quase de efeito kitsch, suavizado apenas nos trajes mais discricionários do coro.

Os efeitos luminares (Fabio Retti) são quase sempre vazados na prevalência de inúmeros personagens simultaneamente em cena, com poucas chances para luzes mais focais. O que se dá, ao mesmo tempo,  uma ambiência technicolor envolvente se perde em no sense de um globo lunar esparramando luzes como numa pista de disco music.

A Orquestra Sinfônica Municipal sob o comando de Roberto Minczuk, teve um desempenho elogiável na exposição de uma partitura de Puccini mais sintonizada com novas harmonizações. De perceptível alcance em potencializadas intervenções nas cenas corais reunindo o Coro Lírico Municipal e o Coral Paulistano.

No confronto com a representação dos papéis protagonistas, mais uma vez alguns solistas brasileiros mostraram folego maior e convicção apurada na competição do habitual ringue das vozes estrangeiras convidadas.

Como a irradiante performance da soprano Gabriella Pace (Liú) e seu consistente timbre capaz, sempre, de preencher as exigências de seu papel. Sem deixar de destacar a força dos graves na tessitura do baixo Luiz Ottavio Faria (Timur) convincente ainda que em episódicas entradas.

No favorecido naipe dos personagens condutores da trama, tanto a soprano norte americana Elizabeth Blancke-Biggs, no papel titular como Turandot, e o tenor canadense David Pomeroy (Calaf) tinham por seu presencial físico, chamativo e quase grandiloquente, tudo para se tornarem os donos da performance.

Mas se havia a chance cênica de privilegiados papeis faltou-lhes total integralização de bravos vencedores para se imporem como as vozes definitivas da noite.

Se a soprano impressionou por sua  técnica e seu talento na culminância da ária In Questa Reggia,  o tenor acertou no mais ansiado  momento lírico – Nessun dorma. No entanto, malgré tout, seus vôos não foram altos o bastante para, em definitivo, arrastar e dominar os amantes da ópera.

                                       Wagner Corrêa de Araújo


TURANDOT encerra a temporada lírica do Teatro Municipal/SP, com dez récitas, entre 16 e 25 de novembro.

AS BRASAS : UMA ALMA EM DOIS CORPOS

FOTOS/LEO AVERSA

O escritor Ferenc Molnar se tornou conhecido do público brasileiro, através de sua obra mestra Os Meninos da Rua Paulo, não só pelo original literário mas por suas versões fílmicas e suas transposições para o palco. E tanto a sua origem húngara como a prevalente  temática de amizade, lealdade e heroísmo, estabelecem liames profundos com outro escritor magiar, Sándor Márai.

Seu romance As Brasas, apesar da menor divulgação entre nossos leitores, tem o mesmo dimensionamento clássico da obra de Molnar cujos destinos, no entremeio de duas guerras mundiais, se identificam pelo exílio e morte na América. E na trajetória da fuga de uma Hungria, ora sob a perseguição nazista aos judeus, ora pela opressão como satélite do sistema soviético.

Enquanto a trama de Molnar transcorre em tempo de passagem entre a infância e a adolescência, o livro de Márai, partindo de um relacionamento colegial e de um coleguismo militar, se estende à idade provecta de seus dois personagens, Hendrik e Konrad.

A partir de um reencontro dos dois amigos, após quatro décadas de distancia e silencio e que sustara uma amizade pelo viés da duvida e da suspeita de traição afetiva. Onde houvera no passado a convergência geminada de uma única alma para duas corporeidades,  passível até mesmo a uma subliminar homoeroticidade.  

Ao receber carta sobre a iminente chegada de Konrad (Genézio de Barros), o antigo comparsa de tempos e folguedos militares, o aristocrático general Henrik (Herson Capri), impactado, sabe que não terá apenas nostálgicas lembranças mas um desafiador acerto de contas para enigmático fato do passado.

Sobrepondo-se, ainda, o mistério que uniu estes dois homens a uma mesma mulher e já morta – Krisztina. Em simbiótica performance por Nana Carneiro da Cunha no dúplice oficio como atriz e musicista. Com prevalência de sua execução ao cello de refinados acordes da trilha autoral (Marcelo Alonso Neves), na pulsão simbológica de influente  matéria musical na trama dramatúrgica.

A concepção cenográfica (Bia Junqueira) visualiza sensorial plasticidade no mix ambiental de ancestralidade e instalação contemporânea sob as luzes modulares de Renato Machado. O que se estende também aos figurinos (Marina Franco) com sotaque nobiliárquico para o anfritrião Henryk e de solene recato no traje de Konrad.

Onde, a partir de um acertado lance de dados na teatralização (Duca Rachid e Julio Fischer) do original romanesco, o comando diretorial de Pedro Bricio imprime solidez aliada à intenção crítica para o espetáculo fluir com espontaneidade e envolvência, sem que a progressão dramática fique submissa à linguagem literária.

Complementando-se esta gramática cênica com o jogo teatral vivo assumido pela dupla protagonista com predestinação de  performance de Grande Teatro ou do chamado, até pejorativamente, de teatrão. Mas, antes de tudo, sabendo ambos aliar sobriedade e tensão, introspecção e liberdade instintiva sem nunca se deixarem levar por virtuosismos supérfluos .

Identificados, afinal, pela sincronicidade junguiana, da exploração de recursos técnicos à competência artesanal na construção de seus personagens. Num contraponto emotivo com irrestrita força de persuasão e de luminosidade que faz de As Brasas um destes momentos da arte de representar a serem sempre lembrados.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


AS BRASAS está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping da Gávea/RJ, terça, às 17h; quarta e quinta, às 20h. Até 30 de novembro.

SENHORA DOS AFOGADOS : MITIFICAÇÃO ALEGÓRICA COM SOTAQUE OPERÍSTICO

FOTOS / CAROL BEIRIZ

Senhora dos Afogados também foi vaiada na estreia e também considerei fabuloso. Faz parte do teatro desagradável, das peças desagradáveis”.(Nélson Rodrigues)

No entorno do destino fatalista de trajetória centenária da família Drummond, entremeando traições, incestos, suicídios e assassinatos, pela convergência do trágico, do seu arquétipo ancestral grego ao seu olhar contextualizado na contemporaneidade brasileira. Além de um referencial aproximativo, por seu tempo mítico e compasso transgressivo, à “Electra Enlutada” de Eugene O’Neill.

Era o ano de 1954 e a peça tinha estreado no palco do Municipal carioca, o que simbolicamente estabelecia uma ligação cenográfica com o universo da ópera. Ao qual Nelson Rodrigues sempre foi chegado pela nuance melodramática de um gênero com prevalência obsessiva da angulação temática amor e morte.

E que, na habitualidade da experiência inventiva do diretor teatral Jorge Farjalla com incursão em montagem operística, acaba deixando imprimir um halo estilístico e um gosto estético de teatro/ópera nesta recente dramatização de Senhora dos Afogados.

A começar de icônica paisagem cenográfica (José Dias) concentrada num farol à beira mar, entre arbustos secos com alusões ao mangue nordestino, em climatização quase espectral sob sombras e incidências focais luminares (Vladimir Freire e Jacson Inácio).

Onde o mar, com sua incisiva simbologia no conceitual dramatúrgico, é abstratamente absorvido no ruído de suas ondas ouvidas entre as falas dos personagens e as intervenções musicais (João Paulo Mendonça), tais como recitativos ao vivo ou em sonoridades grupais  especulares de um coro da tragédia grega.

O enunciado burlesco da indumentária e seus apetrechos (Jorge Farjalla/ Ana Castilho) carrega nos tons melancolizados, do ocre dos tecidos envelhecidos à morbidez da mascaração, acentuada na  maquiagem e no visagismo (Vavá Torres).

Numa progressão dramática e narrativa em que as personificações se dividem entre uma questionada Dona Eduarda (Alexia Deschamps) diante dos desafios da filha Moema (Karen Junqueira), na sua paixão psicofísica pelo pai Misael Drummond  (João Vitti), e na provocação transgressora de um encontro amoroso de seu noivo (Francisco Vitti e/ou Rafael Vitti) com a mãe dela para vingativo acerto de contas.

No paralelismo de outros personagens assumidos por Nadia Bambirra, Leticia Birkheuer, Jacqueline Farias e Du Machado. Convergindo de manifestações do complexo edipiano a ressentimentos violentos, desejos obsessivos e delírios eróticos. Em quadros sacro / profanos, de simulacro e revelação, desmistificando falsos pudores convertidos em instintos criminosos a partir do inconsciente familiar.

Com todos os ingredientes de valoração da saga mítica (na definição de Sábato Magaldi) ao lado de Albúm de Família, Anjo Negro e Dorotéia, inventariada no legado autoral do dramaturgo, esta Senhora dos Afogados, mesmo assim, acaba não alcançando, na sua integralidade, os avanços investigativos da proposta encenadora.

Na potencializada manipulação, com justaposição reiterativa à beira do grandiloquente, do elemento alegórico, na simbiose ritualística da cruz e dos orixás, a montagem enfrenta o risco iminente de cair no hermetismo e no consequente desagrado do público.

Agravado por um perceptível desequilíbrio das representações protagonistas, revelando insegurança e pouca convicção ao se  deslocarem do comportamento realista acional para o progressivo fluxo de onirismo e de pesadelo. No contraponto do favorecimento de papéis menores que não incorrem na similaridade desta rubrica.

Em espetáculo que, entre apostas e quedas, desvela maior compensação, a partir de envolvência estética na plasticidade visual da sua concepção cênica, buscando outros significados imagísticos e reflexivos além do poder verbal do complexo texto rodrigueano.

                                                Wagner Corrêa de Araújo 


SENHORA DOS AFOGADOS está em cartaz do Teatro XP Investimentos, Jockey Club/Leblon, sexta e sábado, às 21h; domingo,às 20h. 90 minutos. Até 25 de novembro.

DOGVILLE : ESTOICISMO UTÓPICO SOB ESTÉTICA TEATRAL/CINEMATOGRÁFICA


FOTOS/RENATO MANGOLIN

Retoma-se aqui, pelo senso da utopia, a negação do Estoicismo, primitiva escola filosófica grega que influenciaria, sobremaneira, as bases comportamentais e moralistas do Cristianismo nascente, a partir do necessário primado do bem sobre todos os vícios e degradações humanas.

Já no prólogo do filme de Lars von Trier, de 2003, torna-se perceptível a solidária comiseração do personagem Thomas, diante da pequena comunidade de Dogville, ao defender o abrigo ali de uma  jovem sob perseguição de gângsteres. E que, em troca de serviços domésticos às famílias locais, ficaria sob a proteção do povoado.

Mas aquela gente simples, sem luxos e vaidades, aos poucos, vai desvelando seus mais baixos instintos, sob as falsas aparências. Na exploração, sem eiras nem beiras, da disponibilidade humilde com que a personagem Grace aceita suas funções servis na ambiência familiar dos aldeões.

Onde a progressiva prevalência da agressividade e dos maus tratos alcança a absurdidade, transmutando sua submissão em escravismo, nas raias da humilhação  e no direcionamento à violência como objeto sexual. Em estupros sequenciais, inclusive por Tom, o seu inicial guardião, deixando cair a máscara comportamental do utopismo estoicista que ele apregoava como pretenso mentor filósofo.

Na original versão fílmica era nítida a simbologia da estética teatral, a começar pela fuga ao realismo cenográfico nas demarcações físicas com traços solares de giz. Além da formatação, claramente dramatúrgica, dos personagens em sua dialetação física com abstratas materializações espaciais.

Na presente transposição para o palco, sob a similar titularidade de Dogville, em seguro comando concepcional de Zé Henrique de Paula, sob viés do distanciamento brechtiano, há uma inversão no cruzamento das duas linguagens artísticas, cujo conceitual estilo estaria na  passagem de cinema teatral para teatro cinematográfico.

Se o despojamento cenográfico (Bruno Anselmo) é aproximativo do visto na tela, as projeções de dimensão quase cinemascope criam duas paisagens para o olhar do espectador, na simultaneidade com que as cenas se defrontam no dúplice plano visual. Embora isto torne mais frugal e menos incisivo o enfoque luminar (Fran Barros) diante de uma expansiva claridade entre sombras da expansiva projeção frontal.

Enquanto a indumentária (João Pimenta) em tons ocres contrasta com o aquarelado do figurino da protagonista feminina, a trilha sonora ( Fernanda Maia) lembra a do filme no sincronismo de acordes clássico/eletrônicos.

Num elenco coeso de 16 atores, entre  maiores ou menores chances para uma diversidade de papéis, com representação personalista mais exponencial de Mel Lisboa (Grace), sintonizando-se coletivamente com Eric Lenate, Fábio Assunção, Bianca Byngton, Rodrigo Caetano, Selma Egrei, Marcelo Villas Boas, Anna Toledo. E, também, Blota Filho, Gustavo Trestini, Fernanda Thuran, Thalles Cabral, Chris Couto, Dudu Ejchel, Munir Pedrosa, Fernanda Couto.

Em proposta diferencial por seu caráter investigativo, na releitura do ideário original (que dividiu o público das salas de cinema por seu teor provocativo e anti lúdico), sempre com o olhar armado neste seu novo contexto estilístico para o palco.

Tornando-se, enfim,  obrigatória pelo domínio na sua criação formal de produto bem acabado e, mais ainda,  por seu substrato critico/ideológico como inventário dramático das indignidades da condição humana.  


                                              Wagner Corrêa de Araújo


DOGVILLE está em cartaz no Teatro Clara Nunes/Shopping da Gavea/RJ, sexta e sábado, 21h; domingo, às 20h. 100 minutos. Até 16 de dezembro.

UMA FRASE PARA MINHA MÃE : SOB JOGO DRAMATÚRGICO, ENTRE O SENSORIAL E O SEMÂNTICO


FOTOS / DALTON VALÉRIO

No seu livro “O Óbvio e o Obtuso” Roland Barthes esclarece a retórica da natureza linguística da imagem através da palavra contextualizada literariamente. 

De perceptível extensão também à textualidade teatralizada, na absoluta autonomia da opção de ser apreendida visualmente, além de escrita tipográfica ou livresca, com um significado dramatúrgico.

Audível não só pela vocalização do ator mas também suscetível ao alcance do olhar do espectador, como verbalização mimetizada na fisicalidade da performance. Não importando se esta comunicação gestual possa se refletir tanto como conteúdo especular da realidade ou como um discurso intratextual, de caráter metafórico, na sintonização mental ator/espectador.

Desde as primeiras incursões da atriz e diretora Ana Kfouri no universo da palavra representada, ela sempre surpreendeu por seu provocativo desvendamento sensorial do que está por trás e além do sentido semântico e semiótico da linguagem potencializada cenicamente.

Seu primeiro deslumbre midiático foi quando atuou, de forma absolutamente diferencial, como apresentadora do programa Caderno 2, da então TVE/RJ. Uma dinâmica agenda cultural diária dos anos noventa, cujo formato inovador se tornou mais visceral na forma performática que Ana Kfouri imprimia à abertura e à chamada de cada matéria do programa.

Daí em diante, ela desenvolveu um sólido e inventivo oficio, tanto de intérprete como de encenadora, destacando-se de forma singular por seus espetáculos solo focados principalmente nas releituras de Beckett. Tendo também se notabilizado pela escolha de obras de autores com prevalente processo investigativo da linguagem.

Como este recorte dramatúrgico de um livro do escritor francês Christian Prigent titulado Uma Frase Para Minha Mãe. Aqui, ela está de volta em outra de suas atuações e comandos conceptivos e diretoriais, a partir de uma acurada tradução/adaptação de Marcelo Jacques de Moraes e com o precioso suporte artístico de Márcio Abreu.

Resultando em espetáculo, quase de ambiência ritualística, na sua absoluta concisão cenográfica (André Sanchez), com o uso de praticáveis de madeira espalhados, aletoriamente, num espaço arena e servindo, ainda, como assentos para os espectadores.

Entre os quais ela circula de forma alterativa, sublinhada em pontos focais por um funcional desenho de luz (Paulo Cesar Medeiros) entre sombras e no entremeio de projeções textuais. Pontuando o silêncio e as pausas, na ausência de trilha, com as sonoridades fonológicas e modulações prosódicas de suas intervenções vocais.

Em sequenciais recursos técnicos de primeira ordem para estimular a progressão de um texto difícil (Uma poesia culpada de prosa, em definição autoral), cujo experimentalismo acirrado, mesmo sob  iminente risco do hermético, não consegue impedir a sua expansão em cena e a adesão cúmplice do público.

Numa pulsão cênico/interpretativa com tal intensidade expressiva e investimento estético, capaz até de ecoar, como referencial reflexivo, a emblemática frase de Clarice Lispector – “Procuro para cada palavra o estalar inconsciente de um sentimento cruciante”.

Onde o irônico contraponto crítico no dimensionamento psicológico de matéria linguística, tratada como work in process para uma despretensiosa tematização coloquial de afeto familiar mãe<>filho, acaba fazendo deste espetáculo um bravo instante da temporada.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


UMA FRASE PARA MINHA MÃE, em nova temporada no Espaço Cultural Sérgio Porto/Galeria/ Humaitá, sábado e domingo, às 21h. 70 minutos. Até 9 de dezembro.

O FRENÉTICO DANCIN’DAYS : RECORTE MUSICAL E COREOGRÁFICO DE UM LUGAR LEGAL PARA SE LIBERTAR


FOTOS/LEO AVERSA

Quase no final dos anos 70, precisamente no dia 5 agosto de 1976, aconteceu a criação de uma discoteca, nos moldes do lendário Studio 54 de Nova York, de episódica duração mas com o deslumbre cósmico da passagem de  um cometa.

Foram apenas quatro meses de efervescência estelar para dar lugar a um espaço dramatúrgico – o Teatro dos 4 – que,  por sua vez, em sequência cronológica, faria dali um emblemático espaço da história dos palcos cariocas.

Enquanto este disco club - Frenetic Dancing Days Discotheque    teve, também, uma conceitual simbologia como legado comportamental de uma época. Em ambiência especular de anseios libertários diante das opressões políticas e limitações ideológicas/sociais advindas da então ditadura militar.

E servindo, agora, além da lembrança referencial de um oásis de livre prazer, como mote titular para o musical Frenético Dancin’Days, de Nélson Motta e Patrícia Andrade, sob a dúplice  concepção diretorial e coreográfica de Deborah Colker.

Com um sotaque de teatro documentário, o primeiro ato mostra o idealismo de quatro amigos – a jornalista Scarlet Moon, o ator Leonardo Netto, o DJ Dom Pepe e o produtor Djalma Limongi – que sob a égide inspiratória de Nélson Motta tornaram verista a perspectiva do sonho de uma discoteca diferencial pela sua opção de transgressiva  alegria ainda que de  temporária celebração.

Para, no segundo módulo, visualizar um lugar extasíaco onde sob luzes e sons psicodélicos, famosos e anônimos estabelecem uma cumplicidade guiada pelo descompromisso de dançar a vida. Em jornadas noturnas quase orgiásticas entre viagens alucinógenas regadas a álcool e drogas.


Com um elenco de 16 atores e sete bailarinos sintonizado na proposta de um teatro musical e coreográfico. Destacando-se nos papéis condutores Bruno Fraga (Nélson), Larissa Venturini (Scarlet), Franco Kuster (Léo), Cadú Fávero (Djalma), André Ramiro (Dom Pepe). Além da mal humorada  vizinha (Stella Freitas) na instantânea  surpresa e envolvência de sua performance.

Sob avançada moldura técnico/artística, na artesanal responsabilidade criativa de Gringo Cardia, há completa funcionalidade no cruzamento dialetal dos elementos cenográficos. Do esfuziante jogo de luzes (Maneco Quinderé) ao proposital exagero aquarelado da indumentária (Fernando Cozendey) e ao realce do visagismo (Max Weber). Incluído o alcance da trilha sonora (Alexandre Elias) ao vivo por um DJ, no frenesi das pulsações de disco music via samples.

Mas é no que deveria ser sua perceptível correspondência coreográfica que reside o maior deslize desta montagem, agravado pela insegurança de uma aposta, entre acertos e desacertos, de Deborah Colker em sua primeira incursão no comando mor de um musical.

Sem culpa absoluta dela ao se considerar o desafio de uma progressão narrativa, rica pelo enfoque documental e mais fragilizada na integralização do dimensionamento ficcional. E, ocasionalmente, sujeita à inconsistência e previsibilidade ao flertar com o nostálgico e o caricatural do teatro de  revista e das chanchadas.

A habitual releitura investigativa do movimento e sua corporeidade, marca registrada de sua criação e de seu inventário coreográfico, aqui quase nunca aparece salvo em raros momentos mais alegóricos como a exuberante cena de pole dance.

No infeliz compasso dos batidos passos de uma discoteca, sem identificação maior com a sua diversa e enérgica fisicalidade gestual, e  deixando uma prevalente sensação de expectativa por um apoteótico finale que acaba não acontecendo.
                         
                                       Wagner Corrêa de Araújo


O FRENÉTICO DANCIN’DAYS está em cartaz no Teatro Bradesco/Village Mall/Barra/RJ, quarta às 21h; sexta, às 15h; sábado, às 19h e às 22h. 120 minutos. Até 22/11.

DIÁRIOS DO ABISMO : ENTRE O CÉU E O INFERNO


FOTOS / FERNANDO YOUNG

Um anjo com vocação para demônio”, em suas próprias palavras, e que fez de Maura Lopes Cançado um enigmático fenômeno literário. Enquanto sua trajetória de vida e de mulher esteve entre o brilho e o pânico, do espírito libertário à opressão social.

Nascida em privilegiado ambiente familiar de substrato burguês no interior provinciano das Gerais, para ser mais exato pelos idos de 1929, conseguiu, entre trancos e barrancos, crises e êxitos, sobreviver até 1993.

Dos tempos de franca ascensão quando integrava a desbravadora equipe de autores e colaboradores do suplemento literário dominical do Jornal do Brasil, sob a égide de Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, entre outros.

Para o avanço ficcional/documentário com dois livros publicados no entremeio de entradas e saídas hospitalares e experiências manicomiais, e ambos - Hospício é Deus e O Sofredor do Ver - contemplados, à época, pelo interesse do público leitor e no olhar da crítica especializada.

Significativos pelo teor ensimesmado de relatos eminentemente confessionais, não só sobre fases de internação e de denúncia dos métodos usados em doenças mentais, mas nos ecos de empoderamento do movimento feminista. Num tempo em que a corporeidade e o livre arbítrio de uma mulher ainda se confundiam com luxúria, lascívia e prostituição, das que escolhiam e afirmavam seu próprios desejos.

Em breve e esquecida obra, relegando ao ostracismo também a sua mentora, a jornalista e escritora mineira. E que, agora, por iniciativa conjunta da atriz Maria Padilha e do dramaturgo Pedro Bricio leva à adaptação para os palcos do Hospício de Deus como Diários do Abismo, sob o comando diretorial de Sérgio Módena.

No monólogo, Maria Padilha assume a personificação desta mulher cuja trajetória pelos caminhos da insanidade mental fora antecipada por surtos delirantes de menina e adolescente, dos assédios sexuais à prematura gravidez aos 15 anos. E que, após bem sucedidas incursões profissionais de reportagem literária no Jornal do Brasil, decide se submeter a tratamentos psiquiátricos dos quais não escapa mais.

Em paisagem cênica concisa (André Cortez) ocupada apenas por colchões que funcionam como frontispícios frontais, quais portas ou janelas de um claustrofóbico quarto de hospício, enquanto emolduram passagens da representação da intérprete.

Na prevalência de uma indumentária (Marcelo Pies) sugestionando uniformes de interna, com marcações luminares (Paulo César Medeiros) ambientais, ressaltadas nas incidências sonoras da trilha (Marcelo H), nas projeções textuais ( Batman Zavareze) e em energizado gestual quase coreográfico (Márcia Rubin).

No contraponto de acurado esforço da concepção cênica/diretorial (Sérgio Módena) para fazer impor maior impulsividade a uma progressão narrativa sob insistente risco de quedas monocórdicas.

Onde, apesar de uma convicta entrega de Maria Padilha à performance, com um envolvente presencial até maior que a da personagem real Maura Lopes Cançado (segundo os que a conheceram de perto, não era lá tão atrativa e capaz até de posturas desmedidas), a representação acaba não fluindo em sua integralidade.

Ficando, enfim, distanciada de uma maior identificação do espectador com o estado de emoção psíquica contextualizado. Sem aquela pulsão artaudiana para que o fundo do poço se torne visceralmente matéria de reflexão e não apenas outra teatralidade de mais um caso esquizofrênico.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


DIÁRIOS DO ABISMO está em cartaz no Teatro 2 do CCBB/Centro/RJ, de sexta a segunda, às 19h30m. 60 minutos. Até 5 de novembro

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