FOTOS/ JULIA RÓNAI |
A literatura, a poesia e o teatro sempre estabeleceram
implícitas e sólidas ligações com a
história da Dança, desde as comédias de Molière ao romantismo, com suas
sílfides, o sobrenatural e a magia dos contos de fadas, inspirando grandes
clássicos do balé. No século XIX as maiores obras coreográficas nasceram de
romances e contos, indo de Miguel de Cervantes (Don Quixote) e
Théophile Gautier (Giselle) a Charles Perrault (A Bela Adormecida) e E.T.A. Hoffmann
(Coppélia e Quebra Nozes).
Desde sua estreia francesa em 1870, Coppélia resiste com seu viés de fascínio nas mais diversas
versões, a partir da coreografia original de Arthur Saint-Léon. Desta incursão em releituras a partir do
original participaram, entre outros, George
Balanchine, Pierre Lacotte, Roland Petit,
Enrique Martinez, incluindo-se uma concepção experimental, entre o cinema e o
palco, pela cia. de balé Maguy Marin.
E até o cinema se aventurou numa celebrada adaptação - Dr. Coppelius, de Ted Kneeland, em 1966, subvertendo a trama original, com o protagonismo absoluto do mágico artesão, indicador de sonhos e manipulador de delírios diante de uma comunidade provinciana.
E até o cinema se aventurou numa celebrada adaptação - Dr. Coppelius, de Ted Kneeland, em 1966, subvertendo a trama original, com o protagonismo absoluto do mágico artesão, indicador de sonhos e manipulador de delírios diante de uma comunidade provinciana.
Esta trama de amor e magia retira do conto original de E. T.A.
Hoffmann sua exclusiva nuance macabra, substituindo-a pela envolvência do
clima de fantasia e mistério, quase ingênuo, em torno da curiosidade camponesa para desvendar os assombramentos internos da casa de um inventor de
bonecos, numa aldeia cracoviana.
Nesta versão que o Balé
do Theatro Municipal vem remontando desde 1981, a coreografia é a de
Enrique Martinez concebida para o American Ballet
Theater de Nova York, conservando as linhas mestras de uma obra prima do
repertório desde a integralidade da partitura de Léo Delibes às bases academicistas do gestual
clássico/romântico.
Extensível ainda à bela paisagem cenográfica, das cenas em ambiência aldeã aos interiores com fantasiosas surpresas da casa do Dr. Coppelius, sempre em clima de encantamentos e, nitidamente, configurados sob marcas realistas por José Varona, responsável ainda pelos aquarelados figurinos
de substrato romântico/folclorista.
A desenvoltura da condução orquestral da OSTM por Tobias
Volkman soube bem como imprimir empatia no delineamento dos melodiosos acordes sinfônicos, no
entremeio de impetuosas valsas, mazurcas
e czardas, acrescidas do vigor de características danças espanholas e escocesas.
Enquanto o Corpo de Baile do TM revela, aqui, empenho e dignidade no desafio continuado desta sua difícil
crise enfrentada já há algum tempo, em busca do resgate de sua tradição estética como
única companhia oficial dedicada ao balé clássico no país.
Mesmo não tendo ainda retomado "au complet" um necessário alcance de unicidade e
equilíbrio qualitativo entre seus componentes, tornando cada vez mais premente a exigência de concursos ou mudanças regimentais para substituições
e preenchimento de novas vagas para bailarinos.
Surpreendente, entre tantos reveses, nesta bem cuidada remontagem, com perceptíveis e
bons resultados na recuperação de seus antigos atributos artísticos, pelo firme
comando direcional de Cecília Kerche e na acurada supervisão geral e coreográfica de
Dalal Achcar.
Onde o Dr. Coppelius,
um personagem que traz, na trajetória histórica do BTM, o risco e o desafio da marca carismática de Dennis Gray, e que
mais uma vez está sendo defendido, com bravura e raro apuro na representação de um papel de tipicidade mimético/teatral, pelo múltiplo oficio do artista convidado - Tíndaro
Silvano.
Este ator/bailarino, dúplice de coreógrafo mor, com instintiva exploração dos contornos histriônico/dramáticos do seu personagem, destacando-se ao lado do elegante frescor e do irradiante potencial de maturidade
técnica e presencial artístico dos primeiros bailarinos Cícero Gomes (Franz) e Claudia Mota (Swanilda),
alternando nos respectivos papéis
protagonistas respectivamente com os não menos talentosos Filipe Moreira e Renata Tubarão.
Resistindo todos com assumida pulsão direcionada à reconquista
do repertório de clássicos que sempre irmanou sua fiel plateia carioca. Na convergência de seus dotes individuais em energizado esforço coletivo pela redenção, agora, através desta Coppélia, oportuna referência memorial do Ballet do TM, no árido round de enfrentamento de uma luta que parece nunca
ter fim.
Wagner Corrêa de Araújo
COPPÉLIA/BALLET DO THEATRO MUNICIPAL/RJ, com récitas dias 29/09, 05 e 06/10, às 17h; 01,
02 e 04 de outubro, às 19h. 150 minutos.