FOTOS/ ELISA MENDES |
Como um clássico fenômeno de desconstrução investigativa dos
paradigmas estilísticos e convencionalismos temáticos da literatura brasileira,
Macunaíma, 1928, criação mor de Mario de Andrade pós Semana de 22, alcança agora,
sua terceira versão sob as instancias de instauração do novo e do polêmico.
No entremeio do desafio de outros corajosos avanços estéticos,
sob prevalente signo inventor, depois das emblemáticas releituras para o cinema, com
Joaquim Pedro de Andrade, 1969, para
os palcos, por Antunes Filho, 1978, e desta vez pelo comando concepcional/diretor de Bia Lessa.
Meio século depois da visão cinematográfica e quatro décadas
de sua primeira adaptação teatral, com a também não menos significativa Cia Barca dos Corações Partidos, adicionando ao seu elenco original
um número similar de sete atores, em
brava investida cênica para tempos de crise e de retrocesso político-ideológico, aqui
titulada como Macunaíma – Uma Rapsódia
Musical.
Enquanto a adaptação dramatúrgica do livro para o Grupo de Arte Pau Brasil, em 1978, teve
a chancela de Jacques Thiériot,
cabendo a Antunes Filho a sua viabilização cênica, a responsável por esta
recente transposição livro/teatro é Verônica Stigger.
Que ateve-se ao fio condutor do original literário, embora
sujeito a um olhar mais armado na contemporaneidade, completado pela nuance
mais transgressora de Bia Lessa, ao contrário do substrato mais ingênuo e primitivista, com um sotaque humoral chanchadesco,
pelo ideário cênico de Antunes Filho.
Na transcorrência de uma progressão dramática em contextual cênico
de rubricas ora soturnas, em irônico e, ao mesmo tempo, cáustico formalismo estetizante,
ora de assumidos despudores na reiterativa corporeidade desnudada e no referencial
sem amarras a uma livre sexualidade.
Mesmo que, por vezes, induza em certo prejuízo no desvio focal
da narrativa literária pelo apelo desordenado às abordagens orgiásticas e às desnecessárias citações escatológicas. O que, felizmente, não chega a interferir na completude da dialetação palco/plateia, direcionada, sobretudo, a provocar a não acomodação
diante de uma paisagem cênica sob o compasso de poesia e de pânico.
Ainda que a própria arquitetura dramatúrgica revele sua opção, a priori, em dar papel privilegiado à performance gestual e a uma teatralidade do
corpóreo, ao contrário da incursão mais imersiva na narrativa ficcional e no
aporte da invenção linguística, como no caso da paralela encenação de Grande Sertão:Veredas.
Com absoluto alcance na qualificação de um elenco de primeira
linha unindo a trupe dos músicos/atores da Barca (Adren Alves, Alfredo
Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fabio Enriquez, Renato Luciano, Ricca
Barros) à participação de mais outros sete integrantes. Confrontados entre a nudez frontal e os adereços indumentários de tropicalista rusticidade (Sylvie Leblanc, Maira Himmesltein e Bia Rovato).
De irreprimível “ostentação
cênica” (Bia Lessa) na funcionalidade imaginária do uso de elementos de base plástica, com
propósitos de instalação performática, ao acerto dos efeitos luminares (Paulo e Pedro Pederneiras) além
das audio-colagens e energizadas intervenções sonoras, ao
vivo sob o empenho, sempre artesanal, de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos, na direção musical, com uma valorosa participação adicional (O Grivo).
Desde o entrelaçamento da fisicalidade nua dos atores com lonas
negras na representação da poluição e da virgindade das matas, à envolvência abstracionista/geométrica de cubos plásticos, sugestionando ambiências intimistas e espaços urbanos.
Onde tudo converge para uma pulsão, metaforizada sob transcendentalismo mítico, do universo lendário popular ao
contraponto da consciência nacionalista através de um herói sem caráter, “satirizando o Brasil por ele mesmo", na
afirmação autoral andradiana. Complementada por antológica seleção inspiracional que vai de Antunes Filho a Tunga, passando pelo expressionismo fílmico de Murnau e a dança/teatro de Pina Bausch, com destaque especial para o jogo cenográfico de caixas com poemas concretistas.
Na passagem da pureza, no substrato indigenista da floresta e
da comunidade tribal, à sua conexão com desponderada e insana urbanidade da grande
metrópole induzindo, enfim, oportunos encantamentos e sustos, reflexionados à luz
das vivências controversas de um país em estado de assombramento e à beira do
caos.
Wagner Corrêa de Araújo
MACUNAÍMA–UMA RAPSÓDIA MUSICAL está em cartaz no Teatro Carlos
Gomes/Centro/RJ, de quarta a sexta, às 19h; sábado e domingo, às 18h. 180 minutos. Até 13 de outubro.
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