DO LIVRO E DO PALCO ÀS TELAS : 1 - O PROCESSO CRIADOR NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA

VIDAS AMARGAS. De John Steinbeck por Elia Kazan. 1955. Foto/Divulgação.


O momento capital nas complexas relações cinema/literatura/teatro é, exatamente, o procedimento técnico relativo à adaptação propriamente dita da obra literária ou teatral. É nessa hora que o roteirista vai demonstrar a sua força criativa ou a sua incapacidade em captar a essência dramatúrgica e a tessitura narrativa do mundo ficcional, gerado cuidadosamente pelo autor/inventor.

Vamos abordar aqui três ângulos diferentes na transposição cinematográfica da matéria ficcional, seja da literatura seja do teatro : o tempo de um filme, o texto-diálogo e a interatividade do espectador na continuação/criativa do filme ou da peça, entendidos como uma obra aberta.

Em primeiro lugar, o tempo ou, melhor, a temporalidade circunscrita do filme. Em regra, a obra fílmica quase nunca extrapola a duração média de duas horas (com exceções, e muitas, na verdade) significando isso então o maior peso que recai sobre o roteirista/adaptador.

Em outras palavras, exemplificando na transcrição cinematográfica de determinados clássicos literários onde quinhentas páginas terão que, forçosamente, se enquadrar em duas ou três horas de cinema. Se um volume da espessura de Guerra e Paz e do dimensionamento de Os Miseráveis, ou de peças longas como Hamlet, em seus cinco atos, fossem seguidos à risca pelo roteirista, isto demandaria, no mínimo, infindáveis horas de projeção.

E quando esta linhagem adotada é sequencial na fidelidade a um original, evitando cortes, o fracasso é o resultado mais imediato. Nenhum espectador é obrigado a suportar detalhes mínimos e cronológicos de obras literárias, extensas e minuciosas, levados indiscriminadamente à tela o que, evidentemente, não ocorre no ato da leitura sujeito a pausas voluntárias.

ANO PASSADO EM MARIENBAD . De Alain Resnais com roteiro Robbe-Grillet. 1961. Foto/Divulgação.

Talvez seja este o aspecto que tenha desencorajado e tornada raríssima a transposição de complexos universos ficcionais como o de Marcel Proust sustentado em detalhes e cenas prolongadas. Ostensivamente assumidos quando o comportamento psicofilosófico, prevalente sobre a simples ação, é  a estética formal de oitenta por cento da saga Em Busca do Tempo Perdido.

Por outro lado, pode-se adotar um ponto de vista como o de Elia Kazan que transformou o romance de Steinbeck  (East of Eden) em instigante obra prima, aqui titulada Vidas Amargas (chegando, mesmo,  alguns críticos a considerarem-na quase superior ao original), usando apenas a parte final do portentoso livro.

Numa história que abrangia três gerações em período centenário, o cineasta escolhendo apenas os dois últimos capítulos, em cerca de duas horas de projeção, focando nos últimos personagens da linha descendente familiar – os netos Cal e Aron, atingiu mais incisivamente o espectador que a integralidade do romance inspirador.

Exemplos claros do procedimento inverso são o  Ulysses de Joyce e o épico ficcional contemporâneo do Rosa da prosa O Grande Sertão : Veredas, ambos ficando aquém da qualidade inventiva e contundente do original, na releitura de Josep Strick  (Alucinação de Ulisses, 1967) e no convencionalismo acomodado dos Irmãos Pereira, em 1965, para uma obra mestra na busca inventiva de linguagem literária e metafísica. Num Grande Sertão que no teatro, meio século depois, aí sim,  alcançaria uma visceral e reflexiva incursão nos cânones de um mistificador mor do oficio literário,  pelo olhar provocador de Bia Lessa. 

Para fazer frente ou, pelo menos, tentar fugir à pressão da cronologia e da fidelidade na adaptação literatura>cinema, alguns cineastas e os roteiristas adaptadores tentaram avanços numa possível saída através do antienredo aplicado no antitempo.

E foram os partidários da transformadora corrente ficcional - o “nouveau roman” - os artífices do desafio pela eliminação literal das noções de tempo, enredo linear e até dos diálogos e personagens, concorrendo, sobremaneira, para o aparecimento de cineastas como Alain Resnais, exemplares na tendência de libertação dos cinema de quaisquer contingências naturalistas.

Resnais trabalhou várias vezes com um dos principais nomes daquele movimento literário – Robbe-Grillet, sendo os próprios romances deste último absolutamente cinematográficos. A realização máxima da parceria Resnais/Grillet foi um filme (L’Année Dernière à Marienbad) perfeito na sua “tentativa de se construir um espaço e um  tempo completamente mentais”.

Outro exemplo na filmografia de Resnais é o bem sucedido de público (ao contrário de O Ano Passado em Marienbad) Hiroshima, Mon Amour, onde a evocação do tempo era feita em três momentos – o tempo museológico (trechos documentais), o tempo do esquecimento e o tempo do amor presente, partindo do livre entrecho da novela de Marguerite Duras.

Reconhecendo um certo hermetismo nessa corrente fílmica, o próprio Resnais afirma em relação ao Ano Passado em Marienbad, antecipando conceitualmente o impacto que viria do ideário teórico propugnado na “Obra Aberta”de Umberto Eco:

O monólogo interior nunca está na banda sonora, está quase sempre na imagem que, mesmo representando o passado, corresponde sempre ao presente na mente do personagem”.

(Leia a sequência na parte II – Do Livro e do Palco às Telas : O Poder da Palavra Imagética no Cinema).

                                              Wagner Corrêa de Araújo

HIROSHIMA, MEU AMOR. De Marguerite Duras para Alain Resnais. 1959. Foto/Divulgação.

A MÚSICA DOS OLHOS : UMA BREVE TRAJETÓRIA DA TRILHA CINEMATOGRÁFICA

ALEXANDER NEVSKY. S. Eisenstein, 1938. Trilha de S. Prokofiev. Foto/Divulgação.


Veja o  filme, leia o livro, ouça o disco. Embora o cinema inspirado em obras literárias atraia maior legião de fãs que correm atrás dos livros transformados em roteiros para a tela, as trilhas sonoras também ocupam um lugar à parte na preferência de muitos espectadores, não necessariamente integrantes do universo musical.

A música sempre esteve indissoluvelmente ligada à trajetória histórica do cinema. Desde as primitivas experiências de Meliès e Lumière já se sentia a necessidade premente de cobrir o silêncio das imagens através de um acompanhamento musical, com músicos solistas (na maioria das vezes ao piano) ou através de pequenos conjuntos orquestrais.

Neste repertório inicial, populares temas musicais de compositores românticos, de Rossini a Johann Strauss Jr passando por Offenbach, num desfile de galopes, valsas, marchas e aberturas. Mas a primeira partitura concebida especialmente para o cinema apareceu, em 1894, nos pequenos filmes denominados “Pantomimas Luminosas”, de Émile Reynaud, constituindo-se de algumas variações para piano, por Gaston Paulin.

Durante um longo período, o problema maior foi o da sincronização de música/imagem. Era tão complexo isto que o francês Grimoin Sanson chegou a sugerir a projeção em primeiro plano da batuta de um maestro, orientando assim os músicos que ficavam sempre em posicionamento inferior ou lateral à tela. E aí vem um detalhe pitoresco, o aparecimento de guias musicais para o cinema, com indicação de trilhas sonoras ideais para as cenas de amor, riso, violência, crime ou morte.

Alguns curiosos exemplos : catástrofe (abertura Tannhäuser, de Wagner), cena dramática ("Sinfonia Patética", de Tchaikovsky), atmosfera solene (abertura Oberon, de Weber), cena sinistra (“Quadros de uma Exposição”, Mussorgsky/Ravel), aparições mágicas (“Uma  Noite no Monte Calvo”), lutas ("Dança Eslava, opus 15", de Dvorak), paixão amorosa ( Reverie, de Schumann).

Outra novidade surgida foi a de partituras incidentais montadas à base de fragmentos de vários autores, numa autentica salada musical, sem qualquer critério estético no entremeio de estilos e de épocas. E o primeiro compositor importante a escrever para o cinema foi Saint-Saëns, no filme “O Assassinato do Duque de Guise”, realização de Henri Lavedan, em 1908.

O CANTOR DE JAZZ. Al Jolson no primeiro filme sonoro, 1927. Foto/Divulgação.

A partir daí, a adesão dos compositores foi maior. Mas a dessincronização sons/imagem continuava a dar muita dor de cabeça, além de sugerir loucas imagens se os acordes ou os ruídos viessem atrasados. Quando, em 6 de outubro de 1927, estreou “O Cantor de Jazz” nascia, então,  o cinema falado. Sendo esta uma de suas primeiras grandes revoluções, não se separando mais música e cinema e surgindo enfim a trilha sonora exclusiva para a tela.

Chegando esta quase a ser considerada como a música sinfônica popular de nosso tempo, numa carona comum a partir do sucesso comercial de muitos filmes. Afinal, a trilha sonora passou, às vezes, a se aproximar do mesmo peso de grandes obras musicais, com estilos de escrita composicional que vão da linguagem do romantismo às mais sofisticadas tecnologias electro acústicas impulsionadas a partir do século XX.

Basta ouvirmos atentamente partituras elaboradas pelos precursores deste gênero, na maioria músicos europeus de formação erudita, obrigados pelos conflitos pré e pós Guerra Mundial a migrarem para a América do Norte. Desligando-se das imagens projetadas e concentrando-se nas intervenções musicais é como se, na verdade, estivéssemos numa sala de concertos.

Um exemplo clássico é a partitura de Max Steiner para “E O Vento Levou”, de 1939, com seus leitmotivs românticos e dramáticos. Sem deixar de citar as inspirações sinfônicas de E.W. Korngold, Dimitri Tiomkin, Miklós Rózsa, Franz Waxman, seguidos neste percurso por Maurice Jarre, Elmer Bernstein e Alfred Newman, para chegar à originalidade epigonal de autores como Bernard Herrmann, Nino Rotta, Ennio Morricone, Michel Legrand, entre muitos outros.

Havendo ainda um outro filão de compositores de reconhecido mérito histórico, com algumas raras mas bem sucedidas incursões em obras autônomas para trilha cinematográfica como S.Prokofiev, D.Shostakovich, A.Honneger, A.Copland. E, aqui, Villa-Lobos na preciosa colaboração para o “Descobrimento do Brasil”, 1937, de Humberto Mauro.

Há que se lembrar também do substrato sonoro composto ora por excertos sinfônicos, ora por temas eletrônicos ou simplesmente pelos uso antológico de canções. Uma tendência fragmentária tendo como base principal composições curtas, especialmente do repertório vocal da MPB como aconteceu em grande maioria nas produções brasileiras. Com exceções é claro através de mais sofisticado uso dos recursos sinfônico-cameristicos em trilhas independentes, por exemplo,  de Wagner Tiso e John Neschling.

De volta à ancestralidade das experimentações da sétima arte, naquele momento em que ainda se fazia uso recorrente de músicos nas sessões cinematográficas, continuava prevalente o desafio da incerteza de que haveria um dia a inclusão de acordes sonoros junto aos fotogramas da  película fílmica.

Mas foi, exatamente ali, em plenos anos 20, na fase ainda dos inventos no entorno das técnicas fílmicas de imagem e de som, que o pioneirismo da teórica, crítica de cinema e mentora de experimentos vanguardistas - a francesa Germaine Dulac - foi capaz de fazer a previsão da essencialidade obrigatória da trilha cinematográfica titulando-a, emblematicamente, como "a música dos olhos".

                                             Wagner Corrêa de Araújo


O DESCOBRIMENTO DO BRASIL. Humberto Mauro, 1937. Música de Villa-Lobos.

O CINEMA E AS NOVAS MÍDIAS VIRTUAIS REACENDEM A PAIXÃO PELA ÓPERA

LA TRAVIATA. Filme de Franco Zefirelli. 1982. Foto/divulgação.

Para o coreógrafo Maurice Béjart, o Século XVIII teve o teatro como dono absoluto, o Século XIX foi a era da ópera e o Século XX levou a dança à culminância.

Foi entre as duas últimas décadas da vida de W.A. Mozart (1756-1791) onde surgiriam os primeiros grandes campeões de um repertório operístico que se estendeu até os nossos dias. Passando por seu apogeu criativo no século seguinte quando a ópera ocupava, em caráter lúdico-artístico popular, o espaço que seria a posteriori do cinema.

Havia, então, simultâneas estreias de espetáculos líricos e certos compositores chegaram a números recordes nos teatros do mundo inteiro. Como Bellini, Donizetti e Rossini escrevendo tantas óperas por encomenda que o sucesso fácil tornou-se temporário e acabou por eliminá-las definitivamente do repertório em período relativamente curto. No Século XIX, ir à ópera era o equivalente, em termos de diversão, de ir ao cinema hoje. Havia óperas  e operetas para todos os gostos e, muitas vezes, os compositores faziam concessões para alcançar um público cada vez maior.

A primeira ameaça a este estado de coisas começou com o drama lírico de Richard Wagner trazendo uma nova linguagem e uma verdadeira revolução na concepção do espetáculo operístico. O próprio Giuseppe Verdi, então o ídolo absoluto da ópera italiana na segunda metade do século, acabou cedendo no seu modo de encará-la esteticamente e escreveu um Otelo e um Falstaff mais dramatúrgicos, que surpreenderam de vez o público e balançaram a crítica da época.

Mesmo com o surgimento de outro nome mais mítico, já no início do Século XX, o prestígio absoluto da cena lírica já estava sendo abalado pelo fenômeno do cinema. Até a década de 20, quando a sétima arte começa a se tornar definitivamente arte de consumo, a ópera ainda teve seu grande público que acorria curioso para ver as ainda inúmeras estreias  do gênero cênico-musical. Giacomo Puccini teria sido, assim, o último operista ao inteiro gosto deste público.

Com a inventividade deflagrada pelo modernismo musical, o velho estilo e a fórmula tradicional do bel-canto foram questionados e já nas primeiras décadas começaram a diminuir as temporadas dos teatros dedicadas exclusivamente à ópera. Com a gradual substituição de seus repertórios por espetáculos mais leves como operetas, comédias musicais e, alguns destes, até mesmo por filmes silenciosos acompanhados por um pequeno conjunto orquestral. Começava, aos poucos, a se delinear a era do cinema que, rapidamente, iria se transformar numa arte de multidões, num nível próximo ao que tinha sido a ópera no período anterior.

O cinema, no entanto, não esqueceria a ópera como substitutivo na preferência popular e várias delas foram para a tela em adaptações compactas ou filmagens diretas, mas ainda bastante precárias, de espetáculos ao vivo. Mas todas estas tentativas redundavam em habitual fracasso comercial e desinteresse do público, na condenação da crítica especializada e na própria objeção dos músicos e cantores envolvidos nestas produções para as telas.

A FLAUTA MÁGICA. Filme de Ingmar Bergman. 1975. Foto/Divulgação.

Esta situação perdurou até os anos 70, cometendo até algumas injustiças e imperdoáveis ausências de registros documentais. Como as performances de Maria Callas limitadas a algumas filmagens de concertos em Hamburgo e Colônia e à insegurança de uma transmissão televisiva, com certo amadorismo, de um segundo ato da Tosca, no Convent Garden, Londres 1964, o único legado de atuação cênica, como cantora,  da emblemática carreira da soprano. Alguns anos mais tarde, ela protagonizaria uma Medéia, no filme de Pasolini, apenas como uma excepcional atriz dramática e sem qualquer intervenção que remetesse à sua celebrada trajetória de intérprete lírica.

Nos primeiros tempos do Cinema Mudo, houve uma tendência de aproveitamento dos enredos das grandes óperas, favorecida por uma certa grandiloquência muito em moda nos filmes da época. Carmen ou La Traviata eram as mais adaptadas, de forma sintética utilizando-se inclusive arranjos instrumentais para piano, órgão ou pequenas orquestras. Onde constatava-se a primeira razão alegada para o insucesso da ópera no cinema tendo como base o fato de que o espetáculo lírico era manifestação de peculiar substrato estético, ou seja, tornava-se impossível filmar uma grande ária em sua integridade, fazendo prevalecer a técnica cinematográfica com sua mais breve sequencialidade narrativa e seus instantâneos cortes.

A outra rejeição vinha dos amantes fanáticos do bel-canto, impossibilitados da ovação presencial em cena aberta, perdendo o teatro lírico, com esta ausência, parte substancial dos caracteres de féerie que arrastam, num mesmo impulso, espectadores e cantores em delírio de música, vozes e dramas humanos teatralizados. Para as já grandes plateias de cinema, já desacostumadas com o tradicional espetáculo ao vivo, assustava dispender duas horas ou mais numa sala escura ouvindo extensas  árias e duetos e o desenrolar de um enredo na tela, ao contrário do palco, sem qualquer intermezzo ou entreatos.

Mesmo assim, numa variante ascendente da evolução operística, as operetas e os musicais foram tomando seu lugar, através do melhor dimensionamento de equilíbrio entre leves histórias amorosas, no entremeio de texto falado, canto, coreografia e música. Foi a era de ouro da opereta americana e seus ídolos, entre outros, Deanna Durbin, Maurice Chevalier, e a dupla Nelson Eddy / Jeannete Macdonald. Gênero de grande apelo popular até a  eclosão da Segunda Grande Guerra, estendendo-se até os anos cinquenta quando cedeu lugar aos musicais.

Só a partir do final dos anos 50, cineastas conhecidos como Roberto Rosselini se aventuraram em transcrições da Traviata, dos Contos de Hoffman e até de uma obra contemporânea Jeanne au Bucher, texto de Paul Claudel e música de Arthur Honneger. Abriam-se as portas para Luchino Visconti e Franco Zefirelli migrando de suas notabilizadas régies nas principais casas de ópera europeias para as surpreendentes versões cinematográficas dos anos 70 em diante.

Antecedidas pela possibilidade de transformar um ópera em outra obra priorizando a estética cinematográfica, como foi o caso da Carmen Jones, em 1954, por Otto Preminger. Quase jazzística, com entrecho contemporâneo, inspirado livremente na música de Bizet e na novela de Prosper Merimée.

Iniciava-se um novo tempo no cruzamento de duas linguagens artísticas, em releituras gerando verdadeiras obras primas independentes da rigorosa fidelidade ao original. Como a Flauta Mágica de Mozart/Bergman, com sua incisiva alternância da visão do palco e das reações da plateia. Ou como a bem sucedida experiência conjugando dança, canto lírico, teatro e cinema em West Side Story, de Leonard Bernstein por Robert Wise. Ou do incrível uso, com um referencial de recitativo, do meio termo entre canto e fala modulados musicalmente sob leitmotivs por Michel Legrand e pela cinematografia de Jacques Demy, através de uma quase ópera - Os Guarda Chuvas do Amor.

E, dos anos 80 ao terceiro milênio, com as novas tecnologias, indo do videocassete ao blu ray, para chegar às redes virtuais, em novo surto de ampliação de público, fissurando a noção habitual de ser um espetáculo elitista, atraindo a atenção dos diretores teatrais e constituindo-se, enfim, num inegável renascimento da velha paixão pela ópera.

                                          Wagner Corrêa de Araújo

WEST SIDE STORY. Filme de Robert Wise.1961. Foto/Divulgação.

ENTRE OS PALCOS E A TELA : A COREOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA

BALLET MECANIQUE. Filme de George Antheil / Fernand Léger. 1924. Foto/Divulgação.

A partir das primitivas experiências cinematográficas, na última década do século XIX, já nas incursões de Georges Méliès, o balé com formas clássicas se fez várias vezes presente através de divertimentos coreográficos de caráter sério ou em pantomimas burlescas. Como nas antigas sombras chinesas nas quais a dança das silhuetas era acompanhada por músicos ou por pequenos conjuntos orquestrais, o mesmo ocorreria com estes filmes.

Com o gradual desenvolvimento da “sétima arte" a dança continuou como parte integrante das obras cinematográficas alcançando similar posição destacada das óperas e dos romances transpostos à tela. Inclusive, tendo como base o movimento do corpo humano encarado inventivamente pelo coreógrafo/criador, tornou-se motivo de surpreendentes efeitos videográficos mesmo sem grandes preocupações com o ritmo, este essencial para o desenvolvimento da trama romanesca, na média das duas horas de um filme normal.

A dança se impunha dependendo da maior ou menor expressividade da coreografia, havendo apenas o difícil problema da sincronização do som e da imagem no cinema silencioso. O regente teria que conhecer perfeitamente o filme para saber em que exato momento deveria mudar o tempo ou o movimento. E até sinais foram colocados em determinadas películas, para orientação dos músicos.

O principal problema da dança no cinema continua sendo ate hoje a maneira como ela deva ou não ser tratada. No cinema documentário é natural que o objetivo seja preservar um determinado evento histórico, social ou artístico. Assim, a filmagem de atuações dos grandes mitos da dança do século XX permitiu que as futuras gerações tivessem, pelo menos, uma ideia do que representaram para uma época esses catalisadores de êxtases coletivos. Desde Nijinsky, Pavlova, Isadora, no passado, Nureyev, Margot Fonteyn, Plissetskaya, Baryshnikov, em tempos mais próximos de nós.

A simples filmagem documental de balés oriundos dos palcos, por outro lado, pode cair em medíocre passagem para a tela de peças quase lugares comuns do repertório popular e historicista da dança. Tornando necessário que o olhar mais atento do cinegrafista tenha uma visão absolutamente livre do tradicionalismo nas suas tomadas e movimentos da câmera, a partir da ideia de um espetáculo circunscrito às medidas limitadoras de um palco de teatro.

A dança na caixa cênica tem existência autônoma e sua  transformação em filme não lhe acrescentará nada, se não houver o ponto de vista criativo-estético do cineasta, principalmente se considerarmos o elo profundo que une, numa mesma emoção coletiva, dançarinos e espectadores (cortado em grande parte no cinema, pela ausência física dos primeiros).

É o que nunca aconteceu com a dança pensada exclusivamente em moldes fílmicos e que gerou inesquecíveis momentos nos anais do cinema. Através de coreografias grandiosas em termos de cenografia trazendo números quase infinitos de bailarinos, assim vistos pela profunda perspectiva dos ambientes faustosamente decorados, na prevalência de planos gerais e tomadas em câmera alta. Exemplos perfeitos foram os de Busby Bekerley, talvez o coreógrafo máximo da fase áurea do cinema musical/dançante, e os filmes com Fred Astaire e Gene Kelly (mais ricos em movimento e ritmo que em cenas imponentes).

BODAS DE SANGUE, de Carlos Saura. 1981. Foto/Divulgação.

Coreograficamente valem ser lembrados filmes musicais para sempre inscritos na memória popular e nas enciclopédias de cinema. Indo do Ballet Mécanique  (Fernand Léger/George Antheil –1924) ao West Side Story (na versão de Robert Wise de 1961), passando por Bob Fosse (All That Jazz, 1979) além dos filmes coreográficos de Carlos Saura. Chegando ao cinema de animação com Fantasia (1940), de Walt Disney, em três retratos coreográficos a partir da Pastoral de Beethoven, da Sagração de Stravinsky e da Dança das Horas de Ponchielli, e ao Norman McLaren do curta Pas-de-Deux, de 1968.

Hoje, varias abordagens estéticas se confrontam face à dança e seus desafios no relacionamento com a “décima musa” de Cocteau. O cinema documentário propriamente dito no registro dos grandes balés clássicos de repertório e performances ora folclóricas ora contemporâneas, além das biografias de mitos populares interpretadas por ídolos do balé, de Nureyev em Valentino ao Nijinsky pelo bailarino Gregory La Peña, além de atuações como ator/bailarino por Baryshnikov.

Na aproximação destas duas linguagens – dança/cinema – muitos foram os maus resultados. Obras imortais do repertório perderam seu vigor original na transposição para a tela, quando houve um perceptível mau uso de efeitos especiais e trucagens, tornando os intérpretes/bailarinos meros artifícios das técnicas cinematográficas ao fazer prevalecer uma linguagem artística sobre a outra.

Mas ao mesmo tempo com os recursos dos meios virtuais, seguindo-se aos inúmeros registros do videocassete ao blu ray, hoje a dança faz parte de nosso cotidiano domiciliar, especialmente neste momento de crise sanitária e isolamento pandêmico.

Que, por um lado, nos privou do contato presencial das salas de teatro e de cinema mas possibilita, em tempo real, a mágica envolvência em catarse coletivo na ambiência intimista de nossas casas, numa ansiosa e definitiva pulsão a la “grand jeté” no balé das viagens pelos espaços siderais da mente.

E na constatação de que a dança não é apenas "uma música que se vê" mas, também, ainda na simbologia das palavras poéticas de Paul Valéry, “o mais puro e completo ato das metamorfoses”.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

O SOL DA MEIA NOITE. Filme de 1985. Baryshnikov e Gregory Haynes. Foto/Divulgação.

REGRESSO A DOIS MEMORÁVEIS MOMENTOS DA CENA TEATRAL CARIOCA

KRUM. Abril de 2015. Foto/Nana Moraes.

Eu deveria quem sabe agora deixar cair uma lágrima por causa dessa espécie infeliz”. Quando um dos personagens profere esta frase, com seu cortante niilismo, é como se estivéssemos a escutar Schopenhauer : “O destino é cruel e os homens dignos de compaixão”.

Ansiedade, alienação, tédio, miséria, perpassam assim por todos os seres que povoam este pequeno, sórdido e absurdo universo de Krum. Este texto dramatúrgico, do autor israelense Hanoch Levin, é completado na simbologia de seu subtítulo – “Ectoplasma, peça com dois casamentos e dois funerais”.

A resignação, disfarçada pela ilusória perspectiva de mudanças, aproxima-os irremediavelmente de uma postura filosófica de auto-negação, no eterno retorno do fim que não leva ao nada. Aqui a difícil condição de suportar a condição humana não conduz a qualquer espécie de felicidade ou legado.

O anti-herói Krum (Danilo Grangheia) retorna à casa materna com um mala de roupas sujas, mãos vazias e nada mais. Sua vã tentativa de escapar da sufocante mediocridade de uma comunidade provinciana coloca-o, novamente, diante destes habitantes/prisioneiros da ausência de escolhas oferecida pela vida.

E em confronto com a mãe (Grace Passô) ecoando seu insistente jargão de cobrança ao filho - “O mundo só tem isso para te dar”- e também de sua antiga amante Tudra Renata Sorrah) que expõe, com palavras e canto, este em alemão, a poesia amarga de sua dilacerada intimidade em exponencial atuação.

Qualidades interpretativas presentes ainda no enfermiço Tugati (Ranieri Gonzalez) e sua mulher Dupa (Inez Viana) que troca a frustração matrimonial por uma fugaz e fria aventura sexual com Bertoldo (Rodrigo Bolzan). Ao lado do caráter risível de um casal, fazendo o falso intelectualismo de Dolce (Edson Rocha) esconder as vulgaridades de Felícia (Cris Larin), em meio ao cerimonial de casamentos e funerais.

Enfim, uma simbiótica orquestração estética de performances, tendo no podium teatral a carismática regência de Márcio Abreu. Aqui entre solos e conjuntos, sob os precisos efeitos blackouts da iluminação claro/escura (Nadja Naira), recatados figurinos (Ticiana Passos) e décors teatrais (Fernando Marés), propícios sobremaneira a este painel dostoievskiano de humilhados e ofendidos.

Destaque ainda para a expressiva gestualidade (Márcia Rubin), em especial na grotesca mecanicidade da discoteca, e para as preciosas interferências sonoras de ruidosos tremores como “ectoplasmas”, intermediados pelos cantos a capela do elenco, entre o romantismo, o sacro e o pop/rock (Felipe Storino).

Tudo enfim convergindo palco/plateia para uma melancólica catarse, perante a imobilista indiferença de uma sociedade cruel em que o ato de "viver é muito perigoso" sempre, e onde, com a morte : “Você não vai perder nada, Tugati, pode acreditar. Olha bem pra gente, olha pras nossas vidas, olha pras nossas casas...”

O raro “Anti-Nélson Rodrigues”, tragicomédia com todos os elementos característicos da dramaturgia rodrigueana, traz, no entanto, em sua carga de irônico melodramatismo, o triunfo final do amor sobre a corrupção.

Na peça, o inescrupuloso Oswaldinho (Joaquim Lopes) rouba e abusa da fortuna do pai Gastão ( Rogério Freitas) e, sob os mimos da mãe Tereza (Juliana Teixeira) , alcança a presidência de uma de suas fábricas. Ali assedia, com concupiscência e promessas financeiras, a suburbana, evangélica incorruptível, Joice (Yasmin Gomlevsky).

Com primazia absoluta pela auto-referência, retorna um dos alter egos de Nélson, o jornalista aposentado Salim Simão (Tonico Pereira), na crítica e bem humorada abordagem das mazelas da imprensa marrom e dos delírios futebolísticos.

E, paralelamente, entre maiores e menores atuações, sucessivamente, vão e voltam outros personagens como o mensageiro Leleco (Gustavo Damasceno) e a criada Helenice (Carla Cristina). Contracenando todos com as contínuas execuções de um pianista (Francisco Pons) .

A bela concepção cenográfica (Pati Faedo) alterna objetos (cadeira, cama e mesa) e revela rosas vermelhas, ressaltados pela luz cinematográfica de precisos closes (Luiz Paulo Nenem) que incidem também nos detalhamentos elegantes do figurino (Nívea Faso). E, ainda, o destaque da trilha sonora pianística (Mauro Berman), intimista e reflexiva no desnudar sentimentos.

Em exacerbado descortino emocional, desfilam conflitos filiais/paternos de desprezo e ódio, instintos edipianos matriarcais, falsidades morais, despudores da sexualidade e o barato materialismo do poder financeiro.

Tudo isto captado com densidade e poesia pela direção (Bruce Gomlewsky) que vai imprimindo sua originalidade estética sem a perda da identidade rodrigueana, num texto de rubrica titular opositória.

Enfim, esta surpresa da temporada teatral 2015 é obrigatória também pela performance exemplar de um elenco de craques, coeso e qualificativo, na exorcização de um universo sombrio onde, nas palavras do próprio “anjo pornográfico”:

Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano. Talvez algum dia o sol mude de lugar, mostrando então outras partes da paisagem humana”.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


ANTI-NÉLSON RODRIGUES. Maio de 2015. Páprica Fotografias.




UM OTELO COREOGRÁFICO SOB PERCEPTÍVEL SOTAQUE FASSBINDERIANO

OTELLO, Balleto di Roma. Outubro de 2020. Fotos/Divulgação.


Desde a segunda metade do século XVIII, numa esquecida versão para Antônio e Cleópatra na escritura acadêmica de Jean-Georges Noverre, os grandes clássicos do teatro shakespeariano vem fascinando o universo coreográfico. 
Com prevalentes versões de Romeu e Julieta, seguidas pelo Sonho de Uma Noite de Verão e Otelo, sem esquecer de citar adaptações menos frequentes para Hamlet, Macbeth e A Megera Domada.

Deixando de lado as inúmeras recriações em torno da narrativa mais apaixonante mas não menos trágica dos jovens amantes de Verona, é a história do Mouro de Veneza a que mais tem atraído os coreógrafos por sua visceral abordagem de um jogo de amor, ambição, ciúme, traição e morte.

Algumas das mais originais incursões na verdade patética da inocência de Desdemona e na vilania da inveja e da mentira propugnada por Iago, causas do enredamento de Otelo num labirinto de intrigas e calúnia, aconteceram especialmente a partir dos anos do pós-guerra, estendendo-se às duas primeiras décadas do terceiro milênio.

Vale relembrar a potencial e então inovadora proposta do mexicano José Limon, em 1949, The Moor's Pavane,  que sob acordes barrocos de Purcell, ressaltava a identidade racial negra e uma subliminar referencia à questão homoerótica no ambíguo relacionamento entre Iago e Otelo, envolvendo  poder politico e  atração amorosa.

Outras provocantes abordagens foram as do americano Lar Lubovich em 1997, com energizado score sonoro composto especialmente para a montagem por Elliot Goldenthal, incluindo uma Tarantella, dança considerada demoníaca à época histórica da peça, que reunia o quinteto Otelo, Iago, Cássio, Emília e Desdemona.

Além da contextualização contemporânea de John Neumeier, de 2013, para o Balé de Hamburgo, sem esquecer o curioso enfoque de Doug Elkins, de 2012, tendo como substrato as composições musicais do Motown.

Considerada uma das mais antigas e fundamentais cias contemporâneas italianas em suas seis décadas de ininterrupta atuação, o Balletto di Roma reestreou em data recente o seu Otello, segundo uma ideia de Fabrizio Monteverde, o coreógrafo oficial do ensemble.

A obra integraria a temporada brasileira 2020 da Dell Arte mas foi adiada para 2021 devido à pandemia. Mesmo assim, foi disponibilizada nas redes virtuais até o dia 5 de novembro próximo em apurada versão filmada em sistema HD 4 k.

Transpondo a ação da república veneziana para um porto qualquer da atualidade, este Otello se aproxima de temas capitais da problemática de nossos dias. De um lado, os conflitos migratórios, entre partidas sem destino certo de forasteiros e viajantes apátridas, por causas políticas ou religiosas; de outro, os preconceitos raciais, pulsões machistas ou a não aceitação de diferenças de identidade sexual.

Numa paisagem cênica portuária (em dúplice oficio de seu coreógrafo mentor) que remete como um leitmotiv, pelo uso de sombras e luzes (Emanuele De Maria), com predominância de tons sanguíneos, aos fotogramas de Querelle du Brest, de Fassbinder, extensivos aos figurinos atemporais (Saint Rinciari) sob matizes uniformes entre cinzas e ocres.

Onde um recorte de passagens orquestrais de Dvorák, no entremeio romântico nacionalista das danças eslavas e em dramáticos acordes sinfônicos, serve de substrato sonoro para expressar o contraponto dos embates psicológicos dos personagens protagonistas, direcionados à tragédia conclusiva, com aproximativa linguagem estética de dança-teatro sem preocupação de fidelidade absoluta e linear à dramaturgia original.

Alternando-se as performances grupais, solos e duos, destaca-se um afinado corpo de baile e solistas, com interatividade interpretativa entre os papéis principais, como o incisivo encaminhamento da falsa lealdade de Iago (Paolo Barbonaglia) e da manipulada ingenuidade de Cássio (Ricardo Ciarpella).

E onde o pigmentação morena e a rusticidade facial do bailarino Vincenzo Carpino (Otelo) estabelecem um contraste racial com a branquitude da pele e dos traços finos de Roberta De Simone (Desdemona). Ao mesmo tempo em que são enfatizadas as peculiaridades gestuais contrastantes de machismo e submissão, paixão e ciúme.

Capazes de aflorar instintos assassinos, entre a fiscalidade atlética do desafiado domínio masculino e a delicadeza erotizada da corporeidade feminina, conduzindo, sobretudo, à envolvência sedutora do pas de deux de vida e morte da cena final.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

OTELLO, com o Balleto di Roma, está disponível, até o dia 5 de novembro, no endereço : digital.dellarte.com.br 

ICÔNICOS EXEMPLARES DA MODERNA DRAMATURGIA BRITÂNICA

The Suit, criação de Peter Brook. Junho de 2015. Foto/ Tristram Kenton.


Quando num palco quase nu, vemos cadeiras de cores diferentes (talvez para acentuar seu caráter lúdico), um tapete, algumas armações com cabides e cortinas, servindo de portas, paredes imaginárias e passagens, tendo ao lado três músicos que dividem a performance com os três atores, armamos nossos olhares na exclusiva duplicidade do ver e ouvir atores.

Inspirada num conto de Can Themba, um escritor sul africano cruelmente afetado pelo ódio e rejeição do apartheid, THE SUIT mereceu de Peter Brook (na companhia criativa de Marie-Hélène Estienne e Franck Krawzyck) uma das mais sensíveis adaptações de sua trajetória de encenador mor.

Aqui, um advogado Philomen (Jared McNeil), a partir de um flagrante de adultério de sua mulher Matilda (Cherise Adams-Burnnet), obriga-a a conviver cotidianamente com o terno deixado para atrás pelo amante em fuga.

Como se este objeto mimeticamente fora um honrado hóspede vivo, indo na contramão conceptiva de que o hábito não faz o monge, ela cumpre, por ingerência do marido traído, os afazeres cotidianos com a cumplicidade do terno propositalmente esquecido.

Esta alegoria da repressão machista atinge sua culminância quando, numa festa com os vizinhos, ele o traído, lembra em sarcástica ironia que, afinal, temos mais um visitante, o terno. Humilhada e subjugada, ela assumindo a culpa resolve optar por uma solução fatalista.

Em tom fabular, o texto tem uma narrativa de sequencial linearidade  a partir do original literário, entremeada pelas canções e temas musicais executados ao vivo por um trio integrado por violão (Harry Sankey), trompete (Jay Phelps) e teclado (Danny Wallington), recortando um repertório que vai da Serenata de Schubert à Paixão Segundo São Matheus, de Bach.

Completada, ainda, pelo oportuno referencial da sonoridade jazzística de regozijo de “Feeling Good” ou da opressividade de “Strange Fruit”. E no simbológico canto tradicional da Tanzânia – “Malaika, Nakupenda Malaika” (Anjo, eu te amo, anjo), acentuando um sublime acento vocal da atriz/cantora.

A iluminação (Philippe Vialatte), ora carregada de tons crepusculares ora vazada na claridade, ressalta a adequada singeleza dos figurino (Oria Puppo).

Na culminância do público sendo convocado a subir ao palco na cena festiva que antecede a tragicidade final, numa celebração que une atores e músicos em performance ritual.

Que, em compasso de despedida, anestesiado pelo compartilhamento palco/plateia da simples/sensível proposta cênica em torno da vingança e do perdão, sente, enfim, o gosto da verdade estética enunciada pelo próprio Brook:

“Meu único objetivo no teatro é que as pessoas, depois de uma hora ou duas juntas, de alguma forma saiam com mais confiança na vida do que tinham ao chegar”.

O dramaturgo inglês Joe Orton teve a ideia de um roteiro cinematográfico com irônicas insinuações de atitudes homoeróticas entre os Beatles mas o polemico teor do tema impediu a sua consecução.

Em 1987, Stephen Frears aproveita o título biográfico - Prick Up Your Ears - num filme, sobre as perigosas aventuras sexuais da vida de Orton, com uma referência sobre a sugestão proibida.

Na rápida e múltipla trajetória artística do autor, nos libertários anos 60, era preciso estar atento à suas ferinas palavras, capazes de perfurar, o tempo todo, a sensibilidade auditiva. O anticonvencionalismo moral era ali sua marca registrada, especialmente nas concepções teatrais.

E, assim, O Olho Azul da Falecida (Loot) não foge à regra, tendo se transformado no seu maior êxito, com satirização mordaz dos princípios religiosos, tradições familiares, posturas políticas e ritualismo social.

Em tom de farsa demolidora, com humor ácido, o enredo dramatúrgico tem sua maior força no absoluto predomínio de diálogos de cortante cinismo. E que a direção segura de Sidnei Cruz procura manter, tendo como base uma esmerada tradução de Barbara Heliodora.

Por vezes, sob o risco da predominância do clima de vaudeville tirar o foco crítico do texto, mas sem jamais perder o dimensionamento inventivo, habitual nas propostas da Cia Limite 151, em suas oportunas incursões no repertório de todas as épocas.

Harold (Rafael Canedo) filho da "falecida", aliado ao agente funerário e amante Dennis (Helder Agostini), esconde o dinheiro de um roubo no caixão da mãe. Entre idas e vindas do viúvo Mac Leavy (Mário Borges), assediado por uma enfermeira assassina Fay (Gláucia Rodrigues), eis que surge o decisivo detetive Truscott (Tuca Andrada), acompanhado do policial Meadows (Johnny Ferro).

O funcional cenário(José Dias), com seus precisos pontos de entrada e saída, favorece, ao lado da discrição do figurino (Samuel Abrantes), uma certa atemporalidade da arquitetura cênica, ressaltada pelo equilíbrio entre a iluminação (Rogério Wiltgen) e o score sonoro (Wagner Campos).

O elenco, coeso e acertado, acentua a diversidade de nuances dos personagens, entre psicopatas, falsos ingênuos, meliantes, hipócritas, aliciadores, em contraste enunciando sempre um único incorruptível e, por isto mesmo, a possível vítima.

Alcançando todos a trágica dimensão do saque (“loot”) do caráter humano quando, ao fazerem seu egoísta e zombeteiro jogo com o ritual da morte, tornam verossímeis as palavras do próprio Joe Orton:

“Se você é absolutamente prático – e espero que eu seja – um caixão é apenas uma caixa. Se uns o chamam de caixão e, por sua vez, você o chama de caixa, então ele pode ter qualquer tipo de utilidade.”

                                                 Wagner Corrêa de Araújo

O Olho Azul da Falecida. Joe Orton na visão de Sidnei Cruz. Maio de 2015. Foto/Guga Melgar.

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