O Barbeiro de Sevilha/Rossini. Julianna Santos/Concepção Direcional.TMRJ. Novembro/2022. Fotos/Daniel A. Rodrigues. |
“Esta ópera traz as
marcas da pressa e ainda mais da extravagância; mas estamos convencidos de que
todas as pessoas que levaram o estudo da música ao mínimo grau de refinamento
devem ter ficado encantadas e surpresas com os toques ocasionais de gênio, a
variedade e a originalidade de seu estilo”(TheTimes,
março de 1818, na estreia londrina de O
Barbeiro de Sevilha).
Desde então, há cerca de dois séculos, vem se tornando não só
a campeã em popularidade das 38 óperas compostas por Gioacchino Rossini e, mais ainda, se transmutando no modelo
histórico exemplar do gênero musical cômico titulado como opera buffa. Não tendo ido bem na sua première em Roma, dezembro de
1816, mas já nas outras récitas aplaudida calorosamente pelo público, fenômeno sequencial
ininterrupto até os dias de hoje.
Adaptada como um libreto de Cesare Sterbini, fruto da fusão de peças do múltiplo oficio inventor de Beaumarchais, sua temática é sustentada em irônica crítica e burlesco entrecho sobre conservadores comportamentos morais no entorno das relações amorosas. Dando espaço a um conceitual de atemporalidade que permite sua funcionalidade em qualquer época, independente de seu contexto original ser do século XVIII.
O Barbeiro de Sevilha. Em cena, Rose Provenzano-Páscoa e Lara Cavalcanti. Novembro/2022. Fotos/Daniel A. Rodrigues. |
Nesta retomada pós-pandêmica, em montagens americanas
recentes houve a inserção radical de temáticas da contemporaneidade na ópera de Rossini, como numa delas a ambiência
da juventude roqueira, em outra referenciais da
Covid-19 e da invasão da Ucrânia. E a montagem que encerra a Temporada Lírica 2022 do Theatro Municipal carioca não fica longe deste espírito inovador pelo
engajamento sócio-político da concepção cênica-direcional de Julianna Santos.
Sabendo apurar o investimento numa teatralidade de humor que
se expande em cena e é capaz de desentorpecer o mais acomodado dos
espectadores.
Desdobrando sua cena para os anos libertários que se seguiram
ao final da Segunda Guerra Mundial, enfatizando os movimentos feministas
através da indumentária (Olintho Malaquias), sob traços satíricos de um célebre
pôster de J. Howard Miller. Funcional
em sua aquarelada jovialidade, mas sujeita a ocasionais destemperos cênicos. Tais
como um equivocado e quase simplório aparato cenográfico (Giorgia Massetani)
sem alcance de brilho plástico/estético, além de gerar instabilidades no seu
uso e nos seus deslocamentos (com
recorrência constante a contra regras), mesmo sob o disfarce de transparências e cuidadosos efeitos
luminares (Fabio Retti/Paulo Ornellas).
A tipicidade desta trama novelesca, apresenta dúplice
alteridade entre o melodrama e a comédia, no intermédio de muitas situações
farsescas e um quase absurdo clima de intrigas, para contar a história de um
casal de apaixonados (Rosina e o Conde de Almaviva) instigados por um barbeiro (Figaro) que desafia o velho tutor (Bartolo) da jovem em favor do
amor desta pelo Conde.
Num elenco integrado por nomes conhecidos e aspirantes a uma
trajetória lírica, destacam-se, em primeiro plano, a irradiante espontaneidade físico/musical
do baritono Vinicius Atique (Figaro), a
empatia juvenil e o fraseado lírico da mezzo-soprano Lara Cavalcanti (Rosina) e a segura presença cênica
conectada à bela tessitura de voz pelo tenor Aníbal Mancini (Conde de Almaviva).
Além da convicta atuação do baixo Saulo Javan (Dom Bartolo) e uma surpreendente
revelação como comediante/cantora de um nome em ascensão, a soprano Rose Provenzano-Páscoa (Berta). Embora brilhe na linha dramatúrgica
assumida por seu personagem, sob sensorial sotaque de comicidade, o baixo
Murilo Neves (Dom Basílio) deixou a
desejar com uma excessiva sobriedade em seu timbre vocal, especialmente nas passagens
da desafiante ária La Calunnia.
A OSTM na primeira
apresentação operística/encenada de seu novo regente titular (Felipe Prazeres)
foi consistente na modulação ágil das pulsantes variações melódicas da
partitura, saindo-se bem da sutileza das passagens líricas aos andamentos mais
dramáticos. O Coro do TMRJ, sob um luminoso comando artesanal
de Priscila Bomfim, conecta com equilibrada ornamentação os diferentes timbres
vocais.
Imprimindo credibilidade a esta montagem pelo empenho musical de seus corpos artísticos, por convincentes protagonistas vocais e pela lúdica envolvência atoral de sua performance cênica. O que, se por um lado ainda não retoma in totum a tradição histórica de nosso mais famoso palco de ópera e de Barbeiros memoráveis, como o de Gianni Ratto nos anos 80, é um feliz augúrio de que a atual direção artística (Eric Herrero) do TM está, enfim, depois de tantas incertezas, trilhando o caminho certo...
Wagner Corrêa de Araújo
O Barbeiro de Sevilha, está em cartaz no TMRJ, do dia 18 até o próximo sábado, 26 de novembro, às 19h,
em sua récita final.