Neva, de Guillermo Calderón. Paulo de Moraes/Direção. Novembro/2022. Fotos/Mauro Kury. |
Foi a partir de uma súbita paixão, pós leituras da obra de Anton Tchekhov, que o chileno Guillermo
Calderón idealizou Neva, a peça que
o tornou conhecido mundialmente como um dos nomes referenciais da dramaturgia
latino-americana. Através de enfoque do ensaio
interno de três atores em torno de O
Jardim das Cerejeiras, na São Petersburgo de 1905, enquanto lá fora acontece
o “Domingo Sangrento”, represália cruel por ordem czarista a um pacífico protesto
operário, criando raízes para a Revolução de 1917.
Querendo, assim, refletir também sobre o horror chileno anos 70, promovido por Augusto Pinochet, numa
transmutação temática - estética/política - que une o universo teatral de Tchekhov
ao ideário dramatúrgico/filosófico das "constelações"
de Walter Benjamin. Curiosamente num momento em que outra peça (Pedro I) da temporada carioca recorre,
em processo subliminar, ao pensador germânico com sua transcendente
reconfiguração teórica do passado no presente.
Comemorando os 35 anos da Armazém Companhia de Teatro, uma das mais resistentes e importantes do País, desde sua fundação paranaense (1987) aos fundamentais anos cariocas, sob reconhecido e sólido comando de Paulo de Moraes, reunindo atores de varias gerações. Como as exponenciais presenças de Patrícia Selonk, Isabel Pacheco e Felipe Bustamante que protagonizam esta sua mais recente montagem – Neva, de Guillermo Calderón, sob mais uma das acuradas traduções de Celso Curi.
Neva / Armazém Companhia de Teatro, Com Patrícia Selonk, Isabel Pacheco, Felipe Bustamante. Novembro/22. Fotos/Mauro Kury. |
Na minimalista instalação cênica de Paulo de Moraes não fica
caracterizada nenhuma ambiência especifica de época. Ali, uma cadeira e um sofá sobre antiga tapeçaria revelam um sutil referencial de ancestralidade, enquanto a indumentária (Carol Lobato), em seu
traçado neutro e atemporal, tem um sotaque que remete mais a trajes cotidianos.
Onde o uso de microfones de pedestal e a guitarra elétrica manipulada pelo ator
Felipe Bustamante priorizam um retrato de tonalidades contemporâneas. Diferenciado apenas em simbólica centralização na maquete do Teatro de Arte
de Moscou (Carla Berri) por efeitos luminares (Maneco Quinderé), prevalentemente
vazados com ocasionais envolvências focais.
O que se torna mais perceptível pelas intervenções sonoras (Ricco
Vianna) sob riffs roqueiros de
guitarra, entremeadas por espontâneas cantorias e uma corporeidade marcada assumidamente, ora por instantes melodramáticos, ora por
risos irônicos, em meio a gestos mais impulsivos, na dúplice concepção de Ana Lima/Patrícia
Selonk.
Isolados numa sala de ensaios defronte ao rio Neva, os três
atores aguardam a chegada do resto do elenco o que não acontece nunca, sob
insinuações de que poderia, quem sabe, ter acontecido algo de pior com eles em
dia de tamanha violência. Julgando-se superior na sua egocêntrica personalidade atoral,
Aleko (Felipe Bustamante) faz questão
de expor sua indiferença impositiva dedilhando a guitarra.
Enquanto Olga Knipper
(Patrícia Selonk) insiste na descrição de obsessiva dor com a perda recente do marido
Tchekhov, levando-a à insegurança na
performance de seu monólogo, a outra atriz Masha
(Isabel Pacheco) sentindo-se humilhada, por não conseguir se exibir com a
mesma maturidade, vai desvendando sua engajada consciência política,
ao questionar o vazio de comprometimento dos colegas de elenco com a gravidade do que se passa nas ruas.
Prevalecendo, entre tantos embates de egos e paixões, a tese stanislavskiana da verdade cênica em que "cada momento deve estar saturado de crença
na veracidade da emoção sentida e na ação exercida pelo ator". O que Neva transcende
por intermédio de uma postura de metateatro,
além do tempo/espaço no compasso de 1905, para explicar metaforicamente os absurdos políticos da história
ditatorial chilena.
E é através do incisivo monólogo final, ao se completar a
sequencial e irreprimível tessitura direcional (Paulo de Moraes) e a funcionalidade performática
de um luminoso elenco (Patrícia Selonk/Isabel Pacheco/Felipe Bustamante) que
o dramaturgo Guillermo. Calderón coloca em cheque
a própria função do teatro:
“Quantas vezes pode-se
dizer te amo e não te amo? Cansei. Quantas vezes se pode chorar e clamar por verdade em
um palco? E ser mais realista e encontrar novos símbolos? Basta...Querem fazer algo que seja de verdade? Saiam às ruas e vejam a
força simples da violência política”...
Wagner Corrêa de Araújo
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