MOMIX FOREVER: ATLÉTICO ILUSIONISMO COREOGRÁFICO


FOTOS/MAX PUCCIARIELLO

Há trinta e cinco anos o americano   Moses Pendleton , entre não poucas polêmicas, tem se apresentado com sua cia Momix sem se preocupar se a rotulam ou não  como autêntica criação coreográfica ou de dança contemporânea. Afinal, ela se tornou conhecida exatamente pela espontaneidade na sua  junção de elementos coreográficos, acrobáticos e, especialmente, ilusionistas: Mo(de Moses) e mix(mistura de linguagens).

Com seu caráter lúdico e bem humorado as obras de seu já vasto repertório são apresentadas por um tipo de profissional multimídia  que é, ao mesmo tempo, atleta e bailarino , como também mentor técnico/artístico de fantasias visuais, num oficio cênico tridimensional sem restrição de gênero, para todos os gostos e idades.

Na sua turnê comemorativa, iniciada em 2016, são apresentados quinze trabalhos de épocas e fases diversas, sendo quatro deles inéditos e pensados especialmente com uma proposta de aniversário.

Com a exacerbação de seus efeitos visuais, sua iluminação psicodélica, suas recorrências aos contrastes claro/escuro entre sombras e seus figurinos aquarelados, parte considerável do gestual e da fisicalidade dos bailarinos/atletas é eclipsada por estes elementos. E, depois de habituais apresentações nos palcos brasileiros, este repertório tradicional tem uma prevalente nuance de dejá vu e até de um certo fastio.


Para quem vem acompanhando esta trajetória poucas são as criações que ainda são capazes de surpreender , inclusive pelo teor opcional  por um programa de episódicas coreografias que acabam funcionando sequencialmente mais  num clima de um grande vídeo clip.

Onde prevalecem as abordagens tematizadas pela natureza que o próprio Moses sempre considerou sua inspiração favorita. Como é o caso de extratos dos espetáculos Opus Cactus e Botanica  mas que ainda impressionam por seu aporte artístico de atualidade  em torno da questão ecológica.

O primeiro número que realmente chega a entusiasmar o público é a coreografia inédita Daddy Long Leg com as sonoridades latinas  do Gotan Project , sua indumentária meio cowboy e o confronto de uma perna mais longa que a outra, numa enérgica e bem humorada performance masculina a três.

Entre as outras novidades, Light Reigns que apresenta um onírico desenho em luzes led de dançarinos/árvores natalinas mas com uma muita restrita  movimentação coreográfica. Ou Paper Trails sugestionando placas de papel na sua fusão de projeções de imagens de exuberante grafismo, tanto sobre a corporeidade dos bailarinos como na ambientação cênica, resultando numa extasiante instalação plástica.

Entre criações antigas , o destaque fica com o devaneio poético de um habilidoso solo feminino com seu referencial mitológico de reflexo especular dos Echoes of Narcisus e a mais enérgica e acrobática performance masculina da noite no Table Talk .

E, finalmente,  com If You Need Somebody, a obra que melhor aproxima o Momix da pura sinergia do estilo contemporâneo coreográfico . Transubstanciando, enfim, palco/plateia, via pulsão bachiana (Concerto de Brandeburgo n.2), em cumplicidade gestual  e  contagiante alegria.

                                          Wagner Corrêa de Araújo


MOMIX  FOREVER em cartaz no Teatro Municipal/RJ, de terça a sexta,às 20h30m; sábado,às 21h; domingo, às 16h.90 minutos. Até 03 de setembro.

AS CRIADAS: SOB COMEDIDA PULSÃO SENSORIAL


FOTOS/RONALDO GUTIERREZ

A ordem social não se mantém senão ao preço de uma infernal maldição que aflige os seres, dentre os quais os mais vis, os mais nulos, estão mais próximos de mim (...) A sociedade, tal como vocês a constituem, eu a odeio. Eu sempre a odiei e vomitei”.

E nesta incisiva postura comportamental de Jean Genet é possível encontrar a causa para uma abordagem visceral do mal estar na desigualdade de classes; capaz de conduzir à catarse pela vingança, via pulsões sadomasoquistas e assassinas, na trama dramatúrgica de As Criadas.

Inspirada no verismo de um crime no meio rural francês, a peça retoma o fato através de duas serviçais que alimentam a fantasia criminal/erótica de matar sua patroa, com sórdidas mentalizações de hostilidade  à sua condição de poder e domínio sobre elas.

Assim, Clara (Clara Carvalho) e Solange (Mariana Muniz) aproveitam a ausência de Madame( Emilia Rey) para uma troca de papéis na qual violam sua privacidade e seu intimismo, no abusado travestir-se com suas roupas e joias. Num jogo cruel de identidades e personificações, entre insultos , sadismo e  submissão ,capaz de conduzir um teatro dentro do teatro, sujeito a “sangue, esperma e lágrimas”, num conceitual  genetiano.

Estreada há setenta anos, mesmo com  mudanças no status da pirâmide social burguesia/servidão, ainda assim é capaz de incômoda provocação , desde que a progressão dramática de sua encenação faça prevalecer sua nuance cáustica de perversão e ameaça à ordem estabelecida.

Na densidade de  sua arquitetura textual, com absoluta prevalência  de sua extensa e carregada verbalização , é preciso sempre saber como bem materializar  sua irada mensagem subliminar em impactante teatralidade. Ora através de suas referências  aos objetos que propiciam a fisicalidade de um conflito vergonhoso de impotência diante da luxúria e de abandono da ética em favor do amoralismo.

E mais ainda da potencialização da crueldade e da maledicência elevada ao ápice da vilania e  da passionalidade venal , para o  atirar-se, sem eira e nem beira,  neste obscuro e violento round psicofísico de violência e marginalidade.

Constatado, ainda, o sempre artesanal cuidado da direção( Eduardo Tolentino) na preservação da palavra   autoral, uma habitualidade meritória do Grupo Tapa, mas sem que se estendesse, desta vez,  com maior desafio e denúncia à generalidade da concepção cenográfica de As Criadas.

Embora o elenco feminino se entregue com coragem e desprendimento à linha interpretativa direcionada sente-se, aqui, falta de um corte mais laminar para o dimensionamento psicológico e sensorial do contraponto crítico entre os que mandam e os que devem obedecer.

Clara Carvalho(Clara) desnuda-se mais na erotizada ronda   de sarcasmo e sordidez havendo maior recato  de Mariana Muniz (Solange)na sua resposta adesiva aos embates de um ritual de representações sado-masoquistas.

Enquanto o personagem de Emília Rey, Madame como a opressora ou a desejada vítima, é quase desmistificado no simulacro de sua postura mais compassiva que autoritária, mais conciliadora que mandatária.

O que se reflete também na ambiência cenográfica(Marcela Donato) discricionária e mais decadentista , no seu meio caminho realista/simbólico pontuado pelo desenho da luz(Nélson Ferreira),e que acaba pouco contribuindo para exacerbar a estetização metafórica do vício luxurioso.

Um processo tornado mais eficaz só mesmo quando vai  além, de quaisquer limites e preconceitos, na enfatização dramática de seu discurso de opressão e rebeldia. Para incitar, assim, o vômito de Genet às desigualdades, ainda que pela inveja, e a criminalidade, preconizada pela repulsa, através dos não aquinhoados pela fortuna.


                                      Wagner Corrêa de Araújo


AS CRIADAS está em cartaz no Teatro Maison de France, Centro/RJ, sexta e sábado, às 19h;domingo, às 18. 90 minutos. Até 3 de setembro.

GRUPO CORPO -"GIRA": CORPOREIDADES ESPIRITUAIS


FOTOS/JOSÉ LUIZ PEDERNEIRAS

A dança como um “indicador de transcendência” ou como revelação da “presença do espírito na carne”, segundo os referenciais propugnados pelo pensar filosófico de Roger Garaudy.

Uma imanente contextualização para o mais novo espetáculo do Grupo Corpo que, sob a titulação generalizada de Gira, traz aos palcos a reunião de duas simbióticas criações coreográficas de Rodrigo Pederneiras.

A retomada de Bach, com a releitura musical de alguns de seus icônicos temas por Marco Antônio Guimarães, e Gira, composições da banda paulista Metá Metá (Juçara Marçal/vocais, Thiago França/sax, Kiko Dinucci/guitarra) a partir de suas inventivas experimentações em torno das sonoridades dos “terreiros”.

Revestidas nas gestualidades sacro/profanas, celestiais/terrenas, espiritualizadas e sensoriais dos 21 bailarinos do Corpo pelas artesanais tessituras coreográficas de Rodrigo Pederneiras. Em performance impar , num bravo instante de remissão diante da grave crise que vem cerceando a livre expansão da dança contemporânea brasileira.

Compensador em seu pulso  estético de valoração pela convergência de duas linguagens autóctones que marcaram presencialmente  nosso criacionismo cultural , o barroquismo mineiro e a ritualística dos terreiros. Irradiando-se em sotaque especular na fisicalidade espiritual de duas obras – Bach e Gira - em potencial contraponto artístico/crítico.

Para a conectividade  estético/emotivo da proposta junto ao público a primeira parte com Bach, original de 1996, contextualiza o barroco no mix sonoro/gestual de reinvenção do repertório bachiano ,na contemporaneidade dos acordes do Uatki e na sua transcrição em energizante euforia de movimentos. Desde a metafórica simbolização de tubos de órgão à coesão e luminosidade do barroquismo dourado nos figurinos de Freusa Zechmeister.


Após o êxtase dos acordes, das cores e dos corpos na poética imaginária da suspensão divinal pairando espacialmente  sobre o solo/palco, o dialetal encontro terreno do Corpo acionado na incorporação das  entidades presididas por Exu, o Orixá mór, via Gira.

Transubstanciado no comando, aqui, do cerimonial de encantamento religioso/popular, com sutil  visagismo sanguíneo entre o pescoço e a carne de peitorais desnudados. “Metá Metá”, macho e fêmea unificados nos circuitos umbandistas do Gira, em território candomblé deste metafórico espaço cênico de descendimento dos orixás.

Alternando saídas e entradas de bailarinos,confinados  sob véus nas coxias/santuários, na funcional envolvência de uma instalação ambiental (Paulo Pederneiras), ora entre blackouts e  pontos luminares ora  entre sombras (Paulo e Gabriel Pederneiras) modulando torsos despidos sobre rústicas saias incolores (outra vez, Freusa).

Neste reencontro do gestual/signo na trajetória coreográfica do Corpo, de volta os remelexos e requebros de quadril, acrescidos, agora, dos agachamentos na desconstrução/descontração da verticalidade postural em tensas dobraduras/elipses/giros propícios ao ato de receber as “entidades”.

Fazendo de Gira, sem  artifícios virtuosísticos e sem concessões folcloristas, um carismático ritual coletivo de arte/vida , com tal apelo de sintonização palco-plateia que,  a qualquer   momento, o próximo incorporado pode ser você...

                                         Wagner Corrêa de Araújo


"GIRA" - GRUPO CORPO - está em cartaz no Theatro Municipal/RJ/Centro, quinta e sexta, às 20h.;sábado às 21h,domingo, às 17h. 90 minutos. Até 27 de agosto.

LUIS ANTONIO – GABRIELA: REFLEXIVA TRANSGRESSÃO


FOTOS BOB SOUZA/VICTOR IEMINI

Entre 2011 e 2013 o espetáculo paulista Luis Antonio-Gabriela teve episódicas apresentações nos palcos cariocas, respectivamente nas mostras do Tempo Festival e do Palco Giratório. E , felizmente, está se cumprindo agora a  expectativa para uma temporada de maior folego que, espera-se, seja estendida além do Espaço Sesc/Copacabana.

Afinal já há seis anos em cartaz com inúmeras turnês, além da resposta pública, foram extensivos os aplausos críticos, mais as indicações e premiações notórias. Sem deixar de falar na sua oportuna e necessária abordagem temática sobre a problemática da aceitação da livre identidade sexual e da questão da diferença dos gêneros.

Despontando, ainda, como uma proposta cênica capaz de transcender sua incisiva potencialidade dramatúrgica em perceptível resultado estético. Presente tanto na sua inserção inovadora num mix  pulsionamento de teatro documentário com uma singular nuance do distanciamento e da fala épica  brechtiana , como na sua capacidade de comunicação/comoção de proposta transformadora/reflexiva.

Com seu tom confessional/autobiográfico a peça faz um relato da polêmica trajetória existencial do irmão do ator e dramaturgo Nelson Baskerville que, nesta sua  textualidade autoral, conta o que  representaram as ácidas passagens vivenciais que o afastaram para sempre de Luís Antônio. Desde o impacto do abuso sexual sofrido na infância por parte do próprio, às violências preconceituosas tanto do radical conservadorismo militar do pai, como dos ataques,em tempo de bullying , na ambiência escolar por ter um irmão “diferente”.

Sequenciado o estigma na permanente ausência pela transmutação Luis Antonio>Gabriela, no isolacionismo do afastamento até a sua morte decadentista em Bilbao, depois de estelar carreira europeia na transsexualidade, Nélson ,enfim, num processo catártico, assume a remissão de sua culpa. 

E é, assim,que a postura de reconciliação com a afetividade fraternal, perdida na repressividade conduzida  ao desprezo e à vergonha, acontece no resgate memorialístico mistificado em compasso de um mágico teatro ritualístico.

Na criação coletiva da Cia Mungunzá, a partir da reconstituição por documentos, cartas, depoimentos, fotos, num dimensionamento psicológico/dramático entre fisicalidade sexual, espiritualidade , amoralismo, coragem, denúncia e verdade.

Com lúdica e impactante arquitetura cenográfica(Marcos Felipe/Nélson Baskerville), almodovariana e tropicalista, desde a indumentária(Camila Murano) ao score sonoro(Gustavo Sarzi) ao vivo, sob luzes (Marcos Felipe/Baskerville)de modulações lisérgicas.

Onde a organicidade da performance espontânea e  libertária de um elenco de seis atores(Day Porto, Lucas Beda, Marcos Felipe, Sandra Modesto, Veronica Gentilin, Virginia Iglesias) mais a participação especial de Virginia Cavendish, surpreende , entre a poesia e o pânico. E acaba conquistando a cumplicidade de cada espectador, espelhando em seu olhar a aprovação ou rejeição à diversidade da prevalência genética dos outros.

Sem preocupações de limites de choque social/político, tanto  na reiteração de apelos melodramáticos e estereótipos da cultura LGBT, como no presencial ostensivo de elementos plásticos anticonvencionais.

Desde que, tanto faz, entre o belo e o feio, a crueldade e a compaixão, o recado seja dado. Não importa se como uma sensorial e emotiva lição ou como um  soco no estomago e uma porrada na consciência.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


LUIS ANTÔNIO-GABRIELA está em cartaz no Sesc/Copacabana,quinta a sábado, às 21h;domingo, às 20h. 90 minutos. Até 27 de agosto.


AGOSTO: ROUNDS DE UMA SAGA FAMILIAR


FOTOS/SILVANA MARQUES

Na ambiência familiar da peça Agosto seus integrantes se comportam como nos rounds e nas arenas de lutas ou como numa fortaleza sitiada,  onde os que estão fora acabam entrando e os que estão dentro querem sair de qualquer jeito.

Refletindo,inclusive, situações veristas do memorial  biográfico de seu autor, o dramaturgo e ator Tracy Letts. Como o suicídio de seu avô materno inspirando a figura do patriarca Beverly, enquanto a personificação de Violet, dependente de drogas e ansiolíticos para enfrentar um câncer,espelha o que ocorreu também com sua avó, na pós terminalidade de seu marido.

Construída numa linha narrativa em que a progressão dramática abrange três gerações de um mesmo núcleo composto de pais, filhas, maridos, tia, neta e um  primo que traz em si o segredo de um estigma, além de um pretenso noivo e uma criada de ascendência indígena.

Com um referencial de saga familial e domiciliar que lembra parte do repertório dramatúrgico norte-americano de autores como O’Neill, Tennessee Williams, Albee e Sam Sheppard. Este último tendo atuado no papel do avô na versão cinematográfica por John Wells, 2013, da peça e, aqui, exibida sob o título de Álbum de Família.

August:Osage County, no original de sua terminologia nativista(Osage),  que lhe auferiu o Pulitzer 2007 e inúmeros prêmios sequenciais, poderia ser classificada de tragicomédia ou , como a crítica americana denominou com o assentimento de Letts , de “comédia sombria”.

Onde o dimensionamento psicológico de seus personagens acontece a partir de uma ácida  trajetória de lembranças e  pesadelos capazes de gerar conflitos agressivos, atitudes descabidas e comportamentos amorais. Vivenciados todos num acerto de contas entre parentes e que se torna, outrossim, um contraponto disfuncional.

Desde as provocações e a frieza ameaçadora assumidas simultaneamente pela matriarca Violet (Guida Vianna) e por sua filha Barbara(Leticia Isnard), em incisiva radicalidade de uma convicta e carismática representação.

Paralela a uma irrepreensível entrega dos outros nove integrantes do elenco à performance deste  somatório de caracteres enunciadores da psiquê de uma família, metaforizada em encontro num inferno de quatro paredes.

Tal como a dúplice intervenção apaixonada de Isaac Bernat, inicializada como Beverly e, a seguir,como Bill, o consorte de Barbara.Ou da força interpretativa das outras duas irmãs, a silenciosa Ivy (Marianna MacNiven) e a complexada Karen( Cláudia Ventura). 

Completando-se o afetivo naipe feminino , com as insolências da tia Mattie(Eliane Costa),os impulsos adolescentes de Jean(Lorena Comparato) e as posturas compassivas da criada Johnna (Julia Schaeffer). Além , ainda, do presencial de Guilherme Siman no intimidado Charlie ,  do mau caráter Steve, via Alexandre Dantas, e do conciliador Charlie, por Cláudio Mendes.

A concepção cenográfica( Carlos Alberto Nunes), funcionalmente, concentrou as multiplicidades ambientais  de uma residência quase senhorial,  alternando situações intimistas e grupais com a delimitação por tapetes e cadeiras . Configurando-se a identificação dos 12 papeis pelo acerto dos figurinos( Patrícia Muniz) e pela diferencial climatização do desenho de luz( Renato Machado).

André Paes Leme, em sua gramática cênica, bem soube como tornar tensa e angustiosa, poética e humana , esta dramatização de um potencial conflito de vontades. E ao desnudar, visceralmente,  personagens sitiadas que se defendem em grupo e se atacam em particular tornou, enfim, Agosto uma indisfarçável surpresa da temporada.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


AGOSTO está em cartaz no Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h.120 minutos. Até 17 de setembro.

O GAROTO DA ÚLTIMA FILA: ESCRITURAS INVASIVAS


FOTOS/RICARDO BRAJTERMAN

Quando Albert Camus recebeu o Premio Nobel lembrou-se de agradecer ao seu primeiro professor de literatura,  Louis Germain,  as lições aprendidas na infância  como o estímulo inicializador para sua futura consagração.

Na peça do espanhol Juan MayorgaO Garoto da Última Fila – há uma curiosa ou talvez proposital lembrança disto ao colocar o revelador talento do aluno (Claudio) diante de seu mestre escolar (Germano), este sublimando na transmissão das  suas lições de literatura a frustração como escritor.

Incitação realizada com tal impulso que o jovem, numa redação sobre como foi o final de semana, ultrapassa  os limites éticos de sua imaginação como olheiro literário do que se passa na interinidade familiar de seu colega de classe Rafael. Ambiência doméstica na mediocridade do cotidiano de seus pais devassada, sem eira nem beira, na sua ousada investida de despretensioso trabalho escolar redacional.

Mas não seria exatamente este o segredo mágico de toda criação do imaginário - sair de nossa interiorização para ver e questionar o que está diante de nós? Pois é  esta visceralidade na postura comportamental que direciona estes mecanismos inventivos pois, afinal, “ a  arte  é feita para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza”, no acertado pensar de Georges Braque.

E é   o  próprio Mayorga que reitera  um reflexivo conceitual para esta sua dramaturgia autoral  que “é principalmente sobre a importância da imaginação em nossas vidas, principalmente sobre os outros como vivem e quem são”. Retomada, aqui,  na idealização apurada de uma presencial teatralidade  por Victor Garcia Peralta, numa montagem que se expande por sua densidade em cena e pela cumplicidade do público.

Ao ser impactado pela força expressiva da redação de Cláudio(Gabriel Lara), o professor Germano(Isio Ghelmann) é confrontado, também, por sua mulher Joana(Luciana Braga) nas suas atitudes professorais, enquanto ela própria vive o contraponto de sua crise estética como galerista de arte contemporânea.

No outro módulo cênico, marcados pela absoluta falta de perspectivas aparecem os progenitores(Celso Taddei/Lorena Silva) de Rafa(Vicente Conde), o coleguinha de Cláudio , com o refúgio paterno na prática esportiva e o  matriarcal no tédio dos ofícios cotidianos.

A sóbria concepção cenográfica(Miguel Pinto Guimarães) tem perceptível funcionalidade identificando, por uma mesma retangular mesa e seis cadeiras, a alterativa visibilidade escolar e residencial do sequencial narrativo. Desmobilizando, em sua focal  centralização, diferenciais expansões de um desenho de luzes vazadas(Maneco Quinderé) que destacam os propícios figurinos de Carol Lobato.

Na representatividade do elenco, de convincente organicidade, há maior ou menor apelo da envolvência palco/plateia, segundo a relevância impositiva dos papéis para a progressão dramática. Onde prevalecem mais chances para Luciana Braga marcar sua bem delineada performance, frente ao componente de menor carisma no desenvolvimento da ação do segundo núcleo(Lorena da Silva/Celso Taddei/Vicente Conde).

Com sua habitual elegância emotiva  e convictas máscara  e voz, Isio Ghelman confere ao seu personagem a dimensão psicológica necessária ao que se exige e além. Enquanto Gabriel Lara, na adequação física , liberdade instintiva e irreverencia juvenil, surpreende por sua predestinação, certamente,  a uma carreira estelar .

                                          Wagner Corrêa de Araújo


O GAROTO DA ÚLTIMA FILA está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping da Gávea/RJ, quarta e quinta, às 21h. 90 minutos. Até 31 de agosto

LA TRAGÉDIE DE CARMEN: ENTRE BIZET OU PETER BROOK


FOTOS/JÚLIA RÓNAI

Desde sua estreia em novembro de 1981, numa concepção pensada inicialmente para a rusticidade do espaço arena do Théâtre des Bouffes du Nord -  inabitual para a padronização da ópera original, La Tragédie de Carmen vem sendo regularmente reapresentada , com pequenas variações da montagem de Peter Brook.

Marcada por seu minimalismo cênico que se estende inclusive à parte musical, nela há uma intenção de fazer prevalecer os elementos dramáticos do romance de Prosper Merimée, potencializados numa retomada cerimonial dos arquétipos da tragédia grega.

Concentrando-se em quatro personagens ( Carmen, Don José, Micaela e Escamillo) , eliminando as cenas corais , as intervenções de outros personagens do libreto  de Meilhac-Halevy. E reduzindo sensivelmente  a orquestra para uma formação de câmera, na supressão de  partes e   alteridade da ordem  partitural , para um resultado final de cerca de hora e meia.

Nesta reconstituição, com olhar armado na contemporaneidade, Brook teve ainda a colaboração roteirista de Jean-Claude Carrière e das adaptações musicais de Marius Constant. Acentuada na progressão narrativa de um clímax obsessivo, entre pulsões de sexualidade e violência.E identificando seus personagens por um comportamental egocêntrico , amoral e antiético.

Nesta primeira vez, em que La Tragédie de Carmen  é reinventada para o palco do Municipal carioca, alguns de seus paradigmas estéticos não são fielmente recuperados como no caso da  ambiência hispânica da indumentária . Que na opção de Brook acena por uma atemporalidade plástica primitivista  priorizando, assim,  uma ritualística teatralidade de paixões selvagens.

Mas que o artesanal comando diretorial dúplice  (Julianna Santos/Menelick de Carvalho) transmuta , na ausência proposital de uma arquitetura visual operística, em esparsos elementos cênicos. Transubstanciados nas projeções visuais com laminares simbologias metafórico/conceituais, sob um incisivo recorte de efeitos luminares(Paulo Cesar Medeiros).

Se as incidências coreográficas(Marcelo Misailidis)escapam à habitualidade das performances secas e diretas deste espetáculo, aqui elas acabam sendo bastante funcionais no preenchimento do vazio de um amplo espaço cênico. Destacando uma boa atuação de integrantes do Balé do TM e Escola Maria Olenewa, com destaque no elegante pas de deux , de sotaque neoclássico, dos primeiros bailarinos  Claudia Mota e Filipe Moreira.

A pequena orquestra, com músicos da OSTM,  habilmente conduzida, por Priscila Bomfim mostrou fluência e segurança na ininterrupta sequencia de temas clássicos e arranjos modernos. Por vezes soando um tom acima dos cantores, mas  de natural resultado , tanto nos solos instrumentais como nas sonoridades grupais, em representativa estreia feminina no podium operístico do Municipal.

Quanto ao quarteto protagonista, de talentos e revelações da nova lírica nacional, o desempenho foi  digno, tanto no perceptível amadurecimento destas vocações musicais como na entrega teatral aos personagens.

Na  bela tessitura de mezzo-soprano de Carolina Faria, tanto na espontaneidade sensual de sua fisicalidade como  no dimensionamento psicológico de seu papel titular. E que , num crescendo , venceu a timidez dos primeiros compassos da Habanera , defendendo ainda, com sensorial energia, sua Seguidilha.

Destacando-se , ainda no restrito elenco, a soprano Flávia Fernandes, aqui mais Bizet e menos Brook na sua faceta angelical.  Em expressivo registro de tonalidades líricas na episódica aparição, seja no dueto de Micaela com Don José  (Parle-moi de Ma Mère) ou na romança “Je dis que rien ne m’epouvante”.

E , também, no  jogo cênico e na generosa coloração melódica do tenor Eric Herrero(Don José), especialmente na ária “La fleur que tu m’avais jetée”. Completando-se o naipe masculino com uma efusiva Canção do Toureador, na ressonância da voz baritonal e na impositiva figuração  de Leonardo Neiva (Escamillo).

Mesmo com o recurso enunciativo e quase óbvio da tipicidade dos figurinos e das referencias coreográficas do destino, La Tragédie de Carmen é um espetáculo que, no seu contraponto crítico e na sua concisão, os tradicionalistas da ópera não digerem com facilidade.

Mas representa , ao mesmo tempo, em sua livre fruição criadora ,  um refresco nas pompas e circunstancias da grandiloquência operística.E,certamente, na sua frugalidade estética, insufla,assim, maior intimismo e melhor decifração do enigma Carmen, entre Merimée, Bizet ou Brook.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


LA TRAGÉDIE DE CARMEN está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, em horários diversos, até o dia 19 de agosto. Com duração, sem intervalo, de 90 minutos.

CRIMES DELICADOS: COMÉDIA CRUEL DE COSTUMES


FOTOS/ROGÉRIO BELÓRIO

Em anos obscuros da década de setenta, o dramaturgo mineiro José Antônio de Souza sabia, apesar daqueles pesares, clarear com sua irônica inteligência e seu negro humor, abrindo janelas nos sombrios porões da ditadura militar.

Conseguia, assim, com laminar  contraponto crítico, denunciar as inquisitoriais feridas tornando risíveis, com nuances de absurdidade e surrealismo, os estratagemas de violação dos direitos e da dignidade humana.

Seus personagens, aureolados em compasso de sagaz fantasia e contundente delírio poético, revelavam uma potencial pulsão psicológica, no disfarce intencional do que realmente queriam simbolizar de um tempo de pesadelos.

E neste imaginário de suposições  ,  do não esclarecido ao interrogativo, distinguiam-se todos como recatadas personificações de uma classe média envolvida em tramas grotescas. Onde, mesmo sem pistas de um significado político direto,  desnudados  em seu conceitual metafórico de seca precisão tinham sempre algo de significante a dizer.

Como a ambiguidade paranoica da relação afetiva de uma mãe e uma filha, em tenso clima de agressividade e mal entendidos no convívio doméstico. Desestabilizando-se mais ainda no entremeio  da estranha chegada de pacotes misteriosos, de conteúdo inexplicável e questionador, como partes de um manequim/corpo , na peça Oh! Carol.

Ou nos impactantes subterfúgios e nas falsas aparências  de calmaria de um casal de pequena burguesia Hugo(Well Aguiar) e Lila(André Junqueira) se aprimorando em hábitos assassinos  na trama dramatúrgica de Crimes Delicados

Inicializada na eliminação cruel de seus animais domésticos como o peixe do aquário, o cão  e o gato, ao qual é seguida do propósito de vitimar, com o inusitado resultado do "eterno retorno",  ainda sua empregada Efigênia (Bernardo Schlegel).

E, nesta irreverente experimentação criminal de "banalização do mal", ampliando a artimanha diabólica para a inclusão no rol sanguinário,  até dos ascendentes em linha direta do marido (Well Aguiar) e de sua consorte (André Junqueira).

Aqui, com uma concepção cênica e diretorial de Marcus Alvisi calcada na atemporalidade, sem se ater a quaisquer referenciais de uma triste era política(o texto original é de 1973), o que poderia talvez soar datado e anacrônico. Como é contextualizado, subliminarmente, o desaparecimento corporal das vítimas , com o justiçamento às escuras pelos chamados esquadrões da morte e pelos milicianos do regime militar.

Ressaltando, por outro lado, o ponto de vista do presencial da violência como um substitutivo dos  valores sociais mas, mesmo assim, com tratamento aproximativo de um sotaque superficial e descompromissado na potencialização da mera comicidade. Sem se aprofundar na tragicidade introspectiva do confronto critico/reflexivo da extensão deste mal à contemporaneidade. O único aspecto que,   com   maior verdade e veemência , justificaria hoje a retomada de Crimes Delicados .

Onde, ainda que diante dos riscos desta quase desgastante  abordagem  do espetáculo, apresenta bons resultados como realização técnico/artística, de alcance tanto na minimalista cenografia(Gilvan Nunes) e figurinos(Talita Portela),  como nos funcionais desenho da luz(Carlos Lafert) , da trilha musical(M. Alvisi/Tauã de Lorena) e da direção gestual(Luciana Bicalho).

E no convicto  desempenho dos atores fazendo prevalecer a representação do feminino pelo masculino em André Junqueira e Bernardo Schlegel , além da  perceptível entrega de Well Aguiar ao seu papel do homem  condutor de uma mordaz comédia de costumes que , outrossim, teve história e, ainda, pode dar seu recado de alerta.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


CRIMES DELICADOS , de volta ao cartaz , no Teatro Dulcina/Centro/RJ,de sexta a domingo, às 19h. Até 27 de agosto.

ENTONCES BAILEMOS: CIRÚRGICAS RONDAS AMOROSAS

FOTOS/DALTON VALÉRIO

Como se ecoasse os versos  de Johnny Cash na canção country Home of the Blues(“Just around the corner there’s heartache/Down the street that losers use”) – o dramaturgo argentino Martin Flores Cardenas estabelece, assim, um contraponto inicial para “Entonces Bailemos”- “Desde quando o amor só é o amor, se existe a dor ou a violência !”.

Afinal, as rondas do discurso amoroso não se guiam apenas pelo apego sensitivo mas arquitetam-se nas manipulações do desejo possessivo , entre a paixão e os desafetos, nos embates obsessivos do dimensionamento psicológico e das pulsões de violenta fisicalidade.

Quantos relatos integram o dia-a-dia das páginas policiais onde, em nome dos enganos de agressivo ciúme amoroso, enteados perdem suas vidas  , adolescentes enamoradas assassinam seus pais e genros tornam-se consortes de irmãs na consanguinidade de  suas vítimas.

Assumindo seu referencial na literatura norte-americana  (Carver,Bukowski,Sheppard,Kerouac)de relatos de solidão, entremeados pelos surtos de  melancolia,   pânico e agressividade, Cárdenas , com mordaz ironismo,  narra , aqui, conflituosas situações amorosas de pessoas comuns e personagens anônimos.

Identificando-as com maior ênfase , ao quebrar os limites palco/plateia, numa troca de papéis em que os próprios personagens se tornam espectadores de si mesmos.

E dividindo-se na unicidade orgânica de quatro atores(Elisa Pinheiro, Gustavo Falcão,  Leonardo Netto e Marina Vianna) e um músico  (Ricco Vianna) dublê de ator, com conceitual parecer intervencionista na progressão dramática,  além do ser   guitarrista country.

Retomando a cenografia original ( Alicia Leloutre), dois colchões superpostos e descobertos sob luzes brancas vazadas ( Matías Sendon) sugestionam uma câmera cirúrgica. Onde os alterativos pacientes “clínicos”, na recriação indumentária de Marcelo Olinto, seriam individualizados em dois casais cotidianamente vestidos e um cowboy com sua guitarra elétrica, na tipicidade masculinizante de seus trajes.

Numa gramática cênica propositalmente fragmentária, a preciosa direção autoral de Martín Flores Cárdenas prioriza , em crítica e sarcástica perceptividade , o desenrolar-se espontâneo e informal das narrativas. Ora em solilóquios introspectivos ora em dialetações dialogais, na eficácia de uma teatralização confessional de retorno direto e seco .

Em enérgica gestualidade (Manuel Atwell) a performance cativa o público especialmente pelas variações de nuances psicossomáticas , desde o mais corriqueiro estereótipo dos cruzamentos afetivos aos delírios da sexualidade, dos desaforos e desbocamentos  aos abusos da corporeidade.

Em que  o despojamento cênico concorre pela maior concentração na sintonia textual, musical e coreográfica destes atores/cowboys urbanos. Conduzidos por envolvências tonais  blueseiras e countries , num território afetivo de obliquidades e mal entendidos onde o risível e a a violentação não tem fronteiras definidas.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


ENTONCES BAILEMOS , em nova temporada, no Teatro Poeira/Botafogo, segunda e terça, às 21h. 60 minutos. Até 21 de fevereiro. Com a entrada do ator Alex Nader, substituindo Gustavo Falcão.

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