FOTOS/RONALDO GUTIERREZ |
“A ordem social não se mantém senão ao preço de uma infernal maldição que aflige os seres, dentre os quais os mais vis, os mais nulos, estão mais próximos de mim (...) A sociedade, tal como vocês a constituem, eu a odeio. Eu sempre a odiei e vomitei”.
E nesta incisiva postura comportamental de Jean Genet é
possível encontrar a causa para uma abordagem visceral do mal estar na
desigualdade de classes; capaz de conduzir à catarse pela vingança, via pulsões
sadomasoquistas e assassinas, na trama dramatúrgica de As Criadas.
Inspirada no verismo de um crime no meio rural francês, a
peça retoma o fato através de duas serviçais que alimentam a fantasia
criminal/erótica de matar sua patroa, com sórdidas mentalizações de
hostilidade à sua condição de poder e
domínio sobre elas.
Assim, Clara (Clara Carvalho) e Solange (Mariana Muniz)
aproveitam a ausência de Madame( Emilia Rey) para uma troca de papéis na qual
violam sua privacidade e seu intimismo, no abusado travestir-se com suas roupas
e joias. Num jogo cruel de identidades e personificações, entre insultos ,
sadismo e submissão ,capaz de conduzir
um teatro dentro do teatro, sujeito a “sangue, esperma e lágrimas”, num
conceitual genetiano.
Estreada há setenta anos, mesmo com mudanças no status da pirâmide social
burguesia/servidão, ainda assim é capaz de incômoda provocação , desde que a
progressão dramática de sua encenação faça prevalecer sua nuance cáustica de
perversão e ameaça à ordem estabelecida.
Na densidade de sua
arquitetura textual, com absoluta prevalência
de sua extensa e carregada verbalização , é preciso sempre saber como
bem materializar sua irada mensagem
subliminar em impactante teatralidade. Ora através de suas referências aos objetos que propiciam a fisicalidade de
um conflito vergonhoso de impotência diante da luxúria e de abandono da ética
em favor do amoralismo.
E mais ainda da potencialização da crueldade e da
maledicência elevada ao ápice da vilania e
da passionalidade venal , para o
atirar-se, sem eira e nem beira,
neste obscuro e violento round psicofísico de violência e marginalidade.
Constatado, ainda, o sempre artesanal cuidado da direção(
Eduardo Tolentino) na preservação da palavra
autoral, uma habitualidade meritória do Grupo Tapa, mas sem que se
estendesse, desta vez, com maior desafio
e denúncia à generalidade da concepção cenográfica de As Criadas.
Embora o elenco feminino se entregue com coragem e
desprendimento à linha interpretativa direcionada sente-se, aqui, falta de um
corte mais laminar para o dimensionamento psicológico e sensorial do
contraponto crítico entre os que mandam e os que devem obedecer.
Clara Carvalho(Clara) desnuda-se mais na erotizada
ronda de sarcasmo e sordidez havendo
maior recato de Mariana Muniz
(Solange)na sua resposta adesiva aos embates de um ritual de representações
sado-masoquistas.
Enquanto o personagem de Emília Rey, Madame como a opressora
ou a desejada vítima, é quase desmistificado no simulacro de sua postura mais
compassiva que autoritária, mais conciliadora que mandatária.
O que se reflete também na ambiência cenográfica(Marcela
Donato) discricionária e mais decadentista , no seu meio caminho
realista/simbólico pontuado pelo desenho da luz(Nélson Ferreira),e que acaba
pouco contribuindo para exacerbar a estetização metafórica do vício luxurioso.
Um processo tornado mais eficaz só mesmo quando vai além, de quaisquer limites e preconceitos, na
enfatização dramática de seu discurso de opressão e rebeldia. Para incitar,
assim, o vômito de Genet às desigualdades, ainda que pela inveja, e a
criminalidade, preconizada pela repulsa, através dos não aquinhoados pela
fortuna.
Wagner
Corrêa de Araújo
AS CRIADAS está em cartaz no Teatro Maison de France, Centro/RJ, sexta e sábado, às 19h;domingo, às 18. 90 minutos. Até 3 de setembro.
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