A trajetória deste jovem bailarino para os palcos internacionais
é como a de muitos outros, originários das periferias e comunidades, que diante das carências
sociais vêem na dança o resgate para um existir mais digno, longe dos atrativos
da marginalidade, sob o imperativo de sua realização como artistas e cidadãos.
Esta história de uma luta para dar sentido à sua vida teve
seu ponto de partida quando, com apenas oito anos, ao acompanhar uma prima que estudava balé numa
academia de Cabo Frio, ficava curioso à janela assistindo às aulas. Até que num belo dia, através do incentivo da professora Ophélia Corvello, aprendeu suas primeiras
lições ainda como um segredo familiar.
“E foi a minha mãe,
mesmo sem a menor noção do que era Dança Clássica, que acabou ficando do meu
lado”, diz
David. Foi uma fase difícil pelo
enfrentamento de uma certa indiferença de um pai desempregado, sem se ater
muito ao preconceito contra um menino bailarino e mais pela falta de qualquer
noção sobre o significado do universo artístico, pelo status de gente humilde e
longe desta realidade.
Impressionando com a dedicação e o bom jeito que demonstrava
para o métier, em pouco tempo estava
participando de seu primeiro concurso em Brasília levado, ali, por Regina
Corvello : “Com apenas três meses de balé conquistou sua primeira medalha,
surpreendendo a todos com segurança e presença de palco raras em alguém tão
jovem e inexperiente”. Seguindo-se a este a participação em outros eventos
coreográficos, culminando na sua escolha pelo Youth America Grand Prix de Nova York.
Impossibilitado por suas condições financeiras de fazer a
viagem, por intermédio de um vídeo enviado à maratona, acabou sendo convidado a
participar de um curso seletivo da Academia do Ballet Boshoi, o passaporte para sua ida definitiva para Moscou. Com
apenas 13 anos, sem falar uma palavra em inglês ou russo e, muito menos, sem
ler o alfabeto cirílico.
Até receber, cinco anos depois, de uma seleção russa presidida
pelo celebrado Yuri Grigorovich a indicação, por seu apuro técnico, para integrar o Corpo
de Baile do Bolshoi Ballet. “Passei a fazer parte, assim, de uma das mais importantes companhias clássicas do mundo. O que não me impede, também, um certo
desejo de experimentar os balés contemporâneos. Sem pretensão, neste momento, ao
oficio coreográfico, um dom muito lindo
mas para o qual ainda não fui abençoado”...
GISELLE/ FOTOS ARQUIVO - BOLSHOI THEATRE OF RUSSIA |
Na categoria de solista clássico David já se destacou como
protagonista em Giselle, Quebra Nozes, Don Quixote (“O espetáculo com que mais me identifiquei por seu apelo carismático,
especialmente por tê-lo estreado para a festa dos 80 anos de meu amado professor
Vladimir Nikonov”).
Mas pelas qualificações de David como primeiro solista, ele
tem participado de balés de linhagem característica psicológico-nacionalista russa
como Um Herói do Nosso Tempo, do coreógrafo
Yuri Poshkhov, a partir da obra original
do escritor e poeta Mikhail Lérmontov. Uma chance de amadurecer mais sua integração à mais autêntica cultura do país
em que atua como artista estrangeiro.
Sobre sua experiência no papel de Petchorin : “Ser escalado para protagonizar esta história
foi para mim uma grande honra e um aprendizado gigantesco não só pela importância
de um coreógrafo atual como pela chance de se identificar mais com a história
russa”.
Em 2018, numa de suas raras vindas ao Brasil, David dançou
pela primeira vez com o Ballet do
Theatro Municipal carioca, no Pas d’Hongrois (ao lado da solista
Juliana Valadão) e em Les Sylphides, junto à sua primeira bailarina
Claudia Mota (“David é um bailarino que,
com tão pouca idade, já possui um nível de maturidade que é o sonho de qualquer
partner”).
Opinião endossada pela então diretora artística do BTM, Cecília Kerche : “Ocupando hoje o posto de Primeiro Solista do
Teatro Bolshoi, está sabendo
trabalhar com humildade e perseverança para se superar e tornar-se um artista
da dança realmente preparado para assumir os desafios que uma carreira de
bailarino de alta performance exige”.
Ainda longe do período de término compulsório de um profissional do Bolshoi, David entrega-se convicto à
sua missão de dançar numa exaustiva jornada diária quase sem fim. E conclui - “A dança clássica evoluiu bem sintonizada
com o nosso tempo, nas suas exigências por um perfeccionismo físico-sensorial de
bailarinos longilíneos e cada vez com maior suporte de flexibilidade e de alongamento”.
Mas afinal não é este o auto retrato sem retoques e a marca singular do talento de Davi Motta Soares, capaz de viver um
herói de seu tempo como bailarino e (com
licença de Paulo Pontes), também, de apresentar-se como um brasileiro profissão esperança?...
Wagner Corrêa de Araújo