ST Tragédias. Ana Botafogo/Marcelo Misailidis/Concepção Cênica/Direcional. /Julho/2022. Foto/Wagner Brum. |
A Suíte Rock Para Loucos e Amantes, da Renato
Vieira Cia de Dança, é um manifesto gestual,
estético e reflexivo, que se apropria de clássicos do rock anos 70 e 80, sob o
sotaque introspectivo de acordes camerísticos, através de um quarteto de cordas e de solistas entregues a uma simultânea gestualidade musical. Em afetivo e político referencial a
tempos emblemáticos que marcaram uma geração com mais de meio século de
trajetória, direcionada ao paraíso (Stairway
to Heaven/Led Zeppelin), mandamento libertário de uma religião
artístico-existencial do não desistir nunca, na potencializada performance de cinco bailarinos.
Foi a Cia de Ballet
Dalal Achcar que, através de sua conceituada diretora titular, teve a boa e bela
ideia de confiar na habitual competência criativa de Alex Neoral – o mentor da Focus Cia de Dança – para idealizar Tal Vez, original concepção coreográfica
exclusiva para os seus 18 jovens bailarinos. Numa dramaturgia da fisicalidade
sincronizando movimentos rítmicos, antenados na contemporaneidade de uma
linguagem com luminoso aproveitamento da base clássica dos bailarinos e a envolvência de uma proposta conectando energia à nostálgica trilha de substrato latino.
A São Paulo Cia de Dança
( SPCD), em Cor do Arco Iris, fez
necessário projeto de exaltação memorial
ao centenário da Semana de Arte Moderna, através de inventiva incursão
coreográfica pela obra de alguns de seus grandes mentores. Desde seu legado
musical (Villa-Lobos, Mignone, Camargo Guarnieri) a expoentes de sua criação
pictórica, das pinturas de Di Cavalcanti à iconografia indumentária de Flávio
de Carvalho, na responsabilidade estética, entre outros, de coreógrafos do naipe de Antônio Gomes (Madrugada) e Henrique Rodovalho (Desassossegos).
Com Primavera aconteceu a volta presencial do Grupo Corpo, num alcance mais longe pós um interregno nos palcos. Enquanto as vigorosas danças terra-a-terra de Gira em processo ritualístico/religioso traziam subliminares traços da Sagração russa transportada ao Candomblé, a delicadeza expressiva do movimento nesta primavera dançante, em sua conotação de espontânea leveza espacial, sintetiza o resgate de um respirar fundo direcionado à esperança de que dias melhores hão de vir...
Macunaíma. Balé do TMRJ. Carlos Laerte/Coreografia. Setembro/2022.Foto/Conrado Krivochein. |
ST Tragédias assume o desafio de imprimir uma
dramaturgia da corporeidade transmutando o significado shakespeariano através
de um sensorial vocabulário do movimento e da gestualidade. O que a concepção
cênico/coreográfica de Marcelo Misailidis viabiliza, com raro apuro artesanal,
no seu empenho para traduzir este dimensionamento não verbal. Antecipada pela
fluidez romantizada de Romeu e Julieta, sequenciada ainda no mais ousado enfrentamento da adaptação de Otello para dez bailarinos,
representando a totalidade dos personagens de um intricado e extenso jogo
circular de teatralidade.
Titulado simbolicamente como Sacro, este espetáculo de
dança-teatro de Márcio Cunha, faz eco a um vínculo sagrado entre o corpo
e a natureza numa transcendência gravitacional com as energias cósmicas através
de sua representação performática. Na busca da empatia coreográfica
correspondente ao que o filósofo Merleau-Ponty chama de fenomenologia da
percepção capaz, assim, de possibilitar o "entrelace sinestésico" ou
troca sensorial entre o artista/bailarino, representado por significativos nomes geracionais, em comunhão carismática com o espectador.
Quanto a Olhos da Pele,
é uma proposta de teatro coreográfico inspirada no entremeio do legado
provocador de Hélio Oiticica e que Regina Miranda acompanha, atenta e criativamente questionadora, desde os anos setenta.
Em trabalho consistente, sensual e contemplativo, rigoroso
esteticamente e lúdico em sua fruição catártica, transgressivo ao propor
rupturas no conceitual mimético de um espetáculo coreográfico e no seu
direcionamento a uma obra aberta. Reunindo à volta de Regina Miranda, como intérprete, um afirmativo e convicto staff performático.
A temporada do Corpo de Baile de TMRJ começou com O Lago dos Cisnes, onde o senso plástico
da cenografia e dos figurinos voltados à tradição, procurou se sintonizar no processo coreográfico a partir
da criação original. Dentro de uma certa releitura técnica e com pequenas
alterações no enredo, não tanto significativas ou prejudiciais ao andamento da
pulsão estética de uma obra emblemática da história da dança. Mas onde o destaque maior ficou mesmo no protagonismo estelar de David Motta Soares.
No caso de Macunaíma, tributo do Balé do TMRJ aos 100 anos do
Modernismo, este se faz na concepção do coreógrafo convidado Carlos Laerte, numa demarcação estética do encontro das linguagens
do cinema e da dança. Através das inserções de imagens projecionais em proposta
de interatividade pictórica, na fusão presencial dos bailarinos com as paisagens cinéticas referenciais à floresta amazônica, sempre em surpreendente qualidade
de inovação ampliada pelo apuro de sua representação.
Se o Balé do TMRJ
ainda não logrou o alcance completo do ansiado perfeccionismo clássico de outros de seus
memoráveis momentos, felizmente parece estar caminhando, mesmo a passos lentos,
para isto, como comprova no acerto de sua recente remontagem para Don
Quixote. Mas para
que isto se processe com maior instantaneidade, repito aqui, é preciso urgentemente retornar
à diversidade de outras visões coreográficas mais a participação de solistas convidados,
como sempre ali aconteceu.
Voltando a ressaltar como isto é parte fundamental da proposta estético/coreográfico evolutiva de qualquer grande Cia, pois, só assim, tornam maiores sua pulsão e élan criativos. Ancoradas, afinal, no encontro de outros olhares e outras linguagens, direcionados sempre à busca investigativa de uma técnica transfigurada em arte...Veja-se uma exemplar adoção brasileira com resultado primoroso, através de diferenciais experimentos do clássico e especialmente do contemporâneo, no processo criador da São Paulo Cia de Dança.
Wagner
Corrêa de Araújo
Desassossego. São Paulo Cia de Dança. Henrique Rodovalho/Coreografia. Junho/2022. Foto/Charles Lima. |