DIGNIDADE : OS VENAIS CAMINHOS QUE SINALIZAM A ASCENÇÃO AO UNIVERSO POLÍTICO

Dignidade, de Ignasi Vidal. Daniel Dias da Silva/Direção. Dezembro/2022. Fotos/Rafael Blasi.


Além de seu reconhecimento como ator e diretor, Daniel Dias da Silva vem se notabilizando no ofício de tradutor com a revelação nos palcos brasileiros de nomes fundamentais da dramaturgia espanhola contemporânea como o catalão Josep Maria Miró, do qual ele já traduziu e publicou uma coletânea de suas peças.

E agora, também, com o descortino surpreendente de Ignasi Vidal, natural de Barcelona e integrante de uma mesma geração autoral. Desta vez, através de uma entre as mais de dez peças deste premiado ator e dramaturgo – Dignidade, estreada em 2014, com atuação do próprio  dramaturgo como um de seus dois personagens.

Além da tradução, Daniel Dias da Silva assume, aqui, a concepção cênica/diretorial contando no elenco com dois craques do teatro carioca e brasileiro, Claudio Gabriel e Thelmo Fernandes, em parceria com este último no ideário da montagem. Há que se ressaltar, ainda, a escolha da peça, com sua abordagem temática tão oportuna, depois de momentos tão incertos e arriscados de quase quebra do processo democrático e que nós todos vivenciamos de tão perto.

Afinal é, assim, o espúrio e sujo jogo das mazelas que sustentam o universo politico, não importando se esta narrativa originalmente tenha sua locação na Espanha mas sendo capaz de ultrapassar quaisquer limites espaciais e temporais. Ao colocar em questão o desafio entre a escolha pela postura ética e a prevalência viciosa da vantagem pessoal isto pode ser até equiparado à disputa de um lance de dados num tabuleiro de xadrez.


Dignidade. De Ignasi Vidal. Em cena, Thelmo Fernandes e Cláudio Gabriel. Dezembro/2022. Fotos/Rafael Blasi.

O que, a propósito da inventividade do projeto cenográfico (Natalia Lana), sugestiona a mobilidade presencial de peças como uma subliminar e metafórica citação do referido jogo, possibilitando a circularidade entre elas da dupla de atores, como se eles próprios as simbolizassem no confronto ao vivo dos dois lados da partida.

Destacando-se este paisagismo cênico como uma instalação de plasticidade imersiva sob os efeitos das sutis tonalidades luminares de Vilmar Olos. Preenchida ainda com a elegância mais formalista de trajes executivos (blazers, gravatas, camisas sociais) caracterizando o imaginário visual dos figurinos de Victor Prado.

Ao falar de política versus amizade, a peça usa este mote controverso para privilegiar o lugar icônico dos relacionamentos humanos, sejam aqueles que vem da resistência dos tempos juvenis ou aqueles continuados por razões profissionais, como a parceria nas disputas por cargos eletivos. Não deixando de questionar a prevalência de súbitos interesses personalistas que podem colocar em cheque tanto a dignidade quanto o  conceitual da amizade.

Fran (Thelmo Fernandes), o candidato a um cargo  presidencial, convoca um amigo próximo Alex (Cláudio Gabriel) para um encontro em horário pós expediente na sede de seu partido onde, no entremeio de doses de uísque, pretende acertar com ele o posicionamento na vice liderança. Neste vai e vem da conversa, os ânimos vão se exaltando com a devassa de bastidores poluídos que, por sua sórdida e interesseira ambição no entorno do projeto de ascensão politica, vão colocando os dois amigos em posições absolutamente opostas. 

Trazendo à superfície suspeitas de corrupção que provocam um estado simultâneo de mágoas e de decepção, numa derrubada ferina de qualquer princípio ético. Em narrativa dramatúrgica cada vez mais tensa e que contamina não só a amizade dos dois ansiosos personagens/aspirantes a cargos eleitoreiros, como perturba a lúdica acomodação da plateia obrigando-a a refletir.

Esta luta insana pelo poder alcança um absoluto e feroz estado de nervos através da veemência do papel de Alex (Claudio Gabriel) enquanto digladia com a convicta serenidade das certezas políticas de Fran (Thelmo Fernandes), ambos dando uma lição de maestria performática assumindo, com perceptível maturidade e em contínuos avanços dramáticos, todos os contornos de seus personagens.

Ampliando-se tudo na consistência cênica e na competência artesanal que Daniel Dias da Silva imprime a este duelo sensorial, ao transmutar o risco de perda da dignidade em irradiante performance psicofísica. Capaz de desentorpecer e tornar cúmplice o mais desatento dos espectadores para o necessário despertar de uma honrada  consciência politica; tudo, enfim, daquilo que o Brasil mais precisa nesta hora...


                                             Wagner Corrêa de Araújo

                 

Dignidade está em cartaz no Sesc/Arena/Copacabana, de quinta a domingo, às 20h. Até 18 de dezembro.

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