AURÉLIA THIERRÉE em MURMURS. Maio de 2021. Foto/ R. Haughton. |
Depois do espetáculo O
Oratório de Aurélia, em 2003, concebido especialmente para sua filha Aurélia Thierrée, Victoria Chaplin retorna com Murmurs (Murmures des Murs), original de 2013 com registro fílmico em 2021, à continuidade de uma linha estética que
privilegia o circo, a mímica, o drama e a dança.
Numa encenação que alterna, em sua fusão de linguagens artísticas, desde
as formas populares do ancestral “theatre
de la foire”aos efeitos ilusionistas da comédia muda. Influências que se
fazem presentes através do legado artístico dos ascendentes familiares de Aurélia Thierrée.
Nada mais nada menos que, do lado materno, Chaplin e Oona, esta por sua vez sendo filha do grande dramaturgo Eugene O’Neill.
Enquanto os pais de Aurélia, Victoria
Chaplin e Jean-Baptiste Thierrée,
criadores do Le Cirque Invisible, em
suas turnês, faziam com que ela participasse, desde os seus quatro anos, das
performances. Por coincidência, a partir da data exata em que morreu o avô Carlitos.
Incentivada por ambiência fértil de criação artística,
Aurélia acaba se dedicando ao mesmo oficio dos pais e avós, passando por experiências
no cinema (inclusive em filmes de Milos Forman) no teatro, na dança e,
finalmente, se destacando por suas habilidades circenses num contexto múltiplo e
transcendente de buscas investigativas.
Num palco coberto por caixas de papelão, sugerindo uma mudança residencial, Aurélia - a atriz/personagem - vai embrulhando objetos enquanto, por vezes, pela insistência de dois funcionários da empresa transportadora, assina relatórios. Ela acaba, enfim, se enrolando em tecidos e peças de plástico que, subitamente, se transformam num monstro ameaçador.
MURMURS. Concepção cenográfica/direcional - Victoria Chaplin. Maio 2021. Foto/R.Haughton.Na cenas seguintes, atravessa ou escala, sob efeitos de magia,
paredes de telas pintadas sugerindo prédios antigos abandonados, numa
arquitetura com referenciais das ruas de Veneza ou de praças de antigas aldeias
francesas. Com murais de três camadas e que
ela descortina revelando épocas que vão de mosaicos da Roma antiga a décors barroquizantes.
Enquanto é interrompida por estranhos personagens cinzentos,
sob faces cobertas por máscaras, cujas formas humanas vão se metamorfoseando em desconhecidos animais ou inusitados objetos. Que lembram marcas figurativas de
pinturas de Magritte, Rousseau, Daumier, incluídas citações surrealistas de Dali.
Como nos primitivos experimentos cinematográficos ilusionistas
de Méliès e Lumière, ambíguos materiais ora
sugestionam cadeiras e camas sem fundos, escadas sem degraus, espectros móveis
que de uma aparente solidez passam a meros fragmentos de roupas. Ou indo para um mar
com ondas provocadas por tecidos, povoado por seres marítimos que engolem os
que mergulham em suas águas agitadas por onírica mobilidade.
Mas há espaço também para lances amorosos quando a personagem
feminina de Aurélia é assediada pelos ansiosos desejos eróticos de um acrobata
circense (Magnus Jakobson). Sem deixar de lado o tenebroso espectro cinza que, depois de a embebedar, a obriga a um forçado ato sexual.
Ou quando acaba dançando um tango com um apaixonado dançarino
porto-riquenho (Jaime Martinez), com
direito a um sapateado sob o tampo de uma mesa, usando copos como sapatilhas, ou equilibrando-se solta, instantaneamente, no vazio do espaço.
“Devemos violar os estereótipos de nossa visão do mundo, os sentimentos convencionais, os esquemas de julgamento”. Palavras de Jerzy Grotowski a propósito de sua teoria do Teatro Pobre e que poderiam ser um referencial reflexivo para o circo imaginário e o teatro coreográfico de Victoria Chaplin na sensorial envolvência da performance de Aurelia Thierrée.
Despojado,
minimalista, com apenas seis atores, incluída a protagonista, sem fazer uso dos
recursos digitais ao assumir a simplicidade absoluta da sua proposta cênica, quase num tributo à tradição medieval do teatro das feiras.
Onde o que importa é a inserção lúdica na lógica exclusiva do
sonho, no delírio da fantasia, na envolvência da alucinação poética. E que, pelo
menos, nos faça abstrair ainda que por apenas 70 minutos, no entremeio de tantos dias de um medo/pânico, a tamanha incerteza quanto à própria sobrevivência da condição humana.
Wagner Corrêa de Araújo