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FERNANDA MONTENEGRO em Dona Doida. Dezembro de 1987. Foto/Divulgação. |
Nesta passagem 2020 da data natalícia de Fernanda Montenegro,
a eterna grande dama do teatro brasileiro, revisitando velhos guardados
redescobrimos um registro - destes que em algum momento marca nossas vidas,
seja como jornalista , seja como apaixonado pelo teatro. Com a coincidente lembrança de ter conhecido Adélia Prado na feliz domesticidade de um cafezinho à mineira em sua casa fazenda em Divinópolis, por intermédio do amigo e jovem poeta Osvaldo André de Mello, quando estava prestes a ser revelada a escritora através do que seria o seu primeiro livro - Bagagem - no despontar dos anos 70.
Já lá se vão mais de
três décadas (21/12/1987) quando fizemos esta entrevista exclusiva em nosso
período de correspondente cultural do então Diário
de Minas, das Gerais no Rio, cidade em que tínhamos
chegado há pouco, trocando as airosas montanhas pelos albores marítimos.
Para este que foi um
dos mais antigos periódicos da imprensa (de 1866, ainda em Vila Rica) aos
belohorizontinos anos 20, na inicialização de Drummond o poeta maior, que ali
exerceu a função de editor chefe, antes de sua vinda definitiva para o RJ.
O DM chegou ao fim em 1995, mas de seu inventário cultural ficaram
lembranças singulares como esta longa entrevista com a diva das divas brasileiras, já ali patrimônio absoluto da cultura nacional.
Mas cuja palavra
inspirada, três décadas depois, prevalece viva e atual pela lucidez e
sensibilidade das reflexões de arte e de vida desta mágica representante mor da
criação teatral de hoje e de sempre.
"Fernanda Montenegro, depois de uma trágica Fedra
e de viver os conflitos existenciais de Petra
von Kant, mostra, agora, o sentimento do absoluto no ritual do cotidiano em
Dona Doida : Um Interlúdio”. Com
base nos textos poéticos de Adélia Prado, este espetáculo, dirigido por Naum
Alves de Souza, transformou-se numa das mais gratificantes experiências do
teatro em dimensão nacional.
Tendo descoberto Adélia Prado numa entrevista na TVE, em
1985, desde então, Fernanda viu ali o poder intrínseco da linguagem teatral.
Identificando-se ainda com Adélia na busca de um caminho além do coloquial, no
mesmo naipe sensorial da vivência feminina e na audácia de sonhar, a atriz
assumiu, vestida com roupa de todo dia, um espetáculo de “simplicidade procurada”.
Numa concepção camerística, onde o gesto e o jogo da máscara
facial, a iluminação e a música criam climas etéreos a partir da realidade
palpável do dia-a-dia, Dona Doida reafirma a força da palavra
conquistada pelo poeta que só descreve o cotidiano depois de havê-lo percorrido
longamente, apropriando-se assim de suas riquezas.
Fernanda fala neste irretocável depoimento para o
DM, sobre a emoção da santidade e da loucura na obra de Adélia Prado, além de
revelar passagens memoráveis da rica trajetória de uma mãe/mulher/atriz que se
considera abençoada por Minas no período em que ali viveu.
“Como se deu esta passagem da tragédia clássica em “Fedra” para o
intimismo coloquial de “Dona Doida”?
Acho que foi uma coisa necessária para mim, que vinha de dois
textos muito fortes e violentos, tanto a Petra como a Fedra. Este último era
absolutamente novo em termos de mergulho. Nunca tinha tocado, com profundidade,
nestas entidades, nestes mitos, nesta coisa arcaica do ser humano e do teatro
também. Foi uma audácia jogar este mito num texto do século XVII, francês, com
toda a glória da racionalização e da sensibilidade refinadíssima de um poeta
como Racine. Acho que ter chegado a este mito, ter tentado alcançá-lo, foi uma
experiência muito conclusiva, na minha posição como atriz dentro do repertório
e dentro de uma escala de perfis femininos nos quais vinha trabalhando há anos.
Mas tudo isto veio em convulsões, em quase dois anos de um trabalho formalmente
violento. E aí foi como se concluísse um grande círculo e comecei a pensar num
tipo de trabalho concertista (no teatro, você tem duos e solos, como na música
de câmera). Resolvi, então, pegar este texto da Adélia inteiramente voltado
para o sentimento do amor e da adesão ao ser humano. O contato com Naum
completou esta visão e estabeleceu um código de espetáculo muito dentro do que
eu sonhava fazer.
E esta postura de um
espetáculo em absoluto tom confessional?
Os textos dos vários autores podem ser feitos de diversas
maneiras, enfoques diferentes, visões particulares. Foi ótima esta opção que se
escolheu, o caminho confessional onde se tirou qualquer coisa de pitoresco ou
da piscadela para o público. Desta coisa da gente ter que ser mais engraçada
aqui, mais leve ali, enfim desta “dosagem” julgada necessária, grande parte
disso como herança de um “playwriter”, do que o americano ensina como
espetáculo – muita lágrima, muito humor, comunhão com a plateia. Tenho a
impressão que não tivemos em “Dona Doida” preocupação semelhante. Mas sim a de
dar uma inteireza, um feeling voltado para o puro mergulho no próprio
sentimento da autora.
E sobre a identificação
com o feminino na obra de Adélia Prado?
Adélia tem esta coisa bonita de tentar, como a maioria das
mulheres, coexistir com a realidade do feijão ou o sonho. O homem foi feito
para a fantasia, e a vivência prova isso, embora digam que só a mulher fantasia.
E se isto acontece é porque a mulher é um ser voltado para o seu mênstruo
mensal, onde é obrigada a ter dor de cabeça para olhar a si mesma. Pelas
próprias secreções que saem de si, ela é levada a esta observação de seu interior
e de seus baixios. A partir daí, ela sente a necessidade de se levantar para os
espaços infinitos. É importante, quando é possível falar através de uma mulher
que não se confirma com seu feijão, fazendo do sonho uma realidade
absolutamente esplendorosa. Ou, muitas vezes, atingindo uma transcendência,
calcada neste feijão, no alimentar-se diário desta realidade crua. No fundo,
todas as mulheres querem ir além de sua domesticidade. E meu encontro com
Adélia foi bonito, neste sentido. Se eu tivesse um dia que escrever, se tivesse
o dom da escrita, gostaria de escrever como ela.
No teatro, qual será o
próximo passo?
Terminada esta experiência de Adélia, gostaria de fazer com o
Naum, textos de Clarice Lispector. Porque acho que estas escritoras tem um
material literário de uma grande força dramática e são porta-vozes de uma
vivência feminina. São depoimentos, confissões, de uma alta voltagem literária
do feminino. E o resultado de crítica e
de público tem sido tão bom que vale tentar mais uns dois ou três assim. Compensa,
de vez em quando, buscar este tipo de reabastecimento na nossa linguagem, no
nosso apuro técnico e, acima de tudo, no nosso apuro emocional.
Do palco à casa como é
o seu cotidiano?
Tenho as minhas domesticidades. Gosto de minha vida, das
minhas gavetas, de meus livros e discos, dos cantos da minha casa com suas
histórias. Sou uma pessoa voltada para morar com uma certa harmonia, não com riqueza
e fortuna, mas com o prazer das coisas simples. Não sou dondoca ou boneca. Acho
que até poderia sair mais, mas não tenho estímulo para circular, para ficar frequentando
ambientes. O palco já cuida bem de uma certa vivência social, então voltar para
casa se torna um grande conforto.
E a criação artística
em família?
O nucleozinho, a famosa mandala de mãe, pai, filho e filha. Forma-se
um círculo, às vezes muito fechado. Embora cada um dos filhos já esteja em sua
própria casa, é estimulante ver tanto Fernanda como Cláudio falando suas
próprias linguagens. E aí é que a gente sente o peso e o valor desta coisa
ancestral da família.
E suas vivências
mineiras?
Pelo lado de minha mãe, a família é de imigrantes italianos
que chegaram em 1897 e foram direto para a Zona da Mata. Meus avós, embora
italianos, se casaram em Mariana, e o núcleo inicial da tribo nasceu e foi
batizado ali. Embora nascida no Rio, de pais cariocas (minha mãe já foi do Rio),
tive uma grande influência na formação de minha personalidade, via Minas.
Maneira de viver, comportamento, cozinha, de Minas tenho esta primeira herança
de brasilidade. É interessante também porque meus avós eram da Sardenha, e
Minas teve, para eles, esta identificação de um lugar fechado, de gente austera
e rigorosa. Minas é uma referência de vida, de infância. Tive um tio que
trabalhou na estrada de ferro e nas minas de Morro Velho. E morei em Belo
Horizonte, em Ibiá, em Araxá. Sempre que possível, voltamos a Minas que é
sempre uma benção. A próxima ida, com Dona
Doida espero, incluirá Belo Horizonte, Ouro Preto e Divinópolis, cumprindo
uma promessa que fiz a Adélia.
Algum conselho para os
que estão começando?
Detesto conselhos, cada indivíduo tem sua trilha. Eu comecei
há quarenta anos em outro mundo e outra possibilidade. O teatro cresceu neste
tempo e houve uma conquista em todos os setores. Não sei, na verdade, se a alma piorou
ou melhorou. De qualquer maneira, sou uma pessoa muito aberta ao novo. A
televisão, por exemplo, é uma coisa avassaladora, mas o ator deve
experimentá-la, desde que não fique escravo dela. E, ainda, o jovem ator deve
passar pelo cinema e até pelo rádio. São modalidades de expressão dramática que
enriquecem a experiência teatral. Quanto a mim, já fiz de tudo. Por ter vivido
mais tempo no palco, este se tornou minha opção maior de trabalho.
Algo mais a dizer sobre
Dona Doida?
Faço este espetáculo com imensa alegria. Ele foi bem inspirado
através dos versos de Adélia e da direção do Naum. Nele não se pensou em nada,
a não ser dar conta do pensamento de uma poetisa imantada de sentimento. O
resultado tem sido maravilhoso para uma montagem que não é redundante, não é do
tipo “cheguei”, não corteja a plateia de uma forma degradada. E também é bonito
saber que existe plateia com uma alta sensibilidade para acompanhar, dia após
dia, um espetáculo tão delicado. Só a poesia mesmo é capaz de fazer isto. Temos
carência de poetas no palco e de uma literatura dramática voltada para o
sentimento. O autor brasileiro fala muito da adesão partidária e ideológica, mas
o que falta é carnificar, um pouco mais, nossa escrita dramática. Esta peça não
é um recital de poesia, nem uma exibição de uma atriz enunciando seus poemas.
Não é nada disto. A inteireza do espetáculo é porque se fez, da literatura de
Adélia, um depoimento dramático de um ser feminino.
Uma palavra final?
Sim. Eu queria dizer é que o teatro tem uma força de
guerrilha cultural quando é capaz de estimular o público, que sai da plateia,
para uma necessidade imediata de contato com a obra de Adélia. Os livros
vendidos na entrada acabam rápido. Este é o lado misterioso do teatro, o
envolvimento mágico do palco e da vida".
Depoimento a Wagner Corrêa de Araújo
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FERNANDA MONTENEGRO em Lágrimas Amargas de Petra von Kant. 1982. Foto/Ney Robson. As três fotos ilustraram originalmente a entrevista exclusiva de Fernanda Montenegro no DM 2, em 21/12/1987. |