Ludmilla Bauerfeldt em Suor Angelica. Il Trittico/ Puccini. TM/RJ. Pablo Maritano/Direção Concepcional. Julho/2024. Fotos/Filipe Aguiar. |
Na segunda década do século XX, Giacomo Puccini impressionado com a linguagem operística inovadora
de Debussy, em Pelléas et Mélisande, 1902,
decide experimentar este avanço musical
em sua próxima criação - Il Trittico - que estreia no Metropolitan
em 1918, onde também ocorrera a première de La
Fanciulla del West, em 1910.
Mas, aqui, sem alcançar o habitual sucesso de audiência das
suas criações anteriores, especialmente pelo estranhamento na linhagem composicional
em Il Tabarro e pela indiferença
quanto ao tema monástico-catolicista de Suor
Angelica, ficando o aplauso reservado apenas para os tons cômicos imprimidos
a Gianni Schicchi.
Com um ideário inicial de sugestionar o clima, em cada uma
destas óperas, dos ciclos da Divina
Comédia de Dante, no entorno da morte através de três enredos sucessivos
dimensionados como uma tragédia passional em Il Tabarro, um suicídio redentor em Suor Angelica e o burlesco lamento na terminalidade de um rico
florentino em Gianni Schicchi.
Raras vezes apresentada no palco do Municipal carioca, a volta de Il Trittico tem um dúplice significado simbólico não só pelo registro dos cem anos da morte de Giacomo Puccini mas ainda pela escolha de uma obra diferencial no repertório do compositor. Além do convite a dois conceituados nomes do universo operístico argentino para a direção concepcional, a saber o regisseur Pablo Maritano e o maestro Carlos Vieu.
Il Trittico. Giacomo Puccini. Eiko Senda em Il Tabarro. Carlos Vieu/ Regente. Julho/2024. Fotos/Filipe Aguiar. |
E contando ainda com um elenco protagonista integrado por
nomes de destaque do canto lírico brasileiro, ao lado de cantores emergentes já
demonstrando talento para performances operísticas e de outros que fazem
parte do Coro do Theatro, este sob o acurado comando de Edvan Moraes.
Embora a intenção original de Puccini fosse retratar o Inferno
em Il Tabarro, o Purgatório em Suor Angelica e o Paraíso em Gianni Schicchi, só esta última tem alguma
subliminar referência textual da Divina Comédia expressando o irônico alcance das
beatitudes celestiais por intermédio da alegria e do riso.
Onde a direção cênica de Pablo Maritano, mantendo fidelidade às narrativas do libreto, faz uma transmutação temporal em cada uma das óperas, ambientando Suor Angelica nos anos 40 e Gianni Schicchi entre os anos 60/70, ficando próxima de seu tempo original, na primeira década do século, apenas Il Tabarro.
No que é acompanhado por artesanal sotaque cenográfico e indumentário
por Desirée Bastos que já tinha surpreendido bastante por seu toque de originalidade
no Elixir de Amor, antecedendo a
atual montagem da Temporada Lírica 2024 do TM/RJ. Valendo ressaltar que esta
transmutação temporal e cenográfica de Il Trittico tem ocorrido, com alguma
frequência, nos palcos internacionais.
A unicidade concepcional de Pablo Maritano encontrando um
acertado eco nos cenários e nos figurinos de Desirée Bastos, da ambiência soturna
de uma espécie de thriller em Il Tabarro
ao misticismo psico-dramático de Suor
Angelica, para finalizar num quadro meio felliniano no exagero das caracterizações aquareladas e no frenesi
da performance em Gianni Schicchi,
sempre sob os qualitativos efeitos
luminares de Ana Luzia de Simoni.
Sem deixar de realçar as correspondencias de um integralizado
e convicto comando musical (Carlos Vieu) desde a proposta operística da
primeira delas, na envolvente tessitura da soprano Eiko Senda, como Giorgetta, extensiva ao seu potencial dramático/vocal, especialmente no segundo elenco, como Suor Angelica. Ao lado de uma mais limitada, quase camerística, extensão vocal do barítono Marcelo Ferreira (Michele),
ambos no protagonismo de Il Tabarro.
No caso do papel titular de Suor Angelica na absoluta
e irrestrita entrega, como atriz e cantora, da soprano Ludmilla Bauerfeldt emocionando
a plateia, na tamanha força dramática e vocal dada à sensitiva aria Senza Mamma, fazendo lembrar as grandes prima donnas. E qual terá sido a
identificação afetiva de Madre Iginia, a irmã de Puccini, na clausura de um
Monastério de Toscana, em 1917, quando ouviu a ária in loco?
Mas é em Gianni Schicchi que acontece o grande desafio de uma ópera/teatro de substrato cômico levado à culminância, com a imersão na loucura egoísta de vários personagens julgando-se merecedores do testamento do recem morto Buoso Donati. Que, numa manobra esperta de Gianni Schicchi (barítono Marcelo Ferreira) provoca a surpresa final. Enquanto, no segundo elenco, outro barítono - Vinícius Atique - na mesma personificação titular, supera as expectativas com sua qualitativa performance vocal e seu singular timing atoral.
Para agrado da personagem Lauretta (soprano Flavia Fernandes) na mais conhecida ária O Mio Babbino Caro, com uma mais relativa sustentação vocal, tendo ao fundo a cúpula do Duomo. Il Trittico chega, assim, ao seu epílogo fechando com tonalidades cinéticas um metafórico percurso caleidoscópico, de Dante à contemporaneidade, em bravo espetáculo enunciador de novas perspectivas para a ópera no TM/RJ...
Wagner Corrêa de Araujo
Il Trittico / Puccini está em cartaz no TM/RJ/Cinelândia, de 17 até 26 de julho, sábado, em horários diversos.