FOTOS/PAULA KOSSATZ |
Emblemático momento do inventário dramatúrgico shakespeariano, com sua simbologia mítica e seu dimensionamento psicofísico. Absoluto retrato
dos labirínticos conflitos sensoriais da mente humana, submissa às pulsões indeléveis
de ódio e de vingança, na ambição e na ânsia do exercício do poder.
Macbeth, personagem perenizado por suas
paranoicas reações comportamentais frente a um status de historicidade cronológica,
mas transcendido na atemporalidade de uma contundente lição filosófica, política e social, com incisivo reflexo especular na contemporaneidade.
Ganância, insensatez, frieza, vilania, violência, são apenas alguns dos substratos de paradoxal complexidade
que marcam a ascensão e queda de um casal
real escocês que atravessa os palcos e as telas, incursiona da ópera à dança, alimenta
teses literárias e teorias psicanalíticas.
Em sua universalidade e abrangências temáticas propicia releituras
inusitadas a partir de sua narrativa dramática, sua tragicidade poética e seu psicologismo realista, na proximidade dos
grandes embates do homem e da civilização de quaisquer épocas.
Com este desafio dramático/textual Márcia Zanelatto assume A Peça Escocesa, pós provocação conceitual
do ator, diretor e produtor Paulo Verlings, na retomada de uma parceria que já tinha
se materializado na dramaturgia fluente e introspectiva de Ela , de carismático resultado autoral (Zanelatto) e diretorial (Verlings).
Ao qual vem se juntar a atriz Carolina Pismel(outro precioso
sustentáculo teatral de Ela) em contraponto
afetivo, entre o verismo e a
representação matrimonial, da vida real à caixa cênica , direcionando Paulo Verlings e Carolina (ou Macbeth e sua Lady), a incorporarem o protagonismo do que se titulou de A Peça Escocesa.
Nesta proposta de espetacularização, via confluentes linguagens
artísticas, no lugar do suporte convencional que remeta ao Macbeth escocês, cruzam-se elementos
estilísticos do show pop/rock à ópera
contemporânea, entremeando dramatização discursiva com interregnos de musicalidade ou equilibrando sonoridades rascantes, acordes sutilizados e modulações vocais.
Estes através da Banda
Dagda (Antonio Fischer/teclado, Arthur Martau/guitarra, Pedro
Velho/baixo e Victor Fonseca/bateria), sob a habitual consistência das
harmonizações composicionais de Ricco
Viana. Em prevalência cênica e alteridade com apenas dois personagens, entre as entradas e saídas, dos solilóquios
às dialetações.
A um espectador mais desprevenido pode assustar o não
rigorismo, tanto cenográfico como
temático, ao contexto original shakespeariano, presencial desde o primeiro insight deste Macbeth terceiro milênio.
Em sua simultaneidade performática e musical, com um ligeiro prejuízo no retorno
sonoro, às vezes, pela maior prevalência tonal/acústica da banda.
Mas, aos poucos, liberado da preconceituosa atitude na cumplicidade ator/espectador, há surpresa na revelação de quanto é singularizada esta
investigação autoral: “Não quero contar a
história ou adapta-la. Eu quero fazer ouvir
a vida interior e arquetípica dos personagens, à luz do nosso tempo”(Márcia Zanelatto).
Privilegiada na identificação maior do aporte feminino nas postulações de sua Lady
Macbeth(Carolina Pistmel) nas
ambiguidades do confronto masculino e perante os transtornos de seu Rei (Paulo
Verlings), ambos partners na
contramão da consciência moral.
O que faz lembrar a personificação
da “Carmen” de Peter Brook, ressignificada
na progressão interiorizada de um clímax
obsessivo, entre ímpetos de sexualidade e violência. E na identificação de seus
personagens por um postural egocêntrico, amoral e antiético, numa quase contraposição ao estabelecido de Merimée a Bizet.
Com a cena despojada, redução de personagens, indumentária livre,
alternância de novo discurso psicológico, recorrência musical, com um lastro
composicional que apenas referenda Shakespeare e Macbeth.
Amplificada na convergência de efeitos luminares (Tiago/Fernanda
Mantovani) com irradiações solares no
alquímico painel cenográfico de Mina Quental, sob estilizados figurinos(Flavio
Souza), com direito a propícios dreadlocks
e um belo visagismo(Vini Kilesse).
A dúplice representação de Carolina Pismel e Paulo Verlings, com energizado acionamento, surpreende pelo primado do detalhamento
gestual. Ora em hieráticas poses, ora impregnados de espontânea paixão, tanto no
desempenho de sua mascaração como no
desenrolar das tessituras poemático/textuais.
Que na dúplice lavra inventiva Zanelatto/Verlings, faz
convergir som e fúria, incorpora e amarra um jogo teatral/musical vivo, potencializado
na irreverência criativa de seu recorte cênico sem banalizar uma referencia
clássica, numa envolvente proposta que , em seus experimentos estéticos, traz novos ares
à atual temporada carioca.
Wagner Corrêa de Araújo
A PEÇA ESCOCESA está em cartaz no Teatro Nélson Rodrigues/Caixa Cultural/Centro, de quinta a domingo , às 19h. 60 minutos. Até 01 de abril.