A PEÇA ESCOCESA: SANGUE , PAIXÃO E MÚSICA EM DRAMATURGIA TRIDIMENSIONAL


FOTOS/PAULA KOSSATZ

Emblemático momento do inventário dramatúrgico shakespeariano, com sua simbologia mítica e seu dimensionamento psicofísico. Absoluto retrato dos labirínticos conflitos sensoriais da mente humana, submissa às pulsões indeléveis de ódio e de vingança, na ambição e na ânsia do exercício do poder.

Macbeth, personagem perenizado por suas paranoicas reações comportamentais frente a um status de historicidade cronológica, mas transcendido na atemporalidade de uma contundente lição filosófica, política e social, com incisivo reflexo especular na contemporaneidade.

Ganância, insensatez, frieza, vilania, violência,  são apenas alguns dos substratos de paradoxal complexidade que marcam a ascensão e queda de um  casal real escocês que atravessa os palcos e as telas, incursiona da ópera à dança, alimenta teses literárias e teorias psicanalíticas.

Em sua universalidade e abrangências temáticas propicia releituras inusitadas a partir de sua narrativa dramática, sua tragicidade poética  e seu psicologismo realista, na proximidade dos grandes embates do homem e da civilização de quaisquer épocas.

Com este desafio dramático/textual Márcia Zanelatto assume A Peça Escocesa,  pós provocação conceitual do ator, diretor e produtor Paulo Verlings, na retomada de uma parceria que já tinha se materializado na dramaturgia fluente e introspectiva de Ela , de carismático resultado autoral (Zanelatto) e diretorial (Verlings).

Ao qual vem se juntar a atriz Carolina Pismel(outro precioso sustentáculo teatral de Ela) em contraponto afetivo,  entre o verismo e a representação matrimonial, da vida real à caixa cênica , direcionando  Paulo Verlings  e Carolina (ou Macbeth e sua Lady), a incorporarem o protagonismo do que se titulou de A Peça Escocesa.

Nesta proposta de espetacularização, via confluentes linguagens artísticas, no lugar  do suporte convencional que remeta ao Macbeth escocês, cruzam-se elementos estilísticos do show pop/rock à ópera contemporânea, entremeando dramatização discursiva com interregnos de musicalidade ou equilibrando sonoridades rascantes, acordes sutilizados e modulações vocais.

Estes através da Banda Dagda (Antonio Fischer/teclado, Arthur Martau/guitarra, Pedro Velho/baixo e Victor Fonseca/bateria), sob a habitual consistência das harmonizações composicionais de Ricco Viana. Em prevalência cênica e alteridade com apenas dois personagens, entre as entradas e saídas, dos solilóquios às dialetações.

A um espectador mais desprevenido pode assustar o não rigorismo,  tanto cenográfico como temático, ao contexto original shakespeariano, presencial desde o primeiro  insight deste Macbeth terceiro milênio. Em sua simultaneidade performática e musical, com um ligeiro prejuízo no retorno sonoro, às vezes, pela maior prevalência tonal/acústica da banda.

Mas, aos poucos, liberado da preconceituosa atitude na cumplicidade ator/espectador, há surpresa na revelação de quanto é singularizada esta investigação autoral: “Não quero contar a história ou adapta-la. Eu quero fazer ouvir a vida interior e arquetípica dos personagens, à luz do nosso tempo”(Márcia Zanelatto).

Privilegiada na identificação maior  do aporte feminino nas postulações de sua Lady Macbeth(Carolina Pistmel) nas ambiguidades do confronto masculino e perante os transtornos de seu Rei (Paulo Verlings), ambos partners na contramão da consciência moral.

O que faz lembrar a personificação da “Carmen” de Peter Brook, ressignificada na progressão interiorizada de um clímax obsessivo, entre ímpetos de sexualidade e violência. E na identificação de seus personagens por um postural egocêntrico, amoral e antiético, numa quase contraposição ao estabelecido de Merimée a Bizet.

Com a cena despojada, redução de personagens, indumentária livre, alternância de novo discurso psicológico, recorrência musical, com um lastro composicional que apenas referenda  Shakespeare e Macbeth.

Amplificada na convergência de efeitos luminares (Tiago/Fernanda Mantovani) com irradiações  solares no alquímico painel cenográfico de Mina Quental, sob estilizados figurinos(Flavio Souza), com direito a propícios dreadlocks e um belo visagismo(Vini Kilesse).

A dúplice representação de Carolina Pismel e Paulo Verlings, com energizado acionamento, surpreende pelo primado do detalhamento gestual. Ora em hieráticas poses, ora impregnados de espontânea paixão, tanto no desempenho de sua mascaração como no desenrolar das tessituras poemático/textuais.

Que na dúplice lavra inventiva Zanelatto/Verlings, faz convergir som e fúria, incorpora e amarra um jogo teatral/musical vivo, potencializado na irreverência criativa de seu recorte cênico sem banalizar uma referencia clássica, numa envolvente proposta que , em seus experimentos estéticos, traz novos ares à atual temporada carioca.
                                   
                                                Wagner Corrêa de Araújo 


A PEÇA ESCOCESA está em cartaz no Teatro Nélson Rodrigues/Caixa Cultural/Centro, de quinta a domingo , às 19h. 60 minutos. Até 01 de abril.

FARNESE DE SAUDADE: PLÁSTICA TEATRALIDADE SENSORIAL


FOTOS/DANIEL GOFMAN

O estado ideal é a solidão”, livre pensar de um artista que  alinhou sua obra ao confronto dos contrários , com traços entre o barroco e o surrealismo, sexualidade e sacralidade, ingenuidade e perversão,  masculino e feminino, vida e morte, transcendentalizados em suas pinturas, gravuras, esculturas e ilustrações. E singularizados na especificidade inventiva de seus “assemblages” com  ecos dadaístas.

Farnese de Andrade(1926-1996), mineiro diferencial na prevalência de seus sentimentos oceânicos que o fizeram se afastar das montanhas das Gerais em busca de ares marítimos, curativos para uma tuberculose, adotando, então,  ambiências cariocas à beira mar como pulsão ao seu sonho de criador.

Sem renegar, outrossim, suas origens nativistas, na persistência nostálgica dos percursos de uma infância povoada de  lembranças familiares de pais idealizados e dos signos de santos, oratórios e ex-votos, bonecas e brinquedos , que povoariam seu inventário estético de artista plástico. Ao qual incorpora os resíduos, de  ossos de peixe a objetos abandonados, recolhidos nas areias praianas. 

E é, então, a partir de todos estes referenciais,  que se configura o original espetáculo instalação Farnese de Saudade, concebido dramaturgicamente com seleção antológica de textos autorais do artista titular, com aporte plástico/cenográfico e interpretação solo de Vandré Silveira, sob a incisiva gramática teatral do comando diretor de Celina Sodré. 

O espectador ao adentrar no espaço de uma galeria teatral tem seus olhos direcionados para uma caixa /instalação cênica, fechada em sua estrutura de ferro e metal, e lembrando uma simbiótica cruz céltica , sob a circularidade de montículos de areia branca com objetos semi-ocultos, revelando os delírios visuais de Farnese à beira mar.

Delimitada numa espécie de gaiola/prisão tridimensional carregada de objetos díspares/dispersos em aleatória confusão fragmentária, replicando uma “cidade devastada por bombas de napalm", na definição do critico/cineasta Olívio Tavares de Araújo. Climatizada nos meios tons de uma luz entre penumbras(Renato Machado) sugestionando paisagens oníricas.

A surpresa de cada sujeito/observador se concretiza entre a irracionalidade e o êxtase, entre a poesia e o pânico, ao tomar contato com a realidade metafórica de uma imagética misteriosa, simultaneamente patética e melancólica, na sua quase configuração de pintura metafísica.

Inicializada pelos acordes coloquiais a capella do cântico de ninar Boi da Cara Preta , na performance do ator(Vandré Silveira) que pende , cabeça para baixo, de um alçapão, revelando-se em sua corporeidade com indumentária cotidiana (também da lavra de Celina Sodré).

Seguindo-se uma alongada latinidade vernácula de sotaque religioso, sem escapar de uma  vocalização monocórdia e ligeiramente excessiva, entremeada de uma irredutível textualidade fragmentária, sem linearidade cronológica , de flashs factuais biográficos.

Ora priorizando a beleza materna como única ora a jovialidade escultural paterna, sem esconder neste laudatório familiar isolacionista a sua  própria complexidade solitária, de conflituoso psicologismo, presencial tanto na minimalista textualidade como na representação em palco particularista deste Farnese de Saudade.

Nos embates mentais, na transgressividade de seu homoerotismo reprimido e no discurso poético/denunciativo de seu memorial de arte/vida, com extremada sensorialidade na entrega confessional de um ator(Vandré Silveira) ao seu personagem.

E na apurada artesania deste élan experimental (via Celina Sodré),ora no avanço de perspectivas para  uma teatralização do ritualístico, ora na busca de novos caminhos no cruzamento e na troca entre duas linguagens artísticas .

                                                   Wagner Corrêa de Araújo



FARNESE DE SAUDADE está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo,de quinta a sábado, às 21h.;domingo,às 19h. 50 minutos. Até 29 de abril.
                                   

UTOPIA D - 500 ANOS DEPOIS : CENA TEATRAL TEORIZADA


FOTOS/DANIEL BARBOZA

A segunda versão, em compasso teatral sob concepção e comando diretorial de Moacir Chaves, para a emblemática obra do escritor e filósofo inglês Thomas More(1478/1535)  traz, desta vez, a complementação titular de Utopia D – 500 Anos Depois.

Esta oportuna remontagem tematizada sobre um metafórico país do não lugar, sob o signo do devaneio , da fantasia e da quimera, chega até nós no momento cruel de uma nação abalada em suas instituições políticas, pela dilapidação de seus valores morais e com a rapinagem econômica oficializada por seus mandatários nas diversas esferas do Poder.

Na amarga constatação de que todos os sonhos se acabaram diante do descrédito em quaisquer ideologias, sistemas de governo e partidos , com seus pretensos líderes e falaciosos representantes da vontade popular revertendo para seu exclusivo benefício o que deveria ser a propagação do bem comum.

E é a este tipo de manipuladores do domínio e da submissão que More atribui como “principal causa da miséria pública, a partir da ociosidade dos que se nutrem a custa do suor dos outros”. No desconhecimento das noções básicas dos recursos econômicos “enquanto para o mais frívolo de seus prazeres são pródigos até a loucura”.

Ao transmutar para a escritura dramatúrgica o rico inventário político, social e filosófico desta secular Utopia, a direção de Moacir Chaves optou por uma teatralidade de tese que provocasse uma pulsante prevalência da reflexão ainda que isto, por vezes,  conduza a um menor avanço dramático no dimensionamento psicológico/emocional.

E mesmo com o enfrentamento do desafio de um certo didatismo que periga conduzir a uma narrativa tediosa onde a linguagem literária em busca de seu alcance ideológico não consegue , às vezes, ser energizada cenicamente no deslocamento da ação para o onirismo de intencionalidade crítica.

Na dúplice composição da performance, o  feminino através do sensorial afetivo e da fisicalidade de Josie Antello é enunciado em atávico e autoral gestual coreográfico, sob singularizados acordes(Tato Taborda), fazendo dançar a palavra , em contraponto, à palavra filosófica visualizada e corporificada através do ator Júlio Adrião, como um convicto personagem porta voz do ideário de Thomas More.

Mas não deixando de persistir uma equilibrada dialetação entre os dois atores nas passagens textuais, existindo  também um particularizado revezamento sequencial com a repetição enfática do já discursado ou com súbitas variações na tessitura dos falares, entrecortados entre pausas de silencio.

Numa sobriedade cenográfica com luzes apenas ambientais (Aurélio de Simoni) onde só aparecem uma pequena mesa, bancos e um ipod conectado a uma caixa de som que os próprios atores acionam, figurinos( Inez Salgado) em tons ocres, de referência quase conventual em Julio Adrião enquanto há maior detalhamento e elegância na indumentária de Josie Antello.

De funcional simplicidade, as marcações de Moacir Chaves, enfim,  facilitam a apreensão do tônus filosófico/político destas falas amparadas na liberdade do pensar, estabelecendo um sutil registro de ironizado humor para melhor adesão e cumplicidade palco/plateia. 

Na proposta por uma gramática cênica circuladora de idéias capaz, assim, de sintonizar contundentes lições quinhentistas de uma obra luminosa com o ceticismo e os desalentos contextualizados na nossa sombreada contemporaneidade sócio/político.

                                                     Wagner Corrêa de Araújo


UTOPIA D - 500 ANOS DEPOIS está em cartaz no Centro Cultural Parque das Ruínas/Santa Tereza, sábado e domingo, às 19h30m. 60 minutos. Até 01 de abril.

EDWARD BOND PARA TEMPOS CONTURBADOS: MUNDO FORA DO EIXO


FOTOS/KAIO CAIAZZO

Não escrever sobre a violência é não escrever sobre nosso tempo”. Um dos paradigmas da obra do escritor, poeta e dramaturgo inglês Edward Bond(1934) que, em suas quase cinquenta peças, tornou-se  porta voz de um teatro que, em sua radicalidade e crueza, provoca o espectador enquanto o leva à conscientização sobre um mundo fora do eixo.

Ao apresentar, em 1965, a  trama cáustica e iconoclasta de Saved como um retrato comportamental de seres desumanizados pela monstruosidade de seus atos e pela irreverência e desprezo a quaisquer limites morais, ideologias políticas, conceitos filosóficos e dogmatismos religiosos, abalou as estruturas do Império Britânico. Mas acabou contribuindo, paralelamente, para o relaxamento às resistentes regras censórias no universo das artes cênicas.

O questionamento visceral , não menos incomodo e sem disfarces, tanto na sua textualidade como na sua estética quase trash , faz com que a estrutura textual de Edward Bond Para Tempos Conturbados,  inspirada a partir do autor inglês e contextualizada na contemporaneidade brasileira, com dramaturgia de André Pellegrino e direção de Daniel Belmonte, tenha visibilidade na sua  sintonização com a patética realidade por nós vivenciada.

Às custas de um processo de marginalização econômica e de uma esquizofrênica violência social com o absoluto  descrédito em quaisquer valores. Especialmente quando a institucionalização da  ordem e progresso de uma nação é apenas um disfarce para as falácias de um sistema de governabilidade em crise.

Na entrega à performance por cinco atores(Fernando Melvin, João Sant’Anna, Alice Morena, Leonardo Bianchi, Livia Feltre) e uma convicta atriz narradora (Susanna Kruger), funcionando como um alter ego enunciador do pensamento de Bond.

E no estabelecimento de uma relação palco/plateia, visibilizando situações arquetípicas em clima de pânico, ao compasso de tempos conturbados e sem nenhuma sinalização de saída ou solução de apaziguamento.

Atirando facas para todos os lados numa encenação seca e direta, energizada pelo comando direcional de Daniel Belmonte , jogando na cara verdades marcadas com sangue e vísceras em incisivos quadros cenográficos(Julia Marina/Ana Beatriz Barbiere). Sob efeitos luminares (Irmãos Mantovani) ressaltando estranhamentos emotivos e exasperações sonoras (Daniel Belmonte, Antônio Nunes, Pedro Nêgo).

Alterativo da adequação indumentária(Anouk Van Der Zee) à exibição da fisicalidade desnuda, sem quaisquer pudores, e no desbloqueio de uma verbalização desbocando em ironia e sarcasmo, extensivos a uma  proposital anarquização gestual(Kallanda Caetana). Ou ao riso grotesco quando identifica nostálgicas lembranças familiares com protótipos de personalismo tirânico na brutal manipulação do poder e da submissão.

Se, por vezes, estes rompantes de desaforo e transgressão beiram o risco do exagero e a iminência do apelo panfletário, podendo causar ocasionais sintomas de insegurança à representação, por outro lado, estabelecem pontes de dialetação brechtiana entre atores e espectadores.

Que, mesmo a partir de postulações  incitadoras do niilismo existencial, podem abrir as portas da percepção crítica, através da solidez de um teatro com folego e coragem para o enfrentamento das adversidades do status quo urbano e das contradições da condição humana.
                              
                                              Wagner Corrêa de Araújo


Edward Bond para Tempos Conturbados está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, quinta a sábado, às 21h;domingo, às 19h. 70 minutos. Até 29 de abril.

HOJE É DIA DE ROCK: POÉTICO INVENTÁRIO DE UMA MINAS QUE NÃO HÁ MAIS

FOTOS/VITOR DIAS

Do mais longínquo interior das Minas e das montanhas das Gerais, em tempos idos, um jovem dramaturgo dá seu recado de fé numa textualidade carregada de sonho e de poesia mas, ao mesmo tempo, libertária no seu apelo a favor das diferenças. Em contraponto crítico de  anos negros de retrocesso político e de coerção  às liberdades posturais do agir e do pensar , dando sua lição por um jeito fora do convencional e além do sistema.

Ao escrever e fazer representar seu mítico testemunho confessional de toda uma geração através de sua peça Hoje É Dia de Rock,  mal chegado aos trinta anos – José Vicente - provocou, quase involuntariamente,  um fenômeno comportamental de identidade especular entre a representação teatral e a vida social/política de sua época.

E que transcendeu, a partir de sua poética narrativa confessional, numa singular estética dramatúrgica e como uma simbologia da contracultura ancorada na bandeira da paz e do amor em tempos de militarismo e ditadura.

O reconhecimento de sua autenticidade e pulsão inventoras a partir dos laços da mineiridade o fez, inclusive, ser considerado um instaurador do realismo mágico, de lastro literário mineiro(Murilo Rubião) e de raiz latino/americano(Garcia Márquez), na estruturação temática de sua escritura cênica.

De um Brasil provinciano e lírico, perdido na saudade de suas lembranças distantes, que contextualizou José Vicente, junto a Drummond e Rosa, de um “secreto entendimento das coisas, a uma poesia gauche e pungente e a um“Minas que não há maisque é Minas por toda parte”, na análise de Sábato Magaldi para Hoje é Dia de Rock.

Provocando, então, uma histórica e transformadora montagem concebida, interpretada e dirigida por Rubens Corrêa para o Teatro Ipanema e, assim,  inicializando a primeira década de uma trajetória deste tão necessário espaço que está completando seu meio século. E retomada, agora, em sotaque comemorativo, com o mais recente trabalho direcional de Gabriel Villela neste Hoje é Dia de Rock, idealizado  para a trupe do Teatro de Comédia do Paraná.

Com uma outra proposta mais vinculada a uma performance em palco italiano sem invadir os espaços além do proscênio , característica que marcou a configuração interativa palco/plateia na versão de 1971, aqui há uma intimista aproximação entre a  bela exteriorização da caixa cênica com os espaços siderais da mente de cada espectador.

Estabelecendo pontes do que se vê e do que se sente, da efusiva plasticidade barroquista de uma indumentária onírica ao encantamento cenográfico de um mapa/ paisagem frontal(em dúplice realização de Gabriel Vilella), indicativo das  trilhas mágicas que conduzem à imaginaria cidadela chamada Ventania, em mobilidade luminária(Wagner Corrêa), de marcos geográficos a brilhos estelares.

Através de um elenco laminar, afinado, energizado, entregue ao seu ofício na demonstração da prevalência de alcance qualitativo na jovialidade destes onze artesãos/atores(Arthur Faustino, Evandro Santiago, Flávia Imirene, Helena Tezza, Kauê Persona Luana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milleo, Paulo Marques, Pedro Inoue), parte deles de estreantes via testes. 

Configurando um retrato familiar sertanejo com ingênuo  olhar voltado para a cidade grande, da menina cega aos seminaristas sem vocação, do encontro com cartomantes e nas personificações metaforizadas em homens e deuses incas/astecas.

Destacando-se, com uniformidade, ao lado da convicta composição dos personagens de Rosana Stavis(Adélia, a matriarca), de Rodrigo Ferrarini(Pedro Fogueteiro, o patriarca/músico) e do alter ego de José Vicente no ansiado desejo de liberação sexual, transmutada no envolvente e bem humorado papel de um adolescente rebelde (Cesar Mathew).

Entremeada no puro lirismo e na tessitura nostálgica dos acordes musicais de temas clássicos do Clube da Esquina , ao vivo , sob comando  e arranjos vocais/instrumentais de Marco França, reiterativo do que o próprio José Vicente titulou de partitura romance. Sem deixar de lado, o referencial roqueiro no tributo a Elvis Presley.

Num arquétipo, enfim, da melhor teatralidade, em contagiante encenação, num espetáculo pleno de expressividade visual e dimensionamento psicológico, com a tônica da precisão, do domínio e  do refinamento artístico que Gabriel Villela tem para transformar , alquimicamente, tudo em que  porventura toca.

                                              Wagner Corrêa de Araújo
                                         

HOJE É DIA DE ROCK está em cartaz no Teatro Ipanema, de sexta a segunda, às 20h30m. 80 minutos. Até 19 de março

A VISITA DA VELHA SENHORA : A COR DO DINHEIRO E O PREÇO DA ÉTICA


FOTOS/CACÁ BERNARDES

Neste cotidiano de corrupção monetária nas intimidades podres do poder politico, quando só o dinheiro importa, na abjeta forma como chega às mãos de não poucos, numa nação de muitos que estão longe de sua cor, é mais que oportuna uma remontagem de “A Visita da Velha Senhora”.

Aqui, neste clássico teatral do século XX , o personalismo de um dramaturgo (o suíço Friedrich Dürrenmatt ) entre o absurdo e a critica política, faz uma mordaz apologia da torpe submissão pelo dinheiro e pela justiça comprada.

Seus personagens , na contramão do ato redentor e altruísta do personagem brechtiano pelas causas libertárias, revelam apenas a superficialidade da postura interesseira de habitantes comuns de uma cidade miserável.

Todos moralmente cegos, surdos e mudos, deformados enfim, diante do que pode significar, para vidas sem saída, o retorno inesperado de uma desprezível cidadã do passado.

Antes prostituta , agora a velha senhora Clara Zahanassian, venerável mulher milionária de "dez" maridos que , em sua visível pompa e circunstancia, esconde uma missão maldita – a vingança pelo ancestral desprezo de Alfred Schill, primeiro homem que a tornara mulher e mãe.

Num jogo cruel, esta dama hierática, quase robótica com sua perna mecânica e mão artificial, maquiagem carregada e olhar de fria fixidez, vai detonando corações e dominando mentes conformistas, numa mudança radical de hábitos sociais, pelo derrame fácil da moeda suja.

Neste desfile de insanidades, lá se vão as aparências espirituais do pároco, os  disfarces do prefeito e as reflexões do professor, fazendo-se sempre acompanhar, pelo convencimento de outras alterativas presenças comunitárias.

Num elenco equilibrado e coeso com destaques pelo favorecimento dos papéis de Fábio Herford(Prefeito), Renato Caldas(Policial), Eduardo Estrela(Padre) e Romis Ferreira(Professor). Em contracena, no impacto maior, do simbológico duelar do protagonismo  dos personagens Claire (Denise Fraga) e Alfred(Tuca Andrada), antigo amante e causa primeira do ressentimento da Velha Senhora.

A dinâmica direção de Luiz Villaça alcança o clima propício de risível e corrosiva absurdidade, priorizando um tratamento mais farsesco da notável fluência textual de Dürrenmatt.  Embora não disfarce um tendencioso tom acima no sotaque humorado da protagonista, em detrimento de um mais mordaz ressentimento no papel principal.

No recato da arquitetura cenográfica e da singularização em tons pastéis da indumentária(em dúplice realização de Ronaldo Fraga), contrastada nos tons quentes e aquarelados dos figurinos elegantes de Claire.

Sugestionados por uma luz vazada com poucas sutilezas focais(Nadja Naira). Notabilizando-se, ainda, o acerto musical  em passagens coletivas de acordes quase corais (Dimi Kireeff/ Rafael Faustino), com ocasionais  convocações  à cumplicidade dialogal com a plateia.

Denise Fraga jamais foge à sua entrega absoluta de caracterização com fluida ironia da personagem, mesmo com carregamento num comportamental, entre a vocalização e a gestualidade, de sustentação prevalente do sotaque de comicidade o que, às vezes, deixa perpassar uma circunstante amenização de sua amarga hipocrisia nas réplicas mais sarcásticas.

Enquanto a performance de Tuca Andrada, também de exímia segurança, revela um psicologismo mais naturalista e suas interferências, pela própria adequação ao personagem, tendem a um menor apelo ao pitoresco que marca o contraponto feminino da representação titular.

Convergindo todos e tudo, em tempos de habitual cinismo nos jogos de domínio das instâncias políticas e jurisdicionais, à tão necessária retomada de um tema de tamanho referencial no embate presente de desacerto marginal , entre  propinas  e  acerto de contas”, da selvagem envolvência financeira de uma democracia corrompida.

Reflexionando, enfim, em distanciamento brechtiano,  através da “visita desta velha senhora” a uma decadente urbe e frágeis mentes, a lembrança de uma anciã lição: “Onde o dinheiro fala, diante de sua cor,  tudo cala”...

                                             Wagner Corrêa de Araújo



A VISITA DA VELHA SENHORA está em cartaz no Teatro Sesc/Ginástico, Centro/RJ, de quinta a sábado, 19h;domingo, às 18h. 120 minutos. Até 25 de março.

PRETO: DESAFIO INVESTIGATIVO ÀS DIFERENÇAS


FOTOS/ NANA MORAES

Nas antigas salas de aula das instituições educacionais com direcionamento religioso havia jogos didáticos , de evidentes propósitos de exaltação aos princípios de moralismo autoritário, onde repetia-se em uníssono perante o professor – “eu sou eu, tu és tu, nós não somos nós, somos tu”.

No ressignificado de uma nova leitura deste paradigma conservador, esta despersonalização do eu transmutada na exacerbação especular do tu, daria lugar a um processo  de reconhecimento  idealista de sermos todos individualmente cúmplices na aceitação das diferenças do outro como parte do nós coletivo.

Ainda que não haja uma identidade imagística única, física ou psicológica e, mais além,  do racial/antropológico  ao étnico, do político  ao cultural. E é assim que se configura o instigante processo investigativo da criação dramatúrgica de Grace Passô, Nadja Naira e Márcio Abreu,  com direção deste último, para Preto.

No formato de uma diferencial conferencia há o perceptível propósito de temática questionadora do posicionamento pró racista, numa postura corajosa de como ser negro diante do desafio do preconceito e da sua marginalização na sociedade brasileira.

Mas já no prólogo torna-se presencial o percurso anticonvencionalista, desde uma narrativa não sequencial e sem rigorismos temáticos, ao minimalista aporte cenográfico(Marcelo Alvarenga), nas mutações posicionais de uma extensa mesa branca  ocupada pelo recato de um copo com água e um microfone.

Materializando, discricionariamente, a palestrante(Grace Passô) para a  escuta de fala fragmentária direcionada para uma amplificada visualização frontal de seu rosto, sob ascético desenho de luz(Nadja Naira) focado em alterativos truques cênicos palco/plateia.

Completada pela diversidade pigmentária de um coeso elenco meio  a meio, branco e negro, conduzido prioritariamente por uma visceral  Grace Passô, seguido pelo carisma de Renata Sorrah e complementado pela duplicidade genético/racial de um energizado quarteto de atores (Cássia Damasceno, Felipe Soares, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan).

Em potencializado gestual(Márcia Rubin), equilibrando-se ora pelo coloquialismo verbal, ora por aliterações linguísticas e variações tonais, há um prevalente teor de happening na performance, de indumentária cotidiana(Ticiana Passos), com implícito suporte dos efeitos sonoro/musicais de Felipe Storino.

Como o impactante sensorial da coreografia de mascaração e luta em compasso de ringue. Ou a evocação provocativa do discurso de denúncia, a uma só voz(Cássia Damasceno) e múltipla microfonia, às pulsões oponentes às diferenças .

Reiterativo das sempre inusitadas investigações no comportamental cênico/dramático assumidas pelo comando diretorial de Márcio Abreu, na continuidade ao seu característico sotaque experimental/inventivo frente à Companhia Brasileira de Teatro e de seu Projeto Brasil.

Preto não é um espetáculo de fácil digestão e a muitos há de causar estranhamento, incomodo e desconforto, pelos descompassos e dissonâncias especulativas que afetam a sua mais imediata acepção como entretenimento.

Mas que, na sua sintonização estética com a contemporaneidade teatral e no seu investimento ideológico, pelo livre confronto com as desigualdades, dialoga com o Preto que integra o complexo racial pátrio enquanto  afronta a negra realidade que assola o País: 

“Para que servem nossas respostas que falam sobre nós. A quem? Quem são os corpos que ouvem isso? Essas palavras fazem agir? Amanhã o teu cabelo vai gritar alguma coisa? Teus braços, teus pés e mãos? Quem vai abrir mão para dividir? E nós? Vamos ter fôlego para plantar em cada comunidade, em cada reunião, alguma ação?”...

                                             Wagner Corrêa de Araújo


PRETO está em cartaz no Teatro 3 , Centro Cultural Banco do Brasil/RJ, de quarta a domingo , às 19h30m. 90 minutos. Até 11 de março.

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