FARNESE DE SAUDADE: PLÁSTICA TEATRALIDADE SENSORIAL


FOTOS/DANIEL GOFMAN

O estado ideal é a solidão”, livre pensar de um artista que  alinhou sua obra ao confronto dos contrários , com traços entre o barroco e o surrealismo, sexualidade e sacralidade, ingenuidade e perversão,  masculino e feminino, vida e morte, transcendentalizados em suas pinturas, gravuras, esculturas e ilustrações. E singularizados na especificidade inventiva de seus “assemblages” com  ecos dadaístas.

Farnese de Andrade(1926-1996), mineiro diferencial na prevalência de seus sentimentos oceânicos que o fizeram se afastar das montanhas das Gerais em busca de ares marítimos, curativos para uma tuberculose, adotando, então,  ambiências cariocas à beira mar como pulsão ao seu sonho de criador.

Sem renegar, outrossim, suas origens nativistas, na persistência nostálgica dos percursos de uma infância povoada de  lembranças familiares de pais idealizados e dos signos de santos, oratórios e ex-votos, bonecas e brinquedos , que povoariam seu inventário estético de artista plástico. Ao qual incorpora os resíduos, de  ossos de peixe a objetos abandonados, recolhidos nas areias praianas. 

E é, então, a partir de todos estes referenciais,  que se configura o original espetáculo instalação Farnese de Saudade, concebido dramaturgicamente com seleção antológica de textos autorais do artista titular, com aporte plástico/cenográfico e interpretação solo de Vandré Silveira, sob a incisiva gramática teatral do comando diretor de Celina Sodré. 

O espectador ao adentrar no espaço de uma galeria teatral tem seus olhos direcionados para uma caixa /instalação cênica, fechada em sua estrutura de ferro e metal, e lembrando uma simbiótica cruz céltica , sob a circularidade de montículos de areia branca com objetos semi-ocultos, revelando os delírios visuais de Farnese à beira mar.

Delimitada numa espécie de gaiola/prisão tridimensional carregada de objetos díspares/dispersos em aleatória confusão fragmentária, replicando uma “cidade devastada por bombas de napalm", na definição do critico/cineasta Olívio Tavares de Araújo. Climatizada nos meios tons de uma luz entre penumbras(Renato Machado) sugestionando paisagens oníricas.

A surpresa de cada sujeito/observador se concretiza entre a irracionalidade e o êxtase, entre a poesia e o pânico, ao tomar contato com a realidade metafórica de uma imagética misteriosa, simultaneamente patética e melancólica, na sua quase configuração de pintura metafísica.

Inicializada pelos acordes coloquiais a capella do cântico de ninar Boi da Cara Preta , na performance do ator(Vandré Silveira) que pende , cabeça para baixo, de um alçapão, revelando-se em sua corporeidade com indumentária cotidiana (também da lavra de Celina Sodré).

Seguindo-se uma alongada latinidade vernácula de sotaque religioso, sem escapar de uma  vocalização monocórdia e ligeiramente excessiva, entremeada de uma irredutível textualidade fragmentária, sem linearidade cronológica , de flashs factuais biográficos.

Ora priorizando a beleza materna como única ora a jovialidade escultural paterna, sem esconder neste laudatório familiar isolacionista a sua  própria complexidade solitária, de conflituoso psicologismo, presencial tanto na minimalista textualidade como na representação em palco particularista deste Farnese de Saudade.

Nos embates mentais, na transgressividade de seu homoerotismo reprimido e no discurso poético/denunciativo de seu memorial de arte/vida, com extremada sensorialidade na entrega confessional de um ator(Vandré Silveira) ao seu personagem.

E na apurada artesania deste élan experimental (via Celina Sodré),ora no avanço de perspectivas para  uma teatralização do ritualístico, ora na busca de novos caminhos no cruzamento e na troca entre duas linguagens artísticas .

                                                   Wagner Corrêa de Araújo



FARNESE DE SAUDADE está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo,de quinta a sábado, às 21h.;domingo,às 19h. 50 minutos. Até 29 de abril.
                                   

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