A ALMA COREOGRÁFICA DA ESPANHA: O FLAMENCO, DE PILAR LOPEZ AO LEGADO DE GADES

PILAR LOPEZ, a responsável por toda uma geração de expoentes da dança flamenca. Foto/divulgação.

Século XX, década de trinta, a Espanha vivia um grande momento criador. Ignacio Sanchèz Mejía deixava os touros com suas arenas e dedicava-se ao teatro. Enquanto Federico Garcia Lorca, ao lado de influente geração literária (Rafael Alberti, Pedro Salinas, Jorge Guillén), fazia ecoar um pungente grito hispânico de contrastes e conflitos.

Empolgados por uma crescente pulsão inventiva, Lorca e seus contemporâneos transubstanciavam, em reveladora vitalidade estética, o propósito de fazer da arte um oficio configurador da essência nacional ibérica, com a mais pura e radical autenticidade.

E entre versos, montagens teatrais, composições musicais (na prevalência mor de Manuel De Falla), cores e formas picassianas, a criação coreográfica também teria sua hora e vez. Sanchéz Mejías e Lorca estimulariam Encarnación Lopez a formar o primeiro conjunto legítimo de danças populares espanholas. A fama viria instantaneamente para o grupo que tornou-se conhecido como o “Ballet de La Argentinita”.

Com a súbita morte (1934) de Sanchéz Mejíasa las cinco en punto de la tarde” (nos emotivos versos de Lorca) exatamente em uma arena e o assassinato do poeta (1936) pela hordas fascistas de Franco, nas  proximidades de Granada, La Argentinita privada dos dois amigos - incentivadores, iria manter acesa a chama da então dispersa geração de poetas e artistas. Através, ainda, de concepções coreográficas sob moldes inspiradores nativistas. Em 1945 ela morre em Nova York, cabendo então a Pilar Lopez, integrante do grupo da famosa artista, continuar o legado precioso da sua conhecida  irmã.

Tarefa árdua a de substituir no palco e na mente de uma infinita legião de admiradores aquele prodígio de bailarina conhecida pela crítica como “la suave señora del canto, de la danza  y del arte de trenzar guirnaldas”. Sabendo Pilar Lopez, que viu de perto crescer o enorme talento da irmã, lidar bravamente com o mesmo material que a celebrizara : as fontes populares e a força ancestral da cultura coreográfica espanhola.

FEDERICO GARCIA LORCA E LA ARGENTINITA. 1931. Foto/divulgação.

Em meio a importantes turnês e premiações, Pilar Lopez formaria uma autêntica escola com sustento na tradição, moldando famosos artistas neste gênero de dança como Paco de Ronda, Elvira Real, José Greco, Alejandro Vega e, principalmente, Antonio Gades,     este despontando como um dos mais destacados bailarinos de sua Cia. Mostrando sempre o que há de mais característico no acervo de canto e dança de origem ibérica (especialmente o flamenco), a Cia Pilar Lopez soube, assim, preservar o espírito autóctone das raízes culturais hispânicas.

Em entrevista que realizamos com Pilar Lopez no Palácio das Artes (BH), em novembro de 1972 e numa breve correspondência postal que mantivemos a seguir, ela assim definia o seu ideário coreográfico : “Meu balé recolhe todas as formas e tipos de dança espanhola - dança acadêmica, regional, ou seja folclore, e dança flamenca ou de guitarras. O princípio básico que deve orientar uma bailarina do meu gênero é conhecer, antes de mais nada, a dança do povo e trabalhá-la artisticamente com a necessária autenticidade”.

Em outra de suas observações, ela contava sua ida a um ensaio de escola de samba no Rio:

"Senti ali que todos viviam a sua dança, a sua música, o seu ritmo. Era uma dança alegre que fazia-nos esquecer todos os dramas do mundo, como se não existissem mais sofrimentos e nenhuma tristeza. Um ritmo sensacional e quente que eu, como boa espanhola, senti numa transmissão de alegria e beleza. Também fico feliz quando consigo transmitir, com o meu balé, o mesmo calor do povo espanhol". 

Em solos e conjuntos, Pilar apresentava-se ora acompanhada ao piano, ora por guitarras e castanholas, com marcante sapateado e potencial gestualismo, numa demonstração de sua real habilidade coreográfica, perceptível na absoluta técnica e via primorosa originalidade. Mesmo já em quase final de carreira, nas performances a que pude assistir, conservando incrível flexibilidade corporal e energizada marcação rítmica.

Por exemplo, seu Poema del Cante Jondo funcionava como um tributo coreocênico a Lorca, maior poeta espanhol de sua época e de peculiar apêlo universal. Sóbrio e primitivo canto andaluz, traduzido pela bailarina/coreógrafa com precisão de movimentos e exemplar por sua disciplina artesanal, mantendo-se ela com elegante porte numa sucessão de coplas cantadas sob o som de guitarras e na batida do sapateado. Numa espécie de tropicalismo espanhol, exótico, voluptuoso, mágico e sonhador.

Pilar Lopez foi uma das últimas e privilegiadas possuidoras dos segredos milenares da Espanha coreográfica incitados particularmente por Garcia Lorca. E transmitidos na espontaneidade de seus movimentos ardorosos, ritmos vivos e calor vivencial.

Legado singular de uma provocante bailarina espanhola que sempre foi sinônimo do melhor estilo flamenco, transmutado na integralidade artística de uma Espanha conectada em dança, teatro, música e poesia.

                                           Wagner Corrêa de Araújo

PILAR LOPEZ E ANTONIO GADES. Carmen. 1958. Acervo/Fundación Antonio Gades.

A MORTE NÃO ABALOU O MITO : PÓS QUATRO DÉCADAS MARIA CALLAS ESTÁ "ALIVE"

MARIA CALLAS EM LA TRAVIATA. Royal Opera House, 1958. Foto/Houston Rogers.


No refúgio das plataformas digitais para atenuar o isolamento pandêmico, às vezes, há boas surpresas como Sete Mortes de Maria Callas, projeto de ópera/instalação da performer sérvia Marina Abramovic. Estreada virtualmente, no ultimo mês de setembro, na Bavarian State Opera House, Munique.

Que não deixa de ser um tributo memorial, exatamente aos 44 anos da passagem definitiva de Maria Callas, no entremeio de melancólicos anos existenciais e artísticos à causa do epílogo de seu relacionamento com Onassis, especialmente prejudicial também à trajetória artística final de um dos maiores mitos da história da ópera.

“É sobre morrer com o coração partido, é sobre ser morto pela pessoa que você ama”, assim Abramovic conceitualiza seu projeto que remete também à vida pessoal da performer diante do que sofreu com o súbito rompimento de seu partner amoroso - o também artista Paolo Canevari.

Onde ela tem ao seu lado o ator Willem Dafoe, personificando o elemento masculino causador das sete mortes de Callas através das heroínas do palco lírico, condenadas sempre a uma terminalidade trágica, conduzida com visceral exorbitância pela culpabilidade machista dos amantes/homens. Ainda que, por vezes, potencialize demais a irracionalidade, como Desdemona sendo estrangulada, via Otelo (W. Dafoe), por intermédio de uma serpente simbolizando o lenço da traição.

E, aqui, representadas por árias que selam os destinos fatalistas do feminino em óperas como Norma, Carmen, Traviata, Tosca, Otello, Madama Butterfly, na voz ao vivo de várias sopranos que dividem também o palco com Abramovic e Dafoe em cenas dramatúrgicas, sob acordes contemporâneos do compositor sérvio Marko Nikodijevic conectando a narrativa em épocas diversas, sublinhadas por intervenções videográficas.

SETE MORTES DE MARIA CALLAS. Marina Abramovic. Bavarian State Opera House. Setembro 2020. Foto/Wilfried Höls.

Por outro lado, este espetáculo referencia também, para nós brasileiros, a única lembrança presencial da Callas, na temporada de 1951, há sete décadas, nos Municipais paulista e carioca, em Norma, Tosca e La Traviata. Plena dos conflitos de exibicionista rivalidade estabelecidos com Renata Tebaldi (então, na mesma Cia italiana) e que, entre vaias, aplausos e críticas demolidoras, fizeram a Callas jamais voltar.

O. Bevilacqua, dizia ao Globo: “A arte de Maria Callas supera um passeio a cavalo em montanhas  acidentadas. É tudo cheio de altos e baixos e seus agudos são atingidos em gritos estridentes, conquistados a trampolim”. E Andrade Muricy, no Jornal do Commércio: "Uma artista do merecimento da sra. Maria Callas não deveria arriscar-se a um desastre como o que teve no papel de Floria Tosca”.

Mas a infeliz turnê brasileira foi desmentida nos anos seguintes por vertiginosa ascensão mítica. Não só fazendo renascer óperas esquecidas de Cherubini, Bellini, Donizetti e Rossini, mas destacando-se como uma das cantoras mais exigentes em seu profissionalismo, sem nunca deixar de lado o apelo ao seu caráter energizado pelo fator temperamental.

Com um repertório trágico e cômico, romântico e verista, Callas alcançaria, assim, o rápido reconhecimento do público e da crítica pela completa harmonia de voz e corpo, pela marcante expressão facial (sendo comparada às máscaras do teatro grego clássico), pela extensão vocal que ultrapassava o dó agudo, senso teatral, disciplina musical e por sua capacidade de envolvência levando o público a uma pulsão de delírio.

Em doc/especial - Vinte Anos Sem Callas - que dirigimos para o Caderno 2 da então TVE, em 1997, inspirado por nossa preciosa coleção Callas (incluindo todas as suas óperas gravadas, os registros audiovisuais e livros biográficos), priorizamos depoimentos fundamentais  de artistas brasileiros ligados ao universo da ópera, do teatro e da música.

Onde, destacando o seu talento dramático, o ator/diretor Sérgio Britto, seguidor e fã incontestável de vida inteira, afirmava enfático ser “a única cantora que conseguiu arrebentar o limite entre a ópera e o teatro, tendo uma harmonia de voz, de gestos, de uso integral do corpo”.

Recorrendo mais uma vez ao espetáculo performático de Marina Abramovic, na sua provocativa desconstrução estética do substrato mítico de uma atriz/cantora, mergulhada em anos de amargura pela desilusão amorosa e no despontar sequencial da decadência artístico/vocal, lembramos o patético tom confessional da própria Callas :

“Quem sou? Uma máquina de cantar? Não, sou um ser humano e preciso que me ajudem. Minha vida foi muito solitária e toda construída na solidão. Não devo ter ilusões, a felicidade não foi feita para mim. Sou um peso morto. E me pergunto. E agora, o quê? Qualquer coisa para sobreviver, cheguei a este ponto”.

Para os amigos mais próximos como Franco Zeffirelli :“Maria é a sacerdotisa suprema de sua arte e, ao mesmo tempo, a mais falível das mulheres”. Enquanto, na visão de Luchino Visconti, era “um monstro sagrado, uma espécie de artista que não existe mais, para quem a última representação era tão importante e tão nova como a primeira”.

No julgamento da posteridade, mesmo num país onde a ópera ocupa difícil e limitado espaço, o nome de Maria Callas continua, com seu enorme magnetismo, a fascinar e a intrigar os que conhecem ou não os meandros da arte lírica.

Em compasso de atemporalidade sendo capaz de estabelecer polêmicas e criar atitudes comportamentais (ser temperamental ainda é equivalência de “dar uma de Callas”). Mas, afinal, quem é Callas? Enquanto Marina Abramovic polemiza seu olhar na contemporaneidade, a própria Callas, em tempo metafórico, emblematiza sua resposta:

“A personagem Callas eu a trago dentro de mim. Ser Callas é uma religião. É a minha religião”...

                                        Wagner Corrêa de Araújo


MARIA CALLAS EM LA TRAVIATA. Theatro Municipal/RJ. Setembro de 1951.
 Foto/Coleção particular. Comparem as duas fotos no papel de Violetta e verão como,
fisicamente, houve uma  radical transformação, em apenas 7 anos.

JEAN COCTEAU : UMA ARTE COM SETE FACAS SOB O SIGNO DA MORTE

JEAN COCTEAU, 1950. Foto / Phillippe Halsman.

Envolvido na magia de um mundo mítico, habitado por semi-deuses e personagens cuja realidade se confundia com a fantasia, universo presidido pelo espectro da morte, Jean Cocteau usava seu fascínio sedutor para se tornar mentor de um círculo de amigos e amantes pelos quais seria capaz de dar a própria vida.

Evitando só assim, segundo um de seus biógrafos, “de se render inteiramente ao mundo de sonho que estava sempre a ponto de submergi-lo”. Três paixões masculinas cruzaram visceralmente seu caminho: Raymond Radiguet, Al Brown e Jean Marais.

Radiguet, a primeira delas, objeto de uma obsessão amorosa sem limites, foi colocado por Cocteau, no entremeio do instantâneo período de relacionamento erótico/poético, numa espécie de reclusão com fins criativos, ao reconhecer no atraente rapaz um raro talento.

E foi desta fuga forçada de uma vida desordenada e boêmia que surgiu a primeira, única e definitiva obra-prima – Le Diable au Corps, cuja escritura começou em 1920 mas sua publicação foi póstuma, com a morte súbita do jovem escritor, três anos depois, por um surto de febre tifóide.

Preenchendo esta trágica ausência, Cocteau faz Al Brown um boxeur esquecido reencontrar a glória dos ringues e um promissor ator - Jean Marais - se transformar em dúplice mito do palco e da tela, ambos por terem caído nos braços desse mistificador-mor.

De personalidade estética contraditória, Cocteau afirmou-se como poeta, ficcionista, dramaturgo, artista plástico e cineasta incursionando pelos caminhos das sete musas que, para ele, eram dez. E se não foi um compositor ou um bailarino, suas atuações nos bastidores da música e do balé de seu tempo foram as mais marcantes.

Por não ter tido como meta uma arte específica mas uma exuberante reunião de todas, não se classificou preferencialmente em nenhuma delas, embora considerasse prevalente o ofício de Aedo no substrato conceitual de ancestralidade mitológica greco-clássica: Poeta situado num contexto cósmico universal, cantor intemporal do perene fascínio das coisas vivas, obcecado pelo mito da morte refletida no espelho de Orfeu.

Pois ao se ligar à musa da poesia o poeta estaria, então, se confundindo com o próprio sentido da perenidade e do transitório direcionado à morte, na metafísica equivalência entre o ato de criar e o de morrer.

O OLHO ARQUITETO DE JEAN COCTEAU. Foto/divulgação.

E por isto mesmo de seus próprios amigos e contemporâneos vieram críticas incisivas que questionavam a própria validade de sua obra para um múltiplo talento criador ou manipulador/acrobata de sete facas. 

De Paul Éluard ouviu uma provocação apoiada no jogo sonoro de palavras : “Un cocktail, des Cocteau”. De André Breton : “como a figura mais detestável da nossa geração”. De Igor Stravinsky : “Um jovem impertinente”. Numa crítica parisiense: “Absurdo conglomerado artístico” e na ficha da polícia de Paris - “Cocteau, Jean. Opiômano. Pederasta. Diz que é poeta”.

Sua estréia artística começa como pequeno recitalista de seus poemas. Em 1909, publica o primeiro livro, de poemas, “La Lampe d’Aladin”. Daí até o fim de sua trajetória existencial/artística, atua na dança como autor de argumentos e de cenografias (a mais celebrada delas – Parade – reunindo-se a Picasso, Erik  Satie e Sergei Diaghilev)

Na ópera, o libreto de  Oedipus Rex, de Stravinsky, e os figurinos, cenários e direção de Antigone, de Arthur Honneger. No teatro, Les Enfants Terribles e La Voix Humaine, teatro/ópera em formato de monólogo, mais o êxito de  Les Parents Terribles e L’Aigle de Deux Têtes que o conduziria a transposições cinematográficas. Embora já tivesse estreado nas telas, em 1930, com seu experimento surrealista O Sangue do Poeta.

Além de suas três incursões contextualizadas no universo da lógica imperiosa dos sonhos, do mito e da poesia, manifestadas nos filmes A Bela e a Fera, Orfeu e O Testamento de Orfeu, numa visão estética submetida às leis do pensamento poético, fazendo com que a liberdade de criação inventasse sempre um mundo que lhe fosse absolutamente próprio:

Eu/ E tudo se constrói em torno/ de meu olho arquiteto/ e de minha orelha”.

                                      Wagner Corrêa de Araújo

JEAN MARAIS em ORFEU, de Jean Cocteau, 1950. Foto/divulgação.

LA STRADA : FELLINI/ROTA EM VISCERAL RELEITURA POR GOECKE

LA STRADA. Gartnerplatztheater, Janeiro,16, 2021. Fotos/Marie Laure Briane.


Há três anos a cena coreográfica paulista  se surpreendia  com o inusitado e provocador tônus da obra de Marco Goecke para a São Paulo Companhia de Dança. Na época, postei a seguinte análise crítica que retomo agora diante do encantamento de ter assistido nas plataformas visuais, com estreia no último dia 16 de janeiro, a visceral envolvência de sua criação La Strada, inspirada no filme de Federico Fellini, Oscar de 1954,  a partir de uma suíte sinfônica de Nino Rota composta em 1966.

O medo me motiva... Mas o corpo permanece - é a tela sobre a qual estamos pintando”. Reflexão que remete à poesia, à solidão e ao caos, temáticas recorrentes na criação coreográfica do alemão Marco Goecke. Com uma das mais  sólidas trajetórias inventivas na dança contemporânea e que ficou, sobremaneira, marcada em suas passagens pelo Nederlands Dans Theater e o Stuttgart Ballet.

As três obras de um coreógrafo sob a prevalente marca criativa de reiterativa linguagem gestual, entre o automatismo simétrico e a mecanicidade nervosa, foram capazes de sequenciar, sem pausas, movimentos milimetricamente construídos, dimensionados ora para mãos e braços, ora em bruscos arranques de tronco e ombros.

Construindo gesto a gesto, numa linguagem sincopada e num feeling enérgico que, ao mesmo tempo, induzem a uma expressiva exteriorização do conflitante suporte da condição humana. Tornando-se perceptível, por este aspecto, num mergulho quase ritualístico da corporeidade dos bailarinos, traçada como espectros ou silhuetas numa luz entre sombras o que, segundo Goecke, representaria “tentativas de libertação”, transmutadas em solos, duos, trios e conjuntos”.

Nesta releitura de obra criada em 2018 - La Strada, agora nas plataformas digitais com disponibilização liberada, via Live-Stream ( youtube.com ),  para quem não conhece o inovador gestual coreográfico reiterativamente mecanicista/robótico de Marco Goecke é uma chance, mais que rara e especial, para conferi-lo na incursão quase dança-teatro que ele faz pelo celebrado enredo felliniano sob a potencial atração da trilha de Nino Rota

 

Ressaltando que, na ausência de elementos cenográficos, a plasticidade do imaginário está no funcional despojamento dos figurinos de Michaela Springer (cumulativo à concepção coreográfica de Marco Goecke), enquanto o desenho de luz torna-se fundamental às climatizações da performance, mostrando uma aproximada similaridade com os elementos tecnoartísticos destinados à sua obra Supernova, para a SPCD em 2018, e adequadamente referencial para La Strada, também da mesma época.      

Se, em princípio, a um espectador não acostumado a uma mobilidade de assumido gestual robotizado possa assustar, talvez, esta simulação de metafórico jogo com corpos/marionetes manipulados por fios invisíveis, é preciso saber resistir para, assim, melhor absorver este diferencial estilo de movimento, um dos mais incisivos no panorama atual da dança contemporânea.

E que, na transposição dançante da trajetória de uma mulher (Gelsomina) submetida às pressões machistas do marido e showman (Zampanò) na estrada da vida, dá um salto revelador quando esta conhece um artista de circo (Matto) - um acrobata por quem se apaixona perdidamente - deixando de lado o status de contumaz submissão feminina ao doentio ciúme e possessividade do seu parceiro masculino.

A própria concepção do andamento coreodramtúrgico (com adaptação de Daniel C. Schindler) dá vazão aí a instantâneas motricidades corpóreas, com sutil e quase imperceptível sotaque quando torna incidentais certos retoques que conectam o contemporâneo ao neoclássico.

Sustentado por um conceitual lúdico-burlesco que privilegia o universo circense, no entremeio da energia acrobática e de um expressionismo facial que lembra máscaras e palhaçaria, em substancial performance do Ballet of the State Theatre Gärtnerplatz.

Com suas pulsões de alegria no entremeio de repiques melancólicos, numa tipicidade memorial da linguagem fílmica felliniana, e que os acordes sonoros levam a uma culminância de sonhos, delírios e paixões em múltiplo encontro da dança, do cinema, da música, do teatro e  do circo.

Tornando, afinal, obrigatória esta abordagem sob o signo de avançada invenção coreográfica, sem deixar de lado o teor poético original, para um dos maiores clássicos da história cinematográfica mundial.

                                           Wagner Corrêa de Araújo

LA STRADA. Gärtnerplatztheater. Janeiro 2021. Disponível, em versão completa, no youtube.com

O TEATRO NUNCA SERÁ UMA DAS VÍTIMAS FATAIS DA COVID-19

JACKSONS DO PANDEIRO. Musical/Barca dos Corações Partidos. Foto/Renato Mangolin.


Se há mais de vinte séculos o oficio performático vem sobrevivendo como um dos ápices do saber humano, não há de ser agora que ele tombará perante o caos pânico instaurado pela Covid-19. Ao contrário, recorrendo à transcendente lição de Peter Brook, “
quando o teatro é necessário, nada mais é necessário”.

Em ano quase sem fim, considerando-se o início do flagelo em terras brasileiras a partir de março/17/2020, com a interdição de palcos e plateias, numa possível especular simbologia literária, filosófica e política da narrativa de Albert Camus, incisivamente titulada como A Peste.

Tão aplicável, sobretudo, à desgovernança sanitária e política que assola o País. Afinal temos ainda, mais do que nunca, a obrigação e o dever moral como cidadãos de nos  empenharmos na luta erradicadora deste dúplice surto virótico.

Diante das limitações impostas para evitar maior disseminação do trágico contágio, surgiu o que poderíamos talvez denominar como Teatro Pandêmico. Uma representação atoral fissurada em seus elementos básicos - o fator presencial e o face a face - impedida, assim, de ser compartilhada, numa comum emoção coletiva palco/plateia, ator/espectador.

Se o processo criador interativo do encontro e da corporeidade é suspenso, como fazer valer a força telúrica, no entremeio do sensorial e da provocação reflexiva, razão de ser e sustento estético da própria representação teatral, metaforizando-se em performático ato artístico e político?

Confrontados, os realizadores do espetáculo diante do lockdown cênico se aventuraram numa incessante busca de soluções emergenciais para ultrapassagem deste tempo do novo normal. Claro que a resposta, talvez a única possível, estaria na imediata utilização dos recursos digitais.

Onde, apesar de tudo, o contato espectador/ator ficaria submisso à não presença, ao vivo e a cores, ora através da plataforma digital pelo Zoom ora por intermédio de registros cinéticos. Ambos, evidentemente, privilegiando o distanciamento físico e fazendo prevalecer o isolamento solitário das duas partes.

Quebrado apenas pelos chats e lives pós-espetáculo, via registros e inscrições pagas ou franqueadas. Mas que, apesar dos pesares, pelo menos teve um fator, de certa maneira positivo, ao possibilitar uma interatividade da proposta em termos nacionais e até mesmo globais com espectadores dos mais distantes recantos. Quem sabe experimentando, pela primeira vez, o encantamento de um espetáculo teatral, ainda que sob formato virtual.

PARECE LOUCURA MAS HÁ MÉTODO. Grupo Armazém de Teatro. Foto/Divulgação.

O resultado imediato foram as temáticas decorrentes do isolamento social que se tornariam insistentemente reiterativas. No confinamento do ator, na maioria das vezes em sua própria ambiência residencial, falando das agruras de um cotidiano de comportamental solitário, sob o compasso de um antidoto com tônus de risco próximo. Sem qualquer conectividade, física/emotiva/comunitária, no parâmetro habitual do processo cênico criador.

Saindo de cena praticamente, à causa da quarentena exigida, a caixa preta, os bastidores e suportes técnicos, pela quase total ausência, forçada pelas difíceis circunstancias, de elementos cenográficos, indumentários, luminares e sonoros. Em suma, restando o ator, empenhado num misto de performance documental/confessional, em conflitante status ao submergir nesta realidade de total exclusão da convivência psicofísica com o público, sob narrativa transmidiática que vai dele ao imaginário espectador.

Proliferaram, então, as propostas sob o signo do experimentalismo em inúmeros solos monologais ou em painéis que conectam na tela a dialetação dos atores, na diversidade de espaços domiciliares e com espetáculos absolutamente minimalistas.

Por vezes orientados por um comando cênico diretorial na manipulação dos efeitos computadorizados, de outras - concebidos espontaneamente por seus mentores/atores. Mas sempre sob a égide prevalente de uma proposta audiovisual onde, por exemplo, os solos coreográficos na linhagem dança-teatro tiveram melhores resultados.

Entre tantas realizações, de maior ou menor teor qualitativo, exatamente por não conseguirem ultrapassar os tramites classificatórios do espetáculo simplesmente cinético, ou de má captação fílmica, há que se destacar as desanuviadoras incursões realizadas pelo grupo paulista Os Satyros, com especial referência para A Arte de Encarar o Medo, na direção segura e, antes de tudo, antenada com a problemática do momento, por Rodolfo Garcia Vázquez.

E, aqui, no Rio, a surpresa inicial de uma das mais marcantes concepções do teatro digital sob o signo inspiratório em personagens shakespearianos, num duelo cênico de caráter lúdico entre atores com participação virtual dos espectadores - Parece Loucura Mas Há Método, com o Grupo Armazém de Teatro, sob provocativa condução de Paulo de Moraes.

No formato de musicais pré-gravados, o bonito esforço de enfrentamento do perigo pandêmico no visceral registro cinético, com elenco integral e completo staff musical, de Jacksons do Pandeiro, pela Barca dos Corações Partidos, na sempre artesanal visão de Duda Maia.

Não podendo deixar de ser lembrado o meritório projeto de resistência - Teatro Já - de Beatriz Nogueira (sob integralizado suporte de André Junqueira, gestor do teatro) na ocupação realista do palco do Teatro Petra Gold, com transmissão virtual. Trazendo outra acurada direção de Rodrigo Portella, desta vez para o solilóquio confessional de Maitê Proença – O Pior de Mim

Além, entre outros espetáculos, da oportuna amostragem de três textos inéditos de Gustavo Pinheiro - A Lista, Nesta Data Querida, Romeu & Julieta(E Rosalina) - numa das mais surpreendentes revelações redentoras de força da nova dramaturgia carioca para um ano de tantas incertezas...

                                                 Wagner Corrêa de Araújo    

O PIOR DE MIM. Maitê Proença, no projeto Teatro Já. Foto/Cristina Granato.

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