![]() |
MARIA CALLAS EM LA TRAVIATA. Royal Opera House, 1958. Foto/Houston Rogers. |
Que não deixa de ser um tributo memorial, exatamente aos 44
anos da passagem definitiva de Maria Callas,
no entremeio de melancólicos anos existenciais e artísticos à causa do epílogo
de seu relacionamento com Onassis, especialmente prejudicial também à trajetória
artística final de um dos maiores mitos da história da ópera.
“É sobre morrer com o
coração partido, é sobre ser morto pela pessoa que você ama”, assim Abramovic conceitualiza seu projeto que remete também à vida
pessoal da performer diante do que sofreu com o súbito rompimento de seu
partner amoroso - o também artista Paolo
Canevari.
Onde ela tem ao seu lado o ator Willem Dafoe, personificando o elemento masculino causador das sete mortes de Callas através das heroínas do palco lírico, condenadas sempre a uma terminalidade trágica, conduzida com visceral exorbitância pela culpabilidade machista dos amantes/homens. Ainda que, por vezes, potencialize demais a irracionalidade, como Desdemona sendo estrangulada, via Otelo (W. Dafoe), por intermédio de uma serpente simbolizando o lenço da traição.
E, aqui, representadas por árias que selam os destinos fatalistas do feminino
em óperas como Norma, Carmen, Traviata, Tosca, Otello, Madama Butterfly, na voz ao vivo de várias
sopranos que dividem também o palco com Abramovic e Dafoe em cenas dramatúrgicas, sob acordes contemporâneos do compositor sérvio Marko Nikodijevic conectando a
narrativa em épocas diversas, sublinhadas por intervenções videográficas.
![]() |
SETE MORTES DE MARIA CALLAS. Marina Abramovic. Bavarian State Opera House. Setembro 2020. Foto/Wilfried Höls. |
Por outro lado, este espetáculo referencia também, para
nós brasileiros, a única lembrança presencial da Callas, na temporada de 1951,
há sete décadas, nos Municipais paulista e carioca, em Norma, Tosca e La
Traviata. Plena dos conflitos de exibicionista rivalidade estabelecidos com Renata Tebaldi (então, na mesma Cia italiana) e que, entre vaias, aplausos
e críticas demolidoras, fizeram a Callas jamais voltar.
O. Bevilacqua, dizia ao Globo:
“A arte de Maria Callas supera um passeio a cavalo em montanhas acidentadas. É tudo cheio de altos e baixos e
seus agudos são atingidos em gritos estridentes, conquistados a trampolim”. E
Andrade Muricy, no Jornal do Commércio: "Uma artista do merecimento da sra. Maria Callas não deveria arriscar-se a um
desastre como o que teve no papel de Floria Tosca”.
Mas a infeliz turnê brasileira foi desmentida nos anos seguintes por vertiginosa ascensão mítica. Não só fazendo renascer óperas esquecidas de Cherubini, Bellini, Donizetti e Rossini, mas destacando-se como uma das cantoras mais exigentes em seu profissionalismo, sem nunca deixar de lado o apelo ao seu caráter energizado pelo fator temperamental.
Com um repertório trágico e cômico, romântico e verista, Callas alcançaria, assim, o rápido reconhecimento do
público e da crítica pela completa harmonia de voz e corpo, pela marcante
expressão facial (sendo comparada às máscaras do teatro grego clássico), pela
extensão vocal que ultrapassava o dó agudo, senso teatral, disciplina musical e
por sua capacidade de envolvência levando o público a uma pulsão de delírio.
Em doc/especial - Vinte Anos Sem Callas - que dirigimos para o Caderno 2 da então TVE, em 1997, inspirado por nossa preciosa coleção Callas (incluindo todas as suas óperas gravadas, os registros audiovisuais e
livros biográficos), priorizamos depoimentos fundamentais
de artistas brasileiros ligados ao universo da ópera, do teatro e da
música.
Onde, destacando o seu talento dramático, o ator/diretor Sérgio Britto,
seguidor e fã incontestável de vida inteira, afirmava enfático ser “a única cantora que
conseguiu arrebentar o limite entre a ópera e o teatro, tendo uma harmonia de voz, de gestos, de uso integral do corpo”.
Recorrendo mais uma vez ao espetáculo performático de Marina Abramovic, na sua provocativa
desconstrução estética do substrato mítico de uma atriz/cantora, mergulhada em
anos de amargura pela desilusão amorosa e no despontar sequencial da decadência artístico/vocal,
lembramos o patético tom confessional da
própria Callas :
“Quem sou? Uma máquina
de cantar? Não, sou um ser humano e preciso que me ajudem. Minha vida foi muito
solitária e toda construída na solidão. Não devo ter ilusões, a
felicidade não foi feita para mim. Sou um peso morto. E me pergunto. E agora, o
quê? Qualquer coisa para sobreviver, cheguei a este ponto”.
Para os amigos mais próximos como Franco Zeffirelli :“Maria é a sacerdotisa suprema de sua arte e, ao mesmo
tempo, a mais falível das mulheres”. Enquanto, na visão de Luchino Visconti, era “um monstro sagrado, uma espécie de artista que não
existe mais, para quem a última
representação era tão importante e tão nova como a primeira”.
No julgamento da posteridade, mesmo num país onde a ópera
ocupa difícil e limitado espaço, o nome de Maria Callas
continua, com seu enorme magnetismo, a fascinar e a intrigar os que conhecem ou
não os meandros da arte lírica.
Em compasso de atemporalidade sendo capaz de estabelecer
polêmicas e criar atitudes comportamentais (ser temperamental ainda é equivalência de “dar uma
de Callas”). Mas, afinal, quem é Callas? Enquanto Marina Abramovic polemiza seu
olhar na contemporaneidade, a própria Callas, em tempo metafórico, emblematiza
sua resposta:
“A personagem Callas eu
a trago dentro de mim. Ser Callas é uma religião. É a minha religião”...
Wagner Corrêa de Araújo
Nenhum comentário:
Postar um comentário