FOTOS/DANIEL BARBOSA |
Um convite a uma viagem mimética de vivências ancestrais, com
ecos nos dilaceramentos civilizatórios do século XXI .
Este é o contagiante experimento que , em incrível coesão,
vivem atores e espectadores no transcendente rito do teatro total de Salina – A
Última Vértebra , mais uma das surpreendentes criações da Cia. Amok.
De autoria do premiado escritor e dramaturgo Laurent Gaudé, a
peça , através da trajetória de amor e ódio , vingança e perdão da
personagem/título , estabelece um painel dialético entre forças míticas,num
clima milenar de tragicidade grega.
Nela o sagrado evoca também o carnal, numa ambiência étnica
,ora da aldeia com seus opressivos costumes morais ora das manifestações da
natureza ,das águas tranquilas de um rio à aridez de um deserto.
Bodas impostas trazendo filhos não desejados , com
sentimentos de revolta e humilhação, transmutados em ira e repulsa.
Que atingem as gerações seguintes, na remissão de ofensas ,em
duelos de guerreiros da mesma genealogia .
E em cenas de belíssima construção épica que , às vezes
,remetem aos samurais de Kurosawa.
No elenco de atores predominantemente negros, há um tal
equilíbrio expressivo de performances , tornando difícil a individualização de
destaques.
Desde Ariane Hime (Salina), Luciana Lopes ( Mama Lita), André
Lemos(Saro Djimba),Thiago Catarino( Kano) e , ainda, Sergio Ricardo Loureiro,
Tatiana Tibúrcio, Graciana Valladares, Sol Miranda, Reinaldo Júnior e Robson
Freire,todos com um notável brilho próprio.
A movimentação gestual(Tatiana Tibúrcio) gera um rico
fraseado de coreografias de base étnica afro-brasileira, das rodas de candomblé
ao congado, acentuado pelo especial desenho das luzes ( Renato Machado).
A enérgica música ao vivo( Fábio Simões Soares) ,na
originalidade sonora de cerimoniais cantares e instrumental típico,estabelece o
clima ideal de transe , transubstanciado no estilístico figurino e na sugestão
de elementos cênicos regionais(em feliz concepção dos diretores).
Enfim, este sequencial processo criativo entre o mítico e o
ritual atinge ,no comando de Ana Teixeira/Stéphane Brodt ,o componente estético
ideal, fazendo de Salina um fenômeno raro de prestidigitação cênico/poética.
Capaz, diante do confronto dos seus caracteres de fatalidade,
a partir de um grito contra a submissão , de conduzir à reflexão pela catarse
da tragédia,pois se aí, segundo Nietzsche,
“O escravo se torna livre, então rompem-se todas as barreiras
rígidas e hostis que a miséria, o arbítrio e a moda insolente criaram entre os
homens”.
Wagner Corrêa de Araújo
SALINA está de volta ao cartaz, na Caixa Cultural /Centro/RJ, quinta e sexta 19 h; sábado e domingo, às 18h. 220 minutos,com intervalo de 15m. Até 30 de julho.