IL TRITTICO / GIACOMO PUCCINI : BRAVO TRIBUTO CÊNICO/MUSICAL DO MUNICIPAL CARIOCA AO CENTENÁRIO DE MORTE DO COMPOSITOR

  
               Ludmilla Bauerfeldt em Suor Angelica. Il Trittico/ Puccini. TM/RJ. Pablo Maritano/Direção Concepcional. Julho/2024. Fotos/Filipe Aguiar.


Na segunda década do século XX, Giacomo Puccini impressionado com a linguagem operística inovadora de Debussy, em Pelléas et Mélisande, 1902, decide experimentar este avanço musical em sua próxima criação - Il Trittico - que estreia no Metropolitan em 1918, onde também ocorrera a première de La Fanciulla del West, em 1910.

Mas, aqui, sem alcançar o habitual sucesso de audiência das suas criações anteriores, especialmente pelo estranhamento na linhagem composicional em Il Tabarro e pela indiferença quanto ao tema monástico-catolicista de Suor Angelica, ficando o aplauso reservado apenas para os tons cômicos imprimidos a Gianni Schicchi.  

Com um ideário inicial de sugestionar o clima, em cada uma destas óperas, dos ciclos da Divina Comédia de Dante, no entorno da morte através de três enredos sucessivos dimensionados como uma tragédia passional em Il Tabarro, um suicídio redentor em Suor Angelica e o burlesco lamento na terminalidade de um rico florentino em Gianni Schicchi.  

Raras vezes apresentada no palco do Municipal carioca, a volta de Il Trittico tem um dúplice significado simbólico não só pelo registro dos cem anos da morte de Giacomo Puccini mas ainda pela escolha de uma obra diferencial no repertório do compositor. Além do convite a dois conceituados nomes do universo operístico argentino para a direção concepcional, a saber o regisseur Pablo Maritano e o maestro Carlos Vieu.


Il Trittico. Giacomo Puccini. Eiko Senda em Il Tabarro. Carlos Vieu/ Regente. Julho/2024. Fotos/Filipe Aguiar.


E contando ainda com um elenco protagonista integrado por nomes de destaque do canto lírico brasileiro, ao lado de cantores emergentes já demonstrando talento para performances operísticas e de outros que fazem parte do Coro do Theatro, este sob o acurado comando de Edvan Moraes.

Embora a intenção original de Puccini fosse retratar o Inferno em Il Tabarro, o Purgatório em Suor Angelica e o Paraíso em Gianni Schicchi, só esta última tem alguma subliminar referência textual da Divina Comédia expressando o irônico alcance das beatitudes celestiais por intermédio da alegria e do riso.

Onde a direção cênica de Pablo Maritano, mantendo fidelidade às narrativas do libreto, faz uma transmutação temporal em cada uma das óperas, ambientando Suor Angelica nos anos 40 e Gianni Schicchi entre os anos 60/70, ficando próxima de seu tempo original, na primeira década do século, apenas Il Tabarro.

No que é acompanhado por artesanal sotaque cenográfico e indumentário por Desirée Bastos que já tinha surpreendido bastante por seu toque de originalidade no Elixir de Amor, antecedendo a atual montagem da Temporada Lírica 2024 do TM/RJ. Valendo ressaltar que esta transmutação temporal e cenográfica de Il Trittico tem ocorrido, com alguma frequência, nos palcos internacionais.

A unicidade concepcional de Pablo Maritano encontrando um acertado eco nos cenários e nos figurinos de Desirée Bastos, da ambiência soturna de uma espécie de thriller em Il Tabarro ao misticismo psico-dramático de Suor Angelica, para finalizar num quadro meio felliniano no exagero das caracterizações aquareladas e no frenesi da performance em Gianni Schicchi, sempre sob os qualitativos efeitos luminares de Ana Luzia de Simoni.

Sem deixar de realçar as correspondencias de um integralizado e convicto comando musical (Carlos Vieu) desde a proposta operística da primeira delas, na envolvente tessitura da soprano Eiko Senda, como Giorgetta, extensiva ao seu potencial dramático/vocal, especialmente no segundo elenco, como Suor Angelica. Ao lado de uma mais limitada, quase camerística, extensão vocal do barítono Marcelo Ferreira (Michele), ambos no protagonismo de Il Tabarro.

No caso do papel titular de Suor Angelica na absoluta e irrestrita entrega, como atriz e cantora, da soprano Ludmilla Bauerfeldt emocionando a plateia, na tamanha força dramática e vocal dada à sensitiva aria Senza Mamma, fazendo lembrar as grandes prima donnas. E qual terá sido a identificação afetiva de Madre Iginia, a irmã de Puccini, na clausura de um Monastério de Toscana, em 1917, quando ouviu a ária in loco?

Mas é em Gianni Schicchi que acontece o grande desafio de uma ópera/teatro de substrato cômico levado à culminância, com a imersão na loucura egoísta de vários personagens julgando-se merecedores do testamento do recem morto Buoso Donati. Que, numa manobra esperta de Gianni Schicchi (barítono Marcelo Ferreira) provoca a surpresa final. Enquanto, no segundo elenco, outro barítono - Vinícius Atique - na mesma personificação titular, supera as expectativas com sua qualitativa performance vocal e seu singular timing atoral.  

Para agrado da personagem Lauretta (soprano Flavia Fernandes) na mais conhecida ária O Mio Babbino Caro, com uma mais relativa sustentação vocal, tendo ao fundo a cúpula do DuomoIl Trittico chega, assim, ao seu epílogo fechando com tonalidades cinéticas um metafórico percurso caleidoscópico, de Dante à contemporaneidade, em bravo espetáculo enunciador de novas perspectivas para a ópera no TM/RJ... 

 

                                       Wagner Corrêa de Araujo


Il Trittico / Puccini está em cartaz no TM/RJ/Cinelândia, de 17 até 26 de julho, sábado,  em horários diversos.

BOCA DO MUNDO : CELEBRAÇÃO RITUALÍSTICA DA CORPOREIDADE, NUM COMPASSO DE AFRO BRASILIDADE

 

Boca do Mundo/Marcio Cunha Dança Contemporânea. Márcio Cunha/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Carol Pires.


Boca do Mundo é a mais recente incursão do artista plástico, performer atoral e bailarino Márcio Cunha. E que também tem, agora, sua diferencial trajetória artística e processo criador decifrados no envolvente doc filme de Guto Neto titulado Impermanência.

Desde o incisivo teor inventivo de seu tríptico inspirado na obra de Frida Kahlo, Jean-Michel Basquiat e Arthur Bispo do Rosário, a Márcio Cunha Dança Contemporânea vem imprimindo uma original conexão estética em suas  criações  estabelecendo liames entre a coreografia, a performance teatral e as instalações plásticas.

Continuadas em potenciais concepções conceituais como foi o caso de Barro, sob a manipulação em cena deste material geológico - o que me fez lembrar a artista e ceramista Celeida Tostes em uma de suas viscerais propostas ao vivo – “Cobri meu corpo de barro e fui / Entrei no bojo do escuro/ventre da terra”.

Ambos despojando-se, através desta ação de um teatro-dança no formato de uma instalação, de sua natural fisicalidade direcionando-se a uma transmutação metafórica em formas escultóricas primitivas, incorporando o ser e o não ser ancestral, céu e terra, com um olhar no futuro.


Boca do Mundo/Marcio Cunha Dança Contemporânea. Márcio Cunha/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Carol Pires.


Enquanto em Basquiat, impulsionando um ser revolto com acordes hip hop e jazzísticos entremeados por black spirituals, ele sugestiona um espaço mágico preenchido por referências plásticas, integrando em sua psicofisicalidade “um jovem artista negro num mundo de arte branco”.

E no caso de Rosário reinventando num sotaque com traços subliminares de Artaud a Pina Bausch, outro artista - este brasileiro - sob o signo da marginalidade, na sua corporificação de um refém da alienação, completada na participação inclusiva – física e vocal - de um dos ex-internos dos tempos da Colônia Juliano Moreira.

Mostrando um dos caracteres mais marcantes do ideário de luta polideológica de Marcio Cunha que é seu sensorial apelo por uma inserção composicional entre o corpo e a natureza, em época de tanto descaso pela preservação de nossas reservas biológicas e florestais, surge Sacro.

Onde o múltiplo artista, outra vez próximo de uma proposta de dança-teatro, faz apenas a direção concepcional, coreográfica e cenográfica, no  simbolismo do risco de uma catástrofe ambiental através de galhos secos. E na performance trazendo nomes referenciais da dança brasileira de hoje (Denise Stutz, Frederico Paredes e Giselda Fernandes).

Para, depois do tributo ao seu pai Mestre de Capoeira (de quem aprendeu este ofício) em Pipoca, apresentar seu mais recente espetáculo Boca do Mundo. Aqui voltando à caixa cênica, pela ambientação a partir de materiais elucidativos da tradição popular ritualística do universo dos terreiros, das rodas de capoeira e do culto a personagens do Candomblé, como Exu e os  Orixás.

E por sua energizada atuação, ao lado de uma também vigorosa performer/bailarina Carla Stank, ambos entregues a um convicto jogo cênico vivo de espontâneo gestualismo, por vezes caracterizado por injunções poéticas, ou então por uma dúplice imersão brincante na autenticidade popular da capoeiragem.

Ampliado na mascaração com referenciais figurativos da tradição dos ritos originários de uma aculturação de crenças afro-brasileiras, sempre dimensionadas pela adequação sonora de ritmos percussivos típicos.  E pela figuração de um expressionismo entre o burlesco, o histrionismo gestual e o terrir de bocas escancaradas e olhares esbugalhados.

Sem nunca quebrar a pulsão imaginária de um artesanal manipulador de variadas linguagens inventivas que, entre o lúdico e o reflexivo evocam o desafio da Impermanência (no tão a propósito nome do esclarecedor e fundamental filme de Guto Neto) da condição humana, no seu eterno conflito entre as alegrias e os desafetos da vida e sua finitude.

Como se a visão fílmica da inspiradora trajetória da Márcio Cunha Dança Contemporânea fizesse ecoar, também, em suas manifestações estéticas da corporeidade, o emblemático grito de Frida  Kahlo : “Meu corpo carrega em si todas as dores do mundo”...

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Boca do Mundo/Marcio Cunha Dança Contemporanea faz curta temporada no Teatro da UFF/Niterói, dias 17 e 18, às 19h; 19/07, sexta feira, às 20h.

Impermanência, filme de Guto Neto, será apresentado na Mostra Cavideo 27 Anos, dia 22, segunda feira, às 21h, no Estação Net/Botafogo.

EU NÃO ME ENTREGO NÃO : INCURSÃO MEMORIALISTA NA TRAJETÓRIA DE UM ATOR-ÍCONE DO TEATRO E DO CINEMA BRASILEIRO

 

Eu Não Me Entrego Não. Flávio Marinho/Dramaturgia Direcional. Othon Bastos/Ator. Junho/2024. Fotos/Beti Niemeyer.


Ser ator significa ser você mesmo sendo maior que você mesmo. O que se aplica, muito a propósito, ao ideário dramatúrgico desenvolvido, com luminoso acerto, pelo autor/diretor Flávio Marinho, ao atender a um apelo do ator Othon Bastos para, assim, poder voltar ao ofício teatral, na plenitude de seus 91 anos.

Após este ter ficar fascinado com o que vira em sua peça Judy: O Arco-Íris é Aqui, com Luciana Braga, de livre intuito biográfico, como se sentisse o mesmo anseio roseano de querer também decifrar as coisas que são (ou foram) importantes, numa  transmutação, também para o palco,  no entorno dos atos e fatos da trajetória artística/existencial do ator baiano.

E que acabaria sendo o primeiro monólogo de sua icônica carreira como um dos mais celebrados intérpretes do teatro, da televisão e do cinema brasileiro. E desta vez não imitando, ou fingindo ser, um outro personagem qualquer, mas sendo ele mesmo o ator representando a própria vida. 


Eu Não Me Entrego Não. Flávio Marinho/Dramaturgia Direcional. Othon Bastos/Ator. Junho/2024 Fotos/Beti Niemeyer.


Numa postura arrojada em que ele, agora, estaria contando como isto aconteceu, desde sua passagem de inicialização performática, ao declamar em tempos escolares um poema de Olavo Bilac. Sem o exagerado sotaque melodramático assumido pelos outros colegas e onde sua espontaneidade, ao dizer versos sob uma naturalidade cotidiana,  levou-o a ser admoestado pela professora de jamais pensar em ser artista um dia.

O que, nas surpresas de reviravoltas do destino, se daria ao contrário (pós fugaz desejo de ser dentista) atuando como coadjuvante vocal, numa das apresentações da Cia de Paschoal Carlos Magno, extensiva a uma tournê em Londres, ainda que continuasse nas intervenções apenas figurativas, segundo Othon, um mero “coadjuvante de luxo”.

Mas preparando um fértil terreno que o faria receber do conterrâneo Glauber Rocha o convite, com apenas 21 anos, para ser Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Que, sete décadas depois, por uma de suas falas cantadas serviria como mote titular deste monólogo – Eu Não Me Entrego Não, em simbólica sugestão de Flávio Marinho.

Na fase preparatória da sua encenação chegou-se uma original idéia que dissipou quaisquer temeridades de lapsos, dada a idade avançada de Othon Bastos, especialmente numa atuação solista, contando com a parceria presencial da atriz Juliana Medella.

Numa funcional e simpática participação num papel de ponto ou como um Google, em ironico aparte textual  (“uma espécie de Alexa em cena”) em pausas esclarecedoras sobre as re(ve)lações de toda uma vida-teatro-cinema, em subliminar encenação paralela ao lado do ator, plena de convicção como se fosse um personagem alterego, sendo ao mesmo tempo ela e ele.

Nos setenta anos teatrais, fílmicos e televisivos, passando por caracterizações emblemáticas como o São Bernardo, de Leon Hirszman, 1972, nas telas, ou nos palcos Um Grito Parado no Ar, 1973, de Gianfrancesco Guarnieri, sempre ao lado de Martha Overbeck, parceira de teatro e de uma paixão de quase vida inteira.  

Tudo isto figurado no alusivo painel/mural  cenográfico  (Ronald Teixeira) preenchido por nostálgicas fotos e imagens documentais, potencializado pelos sensoriais efeitos luminares de Paulo Cesar Medeiros e pelos acordes incidentais de uma trilha, com o habitual brilho musical  de Liliane Secco.

Em mais uma das consistentes abordagens concepcionais, em compasso biográfico/confessional, com artesanal direcionamento de Flávio Marinho, fazendo com que sua envolvente textualidade, alcançasse cativante investimento  estético / dramatúrgico.

De pleno domínio em seu dimensionamento cênico, na conexa unidade interpretativa da expressão vocal à corporeidade gestual, resultando, enfim, numa carismática performance deste grande ator de ontem, de hoje e de sempre que é Othon Bastos...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo

 

Eu Não Me Entrego Não está em cartaz no Teatro Vannucci/Shopping  da Gávea, Sexta às 20h; sábado às 20h30m; domingo, às 20h, até o dia 28 de Julho.

18º PRÊMIO APTR - OS VENCEDORES 2023

Brás Cubas. Armazém Companhia de Teatro. Paula de Moraes/Direção. Setembro/2023. Foto/Mauro Kury.

 

18º PRÊMIO APTR - OS VENCEDORES 2023

 

Em noite super concorrida, com apresentações musicais e  de homenagens a referenciais nomes do teatro carioca, sob acurada direção artística do Presidente da APTR – Eduardo Barata, aconteceu a noite de entrega  do 18º PRÊMIO APTR - OS VENCEDORES 2023, marcando a data de 1º de Julho como a da simbólica reinauguração de um dos mais importantes e tradicionais palcos da cidade do Rio de Janeiro – o Teatro Carlos Gomes.

 

AUTOR

 

Gustavo Gasparani (Julius Caesar - Vidas Paralelas)

 

DIREÇÃO

 

Paulo de Moraes (Brás Cubas)

 

CENOGRAFIA

 

Ana Teixeira e Stephane Brodt (Furacão)

 

FIGURINO

 

Karen Brusttolin (A Aforista)

 

ILUMINAÇÃO

 

Vilmar Olos (Como Posso Não Ser Montgomery Clift)

 

ATOR EM PAPEL PROTAGONISTA

 

Clayton Nascimento (Macacos)

 

ATRIZ EM PAPEL PROTAGONISTA

 

Ana Beatriz Nogueira (Sra. Klein)

 

ATOR EM PAPEL COADJUVANTE

 

Isio Guelman (Julius Caesar- Vidas Paralelas)

 

ATRIZ EM PAPEL COADJUVANTE

 

Carol Garcia (Kafka e a Boneca Viajante)

 

MÚSICA

 

Stephane Brodt (Furacão)

 

DIREÇÃO DE MOVIMENTO

 

Suely Guerra (Beettlejuice)

Paulo Mantuano (Restos na Escuridão)

 

ESPETÁCULO

 

Brás Cubas

 

JOVEM TALENTO

 

Elenco e equipe criativa de "Se Essa Lua Fosse Minha"

 

A Comissão Julgadora que escolheu os indicados e os vencedores do Prêmio APTR 2023 foi composta por Beatriz Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Tania Brandão e Wagner Corrêa.  As peças com maior número de prêmios foram Brás Cubas, de Paulo de Moraes e Furacão, de Ana Teixeira e Stephane Brodt.


Furacão. Ana Teixeira e Stephane Brodt/Direção Concepcional. Agosto/2023. Foto/Sabrina Paz.

ENTRE A PELE E A ALMA /FOCUS CIA DE DANÇA : NA DECIFRAÇÃO COREOGRÁFICA DO ENIGMÁTICO UNIVERSO DE BOSCH


Entre a Pele e a Alma. Focus Cia de Dança. Alex Neoral/Coreografia. Junho/2024. Fotos/Léo Aversa.


Há mais de meio milênio a criação artística do holandês Hyeronymus Bosch vem desafiando pelas suas intrigantes criações pictóricas, numa representação de cenas ora bizarras, ora plenas de lascividade, na passagem entre a era medieval e o renascimento.  

E não é por mero acaso que seu tríptico - O Jardim das Delícias - tornou-se, assim, a maior atração do Museu do Prado (Madrid), seja para espectadores conservadores ou mentes mais libertárias, imergindo todos no provocante  fascínio sagrado e profano de sua proposta plástica e temática.

Caso do coreógrafo Alex Neoral quando, sob a pulsão presencial expressiva desta emblemática pintura, decidiu que ela seria o signo conceitual e propulsor de sua próxima concepção inventiva para a Focus Cia de Dança, titulando a obra, muito a propósito, de Entre o Corpo e a Alma.

Não reproduzindo meramente o impacto causado pelo painel central, o Jardim das Delícias, ladeado por dois outros mostrando o Inferno e o Paraíso. Mas procurando reinterpretá-los à luz de um olhar visionário que sugestionasse, através de uma visceral performance dos nove integrantes da Cia, sua permanente conexão com os avanços coreográficos da contemporaneidade.

Onde um revelador design cenográfico (Natália Lana), acentuado por potenciais efeitos luminares (Anderson Ratto), priorizando tecidos aquarelados fracionados em tiras frontais móveis, serve às entradas e saídas de elenco numa visualidade que induziria à decifração dos mistérios espirituais e eróticos, entre o céu e a terra, o inferno e o paraíso.   

Entre a Pele e a Alma. Focus Cia de Dança. Alex Neoral/Coreografia. Junho/2024. Fotos/Léo Aversa.

Em coesiva atuação de uma convicta corporeidade dançante no uso de várias peças indumentárias que, em suas franjas ou por brilhos resplandecentes, remetem a figurinos de shows de Ney Matogrosso. Cuja trajetória transgressiva, como cantor performático, torna-se, aqui, um elo metafórico com a luxuriosa figuração dos personagens de Bosch.

Não só através dos caractéres de um sensualizado comportamental cênico/coreográfico, com sutis tons acrobáticos dos bailarinos, como pela envolvência de uma trilha autoral inédita.  Poética e instrumental (Paula Raia e Sacha Amback), ora recitativa, numa voz atoral de Lucinha Lins, ou cantada por Ney Matogrosso, sob instintiva remissão ao diferencial sotaque que o celebrizou.

Na concepção do enredo que, sobretudo, levou Alex Neoral a se empenhar no entorno desta sua mais recente criação coreográfica, há a incidência afetiva de alguns fatores que marcaram sua ascensão como um dos nomes mais referenciais da dança em moldes brasileiros. A primeira é o apelo carismático que, desde sua infancia, foi exercido pelas imagens de um Ney Matogrosso soltando-se, segundo afirmou,  no seu espontâneo jeito rebolativo, em exibições televisivas.

Completada por uma progressiva carreira como bailarino, coreógrafo, criador e diretor da Focus Cia que, agora, está alcançando três décadas, sem esquecer que ele foi, sequencialmente, se notabilizando por uma singular linguagem estética / coreográfica.

Além de transitar pela brasilidade musical/gestual de suas criações que levaram-no a ser um dos mais solicitados diretores de comissões de frente das escolas de samba cariocas. Fazendo, neste atual espetáculo, um conexo tributo alegórico à festa popular das alegrias “pagãs” com o Jardim das Delícias Terrenas.

Uma dinâmica energizada sendo imprimida por ele à corporeidade psicofísica dos exponenciais bailarinos neste ritual celebrativo do prazer dos sentidos, livre da culpa do pecado e longe de uma falsa moralidade apregoada, cada vez mais, pelos fanatismos religiosos. Sabendo, assumidamente, como vivenciar e conciliar o movimento direcionado ao encontro, sem preconceitos, da pureza e da sexualidade, num mundo paradisíaco “Entre a Pele e a Alma”.   

Ecoando em processo reflexivo-especular nos líricos versos de uma das canções de Paula Raia, contextualizando a voz luminosa de Ney Matogrosso à magia da pintura de Bosch :

Num gramado infinito / De Lagos azuis / Morangos gigantes / Bichos homens nus / Paraíso invertido / Metade de mim / Frutos proibidos / Delicioso jardim / Todos esculpiam / O pecado com as mãos / A luxúria lasciva e o perdão...”  


                                              Wagner Corrêa de Araújo         



Entre a Pele e a Alma/Focus Cia de Dança estreou no Theatro Municipal/RJ, de sexta 28/06 a domingo, 30 / julho.     

AMAZÔNIA / GRUPO DE DANÇA DC : SOB A SURPRESA DA VOLTA AOS PALCOS DE UMA MEMÓRAVEL CIA CARIOCA

AmazôniA/Grupo de Dança DC. João Wlamir/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Wagner Brum.

 

No final dos anos 80 um grupo de bailarinos solistas do Theatro Municipal teve a idéia de criar uma Cia de dança voltada para uma linguagem contemporânea conectada à sólida base clássica de seus integrantes. Com o diferencial de sua proposta começando já na própria denominação Grupo de Dança DCDissídio Coletivo, com um subliminar significado estético-social.

A partir de 1987, desde a sua estruturação tendo como mentor concepcional/coreográfico o conceituado bailarino João Wlamir, o Grupo DC desenvolveu uma vitoriosa trajetória em inúmeras turnês brasileiras que se estenderam a apresentações em palcos e festivais internacionais.

Sempre com o aplauso da crítica e o sucesso de público, mais a participação, como convidados em alguns espetáculos, de nomes solistas fundamentais da dança clássica em moldes nacionais, entre outros, Ana Botafogo, Nora Esteves, Cecília Kerche, Auréa Hammerli, Francisco Timbó, Paulo Rodrigues.

Desenvolvendo um repertório original que incluía incursões de sotaque neoclássico, releituras de obras contemporâneas e a priorização de temáticas plenas de brasilidade, em criações de grande força como A.M.O.R, Rio 24 Horas, 16 Minutos Depois, esta última inspirada no Bolero de Ravel, para terminar esta sua luminosa viagem pelos caminhos coreográficos nacionalistas com Cores do Brasil, em 2014.


AmazôniA/Grupo de Dança DC. João Wlamir/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Wagner Brum.


E, agora, ao completar dez anos de ausência, na volta à cena com a obra inédita AmazôniA, numa tríplice parceria criativa incluindo, além do próprio João Wlamir, Jaime Bernardes e Mônica Barbosa, com bravura e ousadia para enfrentar o desafio de tempos tão difíceis para captação de patrocínios, especialmente para as artes cênicas.

Num valioso empenho pela descoberta de talentos emergentes para integrarem, inicialmente, o novo staff da DC após uma década de sentido interregno. Todos os oito bailarinos escolhidos, criteriosamente, em processo seletivo, seguindo-se um extensivo período de preparação e ensaios, desde o inicio de 2024.

Desta vez, para tornar visível, cênica e gestualmente, uma imersão na ambiência mágica da AmazôniA resignificada coreograficamente, como emblemático signo pulmonar do mundo, na vastidão de seu verde florestal e na potencialidade de maior reserva ecológica do planeta Terra.

Onde a paisagem cenográfica (Orlando Sérgio) tem um belo alcance na abstrata representação plástica frontal de sua vegetação, ampliando-se na habitual expressividade imprimida pelos efeitos luminares de Paulo César Medeiros. Incidindo sobre a funcional tipicidade da indumentária (João Paulo Bertini), com tons indigenistas, traços de folclorismo nortista e artesania popular.

Havendo também a prevalência de sonoridades percussivas na maioria das composições da trilha (Branco Ferreira), desde  o ritualismo afro-indigenista, acentuado pelas intervenções de um orixá,  ao regionalismo musical, com seu referencial de frases dos gêneros carimbó, sertanejo e forró. Além das citações de temas de Bethania, Chico Science e até do Sepultura.

Os nove bailarinos, a maioria se destacando na fluidez de sua corporeidade dançante, resultado natural de um elenco recém-formado, sob as exigências maiores ou menores de certos quadros. Enquanto alguns demonstram ainda certa insegurança em suas contrações performáticas, outros são mais incisivos em sua dramaturgia da fisicalidade.

O convicto comando concepcional da obra sem jamais perder a singularidade da proposta de um vocabulário do movimento. Figurando situações sócio-ambientais com personagens que remetem, tanto aos povos originários como aos atuais segmentos populacionais, incluindo da diversidade sexual à exploração insensata da própria floresta.

Onde a súbita mudança de compasso com a entrada, no epílogo, das energizadas interveniências do minimalismo musical de Philip Glass, provocam um angustiado grito de alerta, palco/plateia, e de denúncia global para que não se deixe perder, em carater definitivo, a urgente preservação da poesia e da vida daquele Paraíso na Terra ...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


AmazôniA/Grupo de Dança DC está em cartaz no Teatro Prio/Gávea, em curta temporada, de quinta a sábado, 20h; domingo, às 19h, até domingo 30/06.
       

MOMIX/ALICE : MULTI-ESPETÁCULO CÊNICO CONECTA DANÇA E ACROBACIA SOB EFEITOS PSICODÉLICOS

Alice/Momix. Moses Pendleton/Direção Coreográfica / Concepcional. Junho/2024. Fotos/ Sharen Bradford.


Na proximidade de seu meio século, o grupo Momix volta aos palcos brasileiros com sua mais nova criação - Alice -, estreada em 2018, sendo inspirada no popular livro (Alice in Wonderland) do inglês, poeta e escritor, Lewis Carrol, século XIX, e nas psicodélicas impressões plástico-musicais da artista americana, anos 60/70, Grace Slick, com suas pinturas  da série White Rabbit.

Sob o ideário de Moses Pendleton, diretor e coreógrafo de uma das mais reconhecidas companhias da dança contemporânea mundial que, a partir de 1981, imprimiu uma inventiva transmutação nos processos investigativos da concepção no entorno de um multi-espetáculo cênico. 

Capaz, assim, de reunir dança, coreografia, acrobacia e efeitos cinético-visuais, num experimento artístico múltiplo. Ao provocar viagens pelos espaços siderais da mente, com suas alucinantes conexões de sonoridades e revolucionárias visões cênico-gestuais, convergindo numa obra de arte total, conectada com os avanços tecnológicos da contemporaneidade.

Embora este dimensionamento estético não consiga, por vezes, escapar de uma fria tecnicidade que prejudica a emoção pura da dança pela dança, quando a imanente expressividade da gestualidade corporal pode chegar a ser absorvida pelo risco da prevalência de um design de aboluto domínio digital.  


Alice/Momix. Moses Pendleton/Direção Coreográfica/Concepcional. Junho/2024. Fotos/Sharen Bradford

Em Alice, ao contrário de outras criações do Momix, onde havia sempre uma coletânea de peças independentes, mesmo que tivessem uma certa conexão temática, há a preocupação de se estabelecer uma narrativa  fabular unitária, tendo como substrato as aventuras daquele personagem Alice no País das Maravilhas.

Na especificidade de um diário de viagem que conserva o habitual formato fragmentário do Momix, mas sempre priorizando os relatos fantasiosos com a intervenção dos caracteres que marcam figuras típicas como o Chapeleiro Maluco, as Rainhas de Copas, de Espadas e de Paus, além do Coelho Branco.

Este último desdobrando-se em inúmeros coelhos,  saindo de suas tocas sugestionadas por baldes, baseando-se nas  figurações plásticas de Grace Slick que se estendem a outros animais como um Gato, uma Lagarta Azul, uma Aranha Branca Gigante, enumerando-se, aqui, apenas parte deles.

Sem esquecer das exóticas representações de bebês através de uma facial máscara fotográfica, desproporcional ao corpo dos bailarinos, revelando inusitadas expressões irônicas de riso e de choro. Ou por intermédio de figuras surrealistas resultantes de atrevidos contorcionismos da corporeidade acrobática dos intérpretes.

Num cenografia com projeção de paisagens marítimas ou florestais integrando-se à fluente fisicalidade da performance dos bailarinos, seja através das poéticas alusões de rosas vermelhas suspensas no ar ou do envolvente jogo de espelhos translúcidos que criam planos transespaciais.

Com os exponenciais efeitos causados por figurinos (Phoebe Katzin) aquarelados com predominância de tons rubros e negros que elevam as Alices do solo ao topo da caixa cênica. Tudo sob efeitos luminares (Michael Korsch) de um psicodelismo hipnotizante e que se coaduna com um potencializado videografismo.

A trilha sonora pontuada por toques percussivos, embora soe com um cadenciamento rítmico reiterativo, é estruturada em 22 temas, com idas e voltas, equivalente ao número de quadros. Incluindo referências musicais diversas, passando pelo lirismo da abertura à explosão pop-roqueira do final, depois de acordes meditativos de um réquiem e de uma melodia indiana.

Uma emblemática simbologia abre e termina o espetáculo quando, segundo as indicações de Moses Pendleton,  o livro de Alice deve ser lido por ela de cabeça para baixo ao convocar dançarinos e espectadores para uma delirante viagem de sonhos, sinalizando, na sua releitura em posição normal, a proximidade do epílogo...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo


Alice/Momix depois de sua apresentação no Qualistage/RJ, dias 22 e 23, segue para Belo Horizonte e São Paulo, nos próximos  finais de semana de Junho/2024.

PRIMA FACIE : O INSTIGANTE DESAFIO DE UMA ADVOGADA AO ARRAIGADO MACHISMO DO SISTEMA JURÍDICO

 

Prima Facie. Suzie Miller/Dramaturgia. Yara de Novaes/Direção Concepcional. Débora Falabella/Atuação. Junho/2024. Fotos/Annelize Tozetto.


A partir de sua simbólica  titulação inspirada em clássico termo jurídico – Prima Facie – a peça faz análise instigante dos trâmites contraditórios que envolvem a atuação de uma advogada de causas criminalistas diante de um sistema jurídico, na maioria das vezes machista e patriarcalista, quando o defensor ou, especialmente, a vítima é uma mulher. 

A tradução literal da expressão latina “Prima Facie” é secularmente utilizada com o significado de “à primeira vista” para exemplificar, assim, uma situação judicial em que a acusação ou a defesa tem validade enquanto não prevalecer prova em contrário.

Sob o original ideário dramatúrgico de Suzie MiIler, de conceituda trajetória anterior como advogada de defesa, seguida de sucesso absoluto na Broadway e no West End londrino, além da recente versão cinematográfica, com sua peça Prima Facie. E, agora, em palcos brasileiros, na parceria luminosa de duas personalidades femininas de nosso teatro - a diretora Yara de Novaes e a atriz Débora Falabella. 

Aqui, a jovem e visionária advogada Tessa Engler (Débora Falabella) em protagonismo monologal fala de sua ascendente trajetória jurídica numa celebrada universidade onde se destaca entre seus colegas de classe média alta. Ela que vinha de origem proletária onde a mãe lutava por seu sustento e do impulsivo irmão, sem acreditar que a filha pudesse alcançar êxito em suas pretensões jurídicas naquele tipo de ambiente privilegiado.


Prima Facie. Alexandre Tenório/Tradução. Yara de Novaes/Direção. Débora Falabella/Atuação. Junho/2024. Fotos/Annelise Tozzeto.

Atravessando a narrativa que começa desde os tempos estudantis de Direito ao despontar de uma carreira que, graças ao empenho de seu talento, lhe proporciona vitórias sequenciais nas causas criminalistas. Principalmente em processos voltados para casos de violência sexual como estupro, assumindo, prioritariamente, a defesa das vítimas femininas, mas por vezes, também o lado masculino quando este se julga injustamente acusado.

Até que numa reviravolta, ao iniciar  relacionamento com um daqueles colegas de escritório de classe alta, sente que foi violada sexualmente sem consentimento, entrando então com queixa crime por estupro contra o mesmo. O que lhe rende conturbado processo que tem tudo para ser desfavorável a ela, num tribunal composto apenas por homens.

Sentindo-se cada vez mais coagida, tem decepção traumatizante sustentada em profunda descrença num sistema que apregoa, perante a lei, a justiça é igual para todos, onde, intimidada, acaba dando impactante testemunho de revolta, no desalento desta amarga conclusão. 

Acreditando de que não é bem assim que acontece naquele tão insensato parâmetro de certos julgamentos marcados pelo preconceito seletivo, havendo muito a mudar em relação aos menos favorecidos do status social, não só para as mulheres, mas estendendo-se, ainda, aos de opção sexual diferenciada, aos negros, aos imigrantes e aos que portem deficiências mentais.

Em performance de apelo comovente, uma carismática Débora Falabella hipnotiza a plateia, entre o riso e o drama, desde suas primeiras aparições num cenário móvel (André Cortez) que sugestiona, em processo metafórico,  elementos de um tribunal enquanto vai se transmutando na sua adequação a ambiências diversas da narrativa dramatúrgica.

O que ocorre também com seu figurino (Fábio Namatame) que se transforma, entre o cerimonial e o despojado, no desenrolar das cenas, sob assumidos efeitos de luzes vazadas (Wagner Antônio) e ocasionais intervenções sonoro/musicais (Morris) que enfatizam uma vigorosa psicofisicalidade da atriz.

Culminando tudo no pleno domínio de Yara de Novaes com sua gramática cênica fluente e que irradia a transcedência da denúncia de tema mais que necessário em reflexivo contraponto crítico de um teatro corajoso e revelador, conectado na contemporaneidade.

Em oportuno entremeio das vergonhosas propostas de parte significativa e deplorável de uma bancada legislativa federal, com sua postura misógina de despudorada sustentação fundamentalista num falso moralismo, sendo capaz, afinal, de preferir privilegiar os estrupadores em detrimento de optar por suas vítimas... 

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo


Prima Facie está em cartaz no Teatro Adolfo Bloch/Glória, de quinta a sábado, às    20h; domingo, às 18h. Até 30/06 de 2024.                             

 

NORMA : SOB UM SENSORIAL COMPASSO MELODRAMÁTICO, O DESAFIO DE PAIXÕES CONTRADITÓRIAS

Norma. Guilherme Piva/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Gisela Schlogel/Léo Aversa.


O êxito ascendente de duas décadas fez de Norma uma peça, cujo assumido apelo melodramático foi capaz de transformá-la tanto num sucesso comercial, como numa qualitativa criação da nova dramaturgia brasileira, desde sua estréia  tendo, então, como protagonistas originais, Ana Lúcia Torre e Eduardo Moscovis. 

No seu ideário dúplice reunindo dois experientes nomes ligados ao universo da televisão, os roteiristas Dora Castellar e Tônio Carvalho, este último atuando como seu primeiro diretor, a partir de uma narrativa que tem absoluto domínio dos ingredientes mágicos, tanto de uma novela como de uma peça teatral.

Sabendo como manipular bem a conexão de elementos ficcionais e realistas desta história sinalizada pelo acaso do destino que atrai por seus fatores simbológicos. De um lado não escondendo uma trama que pode soar quase como quimérica, mas por outro revelando, sem restrições, uma situação que até poderia acontecer com qualquer um de nós.

Afinal, vivemos uma contemporaneidade política conflituada que, volta e meia, contrapõe seus avanços comportamentais e jurídicos com posturas adversas e retrógadas, o que estamos testemunhando, exatamente agora, em inimagináveis e absurdas decisões legislativas sobre o aborto, o porte das drogas, a delação premiada, tal como se estivéssemos sob a égide de uma teocracia, seja islâmica ou cristã.

Referenciada também na pressão sofrida por aqueles que tem identificação por uma sexualidade diferencial e, ainda, da arraigada misoginia que coloca a mulher em segundo plano no âmbito das relações domiciliares e sociais.

Extensivo ao desprezível preconceito machista quanto a quaisquer tentativas, de prevalência do poder decisório feminino, especialmente pelo caso de uma mulher na terceira idade ao demonstrar afeto amoroso por um jovem declaradamente gay, mesmo que possa ser esta a condição  oculta de seu filho.


Norma. Dora Castellar/Tonio Carvalho/Dramaturgia. Nivea Maria e Rainer Cadete/Elenco. Maio/2024.  

Aqui Norma (Nivea Maria) ao alugar um apartamento recebe a visita súbita de seu último morador, o jovem e galante Renato (Rainer Cadete) que aparece para informar à inquilina seu novo número telefônico fixo evitando, assim, chamadas desconhecidas para ela.     

Desenvolvendo-se, a partir deste inusitado corpo a corpo de desabafos face a face, uma série de questionadoras revelações pessoais dos dois personagens sobre escolhas de vida e circunstâncias psicofísicas intrigantes que provocam a ansiosa busca de decifração pelo mais acomodado dos espectadores.

Os dois intérpretes imprimindo com plena entrega o desalento de seus personagens, tentando desvendar o enigma colocado entre um e outro, mesmo que isto acabe ferindo as conservadoras e mais íntimas convições da velha senhora (Nivea Maria) como os sentimentos libertários que o jovem (Rainer Cadete) expõe sem eiras nem beiras.

Onde um minimalista e assertivo quadro cenográfico  (Ronald Teixeira) sob os discricionários efeitos luminares (Ana Luiz de Simoni) e os funcionais figurinos (Bia Salgado) dia a dia são potencializados esteticamente pela alusiva citação musical instantânea de um popular tema de antigo disco LP de Gal Costa.

Em que a cativante performance na irrepreensível maturidade de Nivea Maria expressa a angústia por um filho perdido pela opção de sua trajetória existencial, enquanto Rainer Cadete imprime com indisfarçável e tocante expressão externa seus transes humanos por se afirmar gay, com sangue e alma.

A acurada direção de Guilherme Piva fazendo irradiar na dupla de atores, sob uma linhagem de primado do sensorial, o alcance de coesiva fluência emotiva, em inventário dramático capaz de envolver carismaticamente palco e plateia  dando, sobretudo, um recado reflexivo de solidariedade e de vida...  

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


Norma está em cartaz no Teatro das Artes/Shopping da Gávea, sextas e sábados, às 20h; domingo, às 19h. Até 30 de junho.

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