NORMA : SOB UM SENSORIAL COMPASSO MELODRAMÁTICO, O DESAFIO DE PAIXÕES CONTRADITÓRIAS

Norma. Guilherme Piva/Direção Concepcional. Junho/2024. Fotos/Gisela Schlogel/Léo Aversa.


O êxito ascendente de duas décadas fez de Norma uma peça, cujo assumido apelo melodramático foi capaz de transformá-la tanto num sucesso comercial, como numa qualitativa criação da nova dramaturgia brasileira, desde sua estréia  tendo, então, como protagonistas originais, Ana Lúcia Torre e Eduardo Moscovis. 

No seu ideário dúplice reunindo dois experientes nomes ligados ao universo da televisão, os roteiristas Dora Castellar e Tônio Carvalho, este último atuando como seu primeiro diretor, a partir de uma narrativa que tem absoluto domínio dos ingredientes mágicos, tanto de uma novela como de uma peça teatral.

Sabendo como manipular bem a conexão de elementos ficcionais e realistas desta história sinalizada pelo acaso do destino que atrai por seus fatores simbológicos. De um lado não escondendo uma trama que pode soar quase como quimérica, mas por outro revelando, sem restrições, uma situação que até poderia acontecer com qualquer um de nós.

Afinal, vivemos uma contemporaneidade política conflituada que, volta e meia, contrapõe seus avanços comportamentais e jurídicos com posturas adversas e retrógadas, o que estamos testemunhando, exatamente agora, em inimagináveis e absurdas decisões legislativas sobre o aborto, o porte das drogas, a delação premiada, tal como se estivéssemos sob a égide de uma teocracia, seja islâmica ou cristã.

Referenciada também na pressão sofrida por aqueles que tem identificação por uma sexualidade diferencial e, ainda, da arraigada misoginia que coloca a mulher em segundo plano no âmbito das relações domiciliares e sociais.

Extensivo ao desprezível preconceito machista quanto a quaisquer tentativas, de prevalência do poder decisório feminino, especialmente pelo caso de uma mulher na terceira idade ao demonstrar afeto amoroso por um jovem declaradamente gay, mesmo que possa ser esta a condição  oculta de seu filho.


Norma. Dora Castellar/Tonio Carvalho/Dramaturgia. Nivea Maria e Rainer Cadete/Elenco. Maio/2024.  

Aqui Norma (Nivea Maria) ao alugar um apartamento recebe a visita súbita de seu último morador, o jovem e galante Renato (Rainer Cadete) que aparece para informar à inquilina seu novo número telefônico fixo evitando, assim, chamadas desconhecidas para ela.     

Desenvolvendo-se, a partir deste inusitado corpo a corpo de desabafos face a face, uma série de questionadoras revelações pessoais dos dois personagens sobre escolhas de vida e circunstâncias psicofísicas intrigantes que provocam a ansiosa busca de decifração pelo mais acomodado dos espectadores.

Os dois intérpretes imprimindo com plena entrega o desalento de seus personagens, tentando desvendar o enigma colocado entre um e outro, mesmo que isto acabe ferindo as conservadoras e mais íntimas convições da velha senhora (Nivea Maria) como os sentimentos libertários que o jovem (Rainer Cadete) expõe sem eiras nem beiras.

Onde um minimalista e assertivo quadro cenográfico  (Ronald Teixeira) sob os discricionários efeitos luminares (Ana Luiz de Simoni) e os funcionais figurinos (Bia Salgado) dia a dia são potencializados esteticamente pela alusiva citação musical instantânea de um popular tema de antigo disco LP de Gal Costa.

Em que a cativante performance na irrepreensível maturidade de Nivea Maria expressa a angústia por um filho perdido pela opção de sua trajetória existencial, enquanto Rainer Cadete imprime com indisfarçável e tocante expressão externa seus transes humanos por se afirmar gay, com sangue e alma.

A acurada direção de Guilherme Piva fazendo irradiar na dupla de atores, sob uma linhagem de primado do sensorial, o alcance de coesiva fluência emotiva, em inventário dramático capaz de envolver carismaticamente palco e plateia  dando, sobretudo, um recado reflexivo de solidariedade e de vida...  

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


Norma está em cartaz no Teatro das Artes/Shopping da Gávea, sextas e sábados, às 20h; domingo, às 19h. Até 30 de junho.

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