Deserto. Luiz Felipe Reis/Dramaturgia/Direção Concepcional. Maio/2024. Fotos/Renato Mangolin. |
No seu meio século de trajetória existencial (1953/2003) o
escritor chileno Roberto Bolaño acabou se
tornando um nome icônico da criação literária latino-americana, com sua
inconformista visão da desertificação que leva ao silenciamento da essência
humanitária.
Num universo cada vez mais dominado pela obsessão do lucro capitalista, pela prevalência de um interesseiro jogo político neoliberal e pela fria digitalização das relações sociais. E onde o seu engajar-se no ofício estético seria uma forma do escritor dialogar poeticamente com os enigmas do passado para tentar decifrar os abismos do tempo presente.
Por intermédio de um valioso legado ficcional e uma
insurgente postura contra os desmandos políticos que obrigaram Bolaño a ser um
cidadão do mundo, em transito no entremeio de três nacionalidades (Chile, México e
Espanha).
Sem deixar de lado o referencial de que pelo menos duas de
suas obras ficcionais chegaram a ser adaptadas aos palcos, inicialmente na
Catalunha, e a seguir através de seu apocalíptico romance 2666, publicado postmortem em 2004, numa instigante montagem de
cinco horas dirigida por Robert Falls em Chicago.
Quanto ao ideário damatúrgico /direcional de Luiz Felipe Reis com Deserto, peça inspirada em passagens da vida e da obra de Roberto Bolaños, trata-se de uma iniciativa inédita no Brasil e configura-se como mais um dos diferenciais experimentos teatrais da sua Cia Polifônica, numa convicta performance solo de Renato Livera.
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Deserto. Luiz Felipe Reis/Dramaturgia/Direção. Renato Livera/Ator. Maio/2024. Fotos/Renato Mangolin. |
Contando ainda com parcerias valiosas como a assistência de
Julia Lund, além de José Roberto Jardim na interlocução dramatúrgica. Com
intermediações de uma trilha de escrituras verbais/musicais de Pedro Sodré e do
próprio Luiz Felipe Reis.
Em meta proposta cenográfica dúplice (André Sanches e Débora
Cancio) em que a caixa cênica, sob sutis efeitos luminares (Alessandro
Boschini), é preenchida pelo sugestionamento da mesa de trabalho do escritor
com um gravador. Incluindo um microfone
móvel e uma tela frontal em projeções imagéticas de frases, sobrepostas à assombrada paisagem de um deserto ocultando corpos femininos violados.
Renato Livera imprimindo ao personagem, com perfil
autobiográfico, uma incisiva relação ora de observador ora de observado,
personificando em sua psicofisicalidade uma cativante representação do escritor
falando por seus escritos ficcionais ou por frases confessionais.
Deslocando a simbologia narrativa em irrepreensível expressão do
desalento de um ser acometido por uma doença hepática degenerativa, que o
levaria à terminalidade, no auge de seu processo de entrega à epopeia ficcional
de 2666,
diante do risco da perplexidade e do temor de não ver o resultado final.
Desde seu conceitual performático às intervenções
projecionais com belo uso subliminar de diferentes recursos técnicos como vozes
eletrônicas de um gravador às imagens captadas ao vivo por uma camera
cinematográfica.
Luiz Filipe Reis revelando outra vez maturidade artesanal
para viabilizar o equilíbrio de um texto introspectivo, entre a metaforização
ficcional e o realismo, como se fora uma conferência para o público-espectador, pelo alcance de absoluto domínio do espetáculo.
Resultado da busca investigativa de uma vigorosa textualidade
autoral que reune fragmentos, tanto da obra ficcional como oportunas citações reflexivas
de um pensamento político filosófico, sob recortes biográficos.
E que, sobretudo, aproximam Bolaño de uma emblemática geração de poetas
e artistas que souberam como fazer de sua missão criadora um tributo ético à
vida, diante do ascendente pesadelo de uma crise civilizatória e da iminente
ameaça de um incerto futuro...
Wagner Corrêa de Araújo
Deserto está em cartaz no Teatro do Futuros - Arte e Tecnologia, Flamengo/RJ, de quinta a domingo, às 20h. Até 23 de junho.
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