MARTINHO - CORAÇÃO DE REI : APOTEÓTICO TRIBUTO DO TEATRO MUSICAL A UM ÍCONE DO SAMBA

 


Martinho - Coração de Rei - O Musical. Miguel Falabella/Direção Concepcional. Helena Theodoro/Dramaturgia. Janeiro/2025. Erik Almeida/Fotos.


Abrindo a temporada carioca de teatro musical, depois do êxito nos palcos paulistas, chega ao Rio uma exemplar montagem entre os musicais brasileiros de 2024 : Martinho da Vila - Coração de Rei, priorizando um grande elenco negro, de jovens atores a conhecidos nomes e destacando quatro protagonistas titulares.

Em compasso de apoteose carnavalesca pela magia direcional de Miguel Falabella, com assistência e parceria de Iléa Ferraz, a partir de um dúplice ideário no entorno da valoração do legado cultural da afro-brasilidade, sob o artesanal roteiro dramatúrgico de Helena Theodoro e pela exponencial produção de Jô Santana.

Sem seguir à risca a tendência do musical biográfico brasileiro de se ater a uma sequencial cronologia, a textualidade de Helena Theodoro sabe como  se equilibrar bem na conexão de passagens existenciais, do despontar daquela irrestrita vocação musical ou do seu estágio no ofício de sargento do exército, ao definitivo reconhecimento como um dos maiores sambistas do país.

Ora alternando-se entre as canções apresentadas e uma meta narrativa que adiciona personagens espectrais, como o irônico anjo Noel Rosa evadido das plagas celestes, numa personificação diferencial por Dante Paccola. Encarnando aquele precursor musical que morreu extamente no ano anterior, 1937, ao do nascimento de Martinho, estabelecendo, assim, um liame simbólico entre o legado de dois baluartes históricos deste gênero, no bairro de Vila Isabel.


Martinho, Coração de Rei - O Musical. Miguel Falabella/Direção Concepcional. Jô Santana/Produção. Janeiro/2025. Erik Almeida/Fotos. 

Este metafórico dimensionamento dramatúrgico estende-se ao trio atoral (Renée Natan, Celso Luz e Fernando Leite) revezando como intérpretes simultâneos do protagonista mor Alan Rocha, unidos por uma só voz não apenas em registros cantados, mas também no entremeio de uma dialetação verbal abrangendo diferentes momentos da trajetória artística/existencial de Martinho da Vila.

E, indo mais longe nesse dimensionamento estético/musical, a própria dramaturga Helena Theodoro aparece em cena no segundo ato sugestionando um elo afetivo, cênico e performático, com sua oportuna presença física, vocal e musical, entre os integrantes do espetáculo e os espectadores. Incluídas, aqui, algumas citações orais no percurso do musical fazendo alusão nominal ao seu diretor Miguel Falabella. 

Além do convicto elenco de vinte atores-cantores atuando, em funcional  coesão tanto nas partes cantadas e faladas, nada deixa a desejar quanto a sua adequação energizada à envolvente direção de movimentos por Rafael Machado, sempre na cadência ritmada do samba.

E onde os efeitos luminares de Felipe Miranda ressaltam uma cenografia simples mas expressiva (Zezinho e Turibio Santos) que usa, de modo propício, um espaço frontal emoldurando um alegórico conjunto de atores com sua exuberante indumentária, pela maestria de Claudio Tovar. Que, aliada a um detalhado visagismo remete, não só a um design pictórico de elementos plásticos afro-brasileiros, sem deixar de evocar o imaginário brilho de um carro alegórico na passarela do samba.

Tudo ampliando-se no apurado grupo instrumental de sete músicos, sob o comando e arranjos de Josimar Carneiro, em repertório que inclui desde temas antológicos de Martinho, a algumas composições para referenciar personagens, entre outras, a da genitora de Martinho - Pra Mãe Teresa. Ou numa divertida transmutação do Martinho  da Vila sargento, em Jamelão, onde Alan Rocha, desta vez corporifica, ainda no compasso do samba, o celebrado mangueirense.   

Com um magnetismo performático absoluto Alan Rocha demonstra, em todas as suas facetas atorais, uma irreprimível similaridade identitária da voz ao gestual, surpreendendo e impressionando pela autencidade imersiva de sua representação. Do prólogo ritualístico, como um dos míticos Griôs da ancestralidade africana, à típica malemolência vocal no papel do apoteótico ídolo do samba.  

Embora no epílogo haja uma subliminar quebra da fluência dramatúrgica quando tudo se transforma, “devagar, devagarinho”, numa roda de samba, o musical mantém seu apelo carismático palco/plateia ao fazer todos cantarem e dançarem juntos numa eufórica e contagiante celebração. Afinal, como já dizia Dorival Caymmi, “quem não gosta do samba, bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé”...  

 

                                                   Wagner Corrêa de Araújo

 

Martinho, Coração de Rei - O Musical está em curta temporada no Teatro Riachuelo/Cinelândia, de quinta a sábado, 20h; domingo, às 17h,  até  o dia 23 de fevereiro.

ALDO BALDIN / UMA VIDA PELA MÚSICA : DIFERENCIAL TRIBUTO FÍLMICO A UM DOS MAIORES TENORES BRASILEIROS DE TODOS OS TEMPOS


Aldo Baldin - Uma Vida Pela Música. Um filme documentário de Yves Goulart. Dezembro/2024. Fotogramas/Divulgação.


Aldo Baldin, pela ascendência de imigrantes rurais italianos nasceu em Urussanga, cidade do interior catarinense, tendo uma instantânea carreira que o levou, da provinciana vida na roça, aos maiores palcos mundiais operísticos, com vitoriosa trajetória artística e existencial sob seus breves 49 anos.  

Considerado um dos mais solicitados tenores líricos para o repertório da ópera às grandes obras corais, especialmente barrocas, atuou sob a regência de nomes que incluiam de Karl Richter e Neville Merrimer a Herbert von Karajan, entre muitos outros, deixando um precioso legado, registrado em cerca de cem gravações.

E foi graças a um destes raros e felizes acasos do destino que um conterrâneo seu o cineasta Yves Goulart, radicado em Nova York, ao se deparar com foto da capa de um de seus discos, este com obras de Villa-Lobos, percebeu que era a igreja matriz de Urussanga estampada, em traços gráficos, ao lado de Aldo Baldin.

Incitado pela curiosidade, pois nunca imaginara que um tenor de sua terra natal tinha sido dos maiores do Brasil em termos universais, decidiu realizar uma alentada pesquisa no entorno do cantor lírico.  Sendo este o fator que acabou levando ao tema daquele seu próximo filme titulado, bem a propósito, como  Aldo Baldin - Uma Vida Pela Música. 


Aldo Baldin - Uma Vida Pela Música. Yves Goulart/Direção Concepcional. Aldo Baldin entre a soprano suiça Edith Mathis e o barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, icônicos intérpretes de A Criação, de  J. Haydn, por Sir Neville Marriner, 1981. Foto/Divulgação.

   

O que, em sua detalhista busca documental, levou Yves Goulart ao encontro das  origens ouvindo o núcleo de familiares e amigos, continuada nos parceiros da então ascendente trajetória artística. E qual não foi a sua mais absoluta surpresa ao descobrir que, pouco antes de sua súbita morte, por uma síncope cardíaca, Aldo Baldin havia gravado um longo autodepoimento, com a idéia de transformá-lo num livro.

Se por uma adversidade fatalista isto não pôde acontecer, este registro sonoro, acompanhado de vasto material iconográfico (fotos e imagens em video), acrescido de esclarecedoras entrevistas com nomes fundamentais à carreira do tenor, no Brasil e no exterior, serviria, então, como base para um diferencial doc filme.

No seu dimensionamento como um relato autobiográfico, recorrendo ao uso da própria voz do protagonista titular, direcionando o roteiro narrativo do cineasta para envolvente formato documental. “Ele começou a gravar um audio como premonição de nossa finitude”, afirmou na época um convicto Yves Goulart, diante do projeto que demorou cerca de uma quase década e meia.

Onde a sequencialidade do enredo é sugestionada com funcional suporte estético, em sensitiva intermediação imagética e pictórica, potencializada na trilha artesanalmente captada pela viúva de Aldo Baldin, a musicista Irene Flesch Baldin, através das citações de antológicos trechos de obras interpretadas pelo tenor mundo afora.

E se a opinião de tantas personalidades do meio musical brasileiro (de Isaac Karabtchevsky a Edino Krieger) e além fronteiras, contextualiza bem a importância de Aldo Baldin, o documentário tem seu aspecto didático nas inúmeras falas do tenor, sobre o alcance das diversas facetas interpretativas de uma tessitura de voz que se destacava tanto no Evangelista das Paixões de Bach, como em personagens operísticos.

Lembrando que tivemos o privilégio de vê-lo numa marcante montagem cênica de A Flauta Mágica, por Gianni Ratto em 1982, no TMRJ, com uma psicofisicalidade performática luminosa, como cantor/ator, no papel de Tamino.  Ele que, nos primórdios nos palcos de ópera, tinha sido relegado a papéis bufos, por não ter um physique du rôle ideal para mais galantes personificações. E ali atuando junto com Maria Lúcia Godoy, como Pamina, par amoroso de Tamino, e que esta explica, no filme, ressaltando o fascínio pelas  nuances da técnica vocal de Aldo Baldin. 

E foi, há exatos trinta anos, em janeiro de 1994, literalmente reiterando uma perceptível realidade, enfatizada num Brasil de tão frágil valoração quanto ao seu legado artístico, que aconteceu a melancólica, embora,  ao mesmo tempo subliminarmente irônica, declaração do tenor que inspiraria Yves Goulart. Numa pulsão de resgate memorial, com emblemático carisma, inserida, pelo texto verbalizado na voz do cantor, no prólogo deste tão belo e reflexivo filme nominado Aldo Baldin - Uma Vida Pela Música :

Hoje é dia 3 de janeiro de 1994. Eu estou fazendo esta fita para poder escrever um pequeno livro sobre Aldo Baldin, tenor brasileiro. Porque daqui duas gerações, seguramente, ninguém vai saber quem foi Aldo Baldin e para o Brasil seria uma pena”...     No dia seguinte foi encontrado morto debruçado ao piano sobre a partitura de um Lied de Schubert - An Die Musik (Uma ode à Música) - o que significa simbolicamente que até seus últimos suspiros foram sinalizados pela entrega total a uma vida pela música... 


                                          Wagner Corrêa de Araújo


Aldo Baldin - Uma Vida Pela Música, direção de Yves Goulart, recebeu diversos prêmios em mostras internacionais e está sendo apresentado em centros culturais  (no RJ, foi no CCBB ), enquanto aguarda seu lançamento no circuito cinematográfico.

RETROSPECTIVA COREOGRÁFICA 2024 : ENTRE O CLÁSSICO E O CONTEMPORÂNEO, A DANÇA VOLTA MAIS ENERGIZADA AOS PALCOS CARIOCAS


Cia de Dança Deborah Colker / Sagração. Deborah Colker/Direção Coreográfica/Concepcional. Março/2024. Flavio Colker/Fotos.


Numa inédita concepção cênica/coreográfica, a temporada foi aberta com a Sagração da Cia de Dança Deborah Colker, plena de uma brasilidade rítmica/dançante, na diferencial transmutação do primitivo universo dos aldeões russos segundo Stravinsky, em saga indigenista pelo olhar dos povos originários da terra brasileira.

Após completar dez anos de ausência, o Grupo de Dança DC voltou com uma obra inédita – AmazôniA, na funcional parceria estética e coreográfica de João Wlamir, Jaime Bernardes e Mônica Barbosa, com o propósito de resignificar, cênica e gestualmente, a ambiência mágica deste signo pulmonar do mundo sujeito, mesmo assim, aos maiores reveses.

Já o Grupo Corpo reapresentou Corpodiferente experimento que atua como um poema concretista, fundindo a sonoridade de palavras vocalizadas em jogo gestual entre pés e mãos. E Parabelo, numa abordagem do sertanismo e da fome nordestina, onde a resistência ao agreste é sinalizada por vigoroso movimento mecânico/robótico dos bailarinos.

A Márcio Cunha Dança Contemporânea retornou com o inédito Boca do Mundo, obra voltada conceitualmente às rodas de capoeira e dos terreiros do Candomblé numa demonstração de seu vigoroso processo criador, potencializado no contínuo fluxo de outras linguagens por seu idealizador, múltiplo artista plástico, performer atoral e bailarino.


Focus Cia de Dança/Entre a Pele
e a Alma. Alex Neoral/Coreografia. Junho/2024. Leo Aversa/Fotos.


Alex Neoral e sua Focus Cia de Dança figurou com Entre a Pele e a Alma, uma releitura cênico -coreográfica do tríptico pictórico de Hieronymus Bosch – Jardim das Delícias, apoiando-se na trilha autoral encomendada a Ney Matogrosso. Procurando questionar a simbologia sublime do painel pré-renascentista com um gestualismo erotizado de sotaque visionário. E quanto à recriação De Bach a Nirvana, sabendo como estabelecer um elo enunciador entre duas épocas, da dança à música, do sugestionamento etéreo do barroco à alegria féerica do rock, com reconhecidos músicos ao vivo, indo da catarse bachiana ao frenesi do grunge rock.

E é também numa trilha presencial roqueira que a Renato Vieira Cia de Dança, em ansiado retorno com  criação inédita, estabelece liames homoeróticos, sonoros e coreográficos, da idade medieval aos nossos dias em Gaveston & Eduardo. Uma criação contundente que, por meio de nossa análise crítica, com imagens em video, que foi postada em Paris, entusiasmou o coreógrafo/editor da revista danse.org - Patrick Kevin O'Hara por ter acompanhado de perto o inglês David Bintley, quando este foi pioneiro ao incursionar pelo mesmo tema, nos anos 90, para o Stuttgart Ballet.

O Balé do Theatro Municipal apresentou, inicialmente, um Lago dos Cisnes em clima ascendente para retomada de sua singular marca de única companhia clássica oficial do país, aqui, alcançando maior brilho com um top convidado - o bailarino Gustavo Carvalho. Encerrando sua temporada, com recordes de público, por intermédio da volta de O Quebra Nozes, sempre através do animador empenho de seu diretor Helio Bejani e do maitre Jorge Teixeira.

Mas foi por intermédio do conceituado coreógrafo uruguaio Ricardo Alfonso, que o BTM atingiu sua mais perfeita montagem de 2024, com La Fille Mal Gardée, que teve seus pontos altos na fidelidade à tradição com espaço para qualitativas atuações de solistas e do Corpo de Baile, sob envolvente teatralidade na performance de personagens ora romantizados, ora marcados por uma bem humorada pantomima. Valendo ainda destacar a retomada de Triple Bill, pelo criador brasileiro além fronteiras Ricardo Amarante, completando o retorno dúplice de Love Fear Loss e do Bolero, com sua personalista versão de Scheherazade, a partir de Fokine.


Balé do Theatro Municipal/La Fille Mal Gardée. Ricardo Alfonso/Concepção Coreográfica. Agosto/2024. Daniel Ebendinger/Fotos. 

Não podendo deixar de serem registrados os quatro espetáculos internacionais da Temporada de Dança Dell'Arte. A saber, a Cia Sankai Juku com seu minimalismo cenográfico ressaltando, por meio do gestualismo butoh, a transubstanciação físico-reflexiva da ancestralidade espiritual japonesa. E o grupo Momix em Alice - com dança, acrobacia e efeitos cinético-visuais, num multi-espetáculo cênico, com sotaque de musical da Broadway, inspirado no popular livro de Lewis Carrol.

Outra concepção multimídia trouxe de volta a David Parsons Dance reapresentando alguns de seus números antológicos, como o exponencial solo Caught, de 1982, ao lado de Nascimento, 1990, carismática homenagem a Milton, via alegórico alcance e música contagiante. Para finalizar com um dos espetáculos coreográficos mais extasiantes do ano Anna Karenina, pelo Eifman Ballet  (São Petersburgo).

De tamanha força emblemática, desde a ruptura dos parametros estéticos de uma típica cia russa, imprimindo-lhe cenas sensoriais que culminam na perfeição absoluta no uso paralelo do gestual clássico com ousada estética da dança contemporânea...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo

Renato Vieira Cia de Dança/Gaveston & Eduardo. Renato Vieira e Bruno Cezario/Direção Concepcional/Coreográfica. Agosto/2024. Robert Schwenk/Fotos.

RETROSPECTIVA TEATRAL 2024 : UM ANO REVELADOR DE DRAMATURGIAS SÓLIDAS SINTONIZADAS COM A PROBLEMÁTICA CONTEMPORÂNEA


Não Me Entrego Não. Flávio Marinho/Dramaturgia/Direção. Com Othon Bastos. Maio/2024. Beti Niemeyer/Foto.


Com ascendente recuperação da atividade teatral, a temporada 2024 teve seus grandes destaques nas peças de consistente teor reflexivo e intencionalismo crítico no entorno da nossa realidade política e social, sob ecos memorialistas de tempos difíceis. Como uma lembrança reflexiva à resistência entre o ontem e o hoje na passagem dos sessenta anos de um infame período de turbação da liberdade e dos direitos humanos mais as ameaças golpistas da recente (des) governança anterior.

A começar por Lady Tempestade, reunindo Silvia Gomez (dramaturgia), Andrea Beltrão (performance) e Yara de Novaes (direção) em tributo cênico aos desaparecidos ou aos mortos sem sepultura num compasso sartreano, sobre uma das mais tormentosas eras da história política brasileira. Além das peças - homenagem com dois ícones do teatro brasileiro entre os séculos XX e XXI – Othon Bastos e Renato Borghi.

Este último com O Que Nos Mantém Vivos?, em  dúplice referencial titular simbólico, incluindo ainda Não Me Entrego Não. Em que, na formatação biográfico-confessional, Flávio Marinho conecta sua envolvente textualidade autoral a um artesanal direcionamento para a carismática performance deste grande ator de ontem, de hoje e de sempre que é Othon Bastos.


A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. Leonardo Netto/Direção. Com Guida Vianna/Silvia Buarque de Holanda. Fevereiro/2024.Nil Canine/Foto.


Sem deixar de destacar, também, Let’s Play That ou Vamos Brincar Daquilo, monólogo em que Tuca Andrada, com irrestrita e ininterrupta pulsão de força energética-interpretativa, provoca espontâneo conceitual da frase síntese de uma época, com o apelo poético-libertário de Torquato Neto, “vai bicho desafinar o coro dos contentes”.

E é se inspirando em sinalizadora canção de Cazuza que Rogério Corrêa foi responsável pela mais mordaz tragicomédia de 2024 - Mostra a Tua Cara, revisitando sob riso inteligente, o reiterativo circuito pejorativo de dois presidentes eleitos, a partir do primeiro -  Collor - e ecoando no penúltimo deles auto denominado de "messias". Com quatro personagens folhetinescos, dimensionados com proposital exagero grotesco, irradiando comicidade para desentorpecer conscientizando o mais conservador dos espectadores, numa categórica direção de Isaac Bernat.

Partindo das transposições entre o texto literário e o palco, vamos encontrar duas exemplares versões teatrais, de um conhecido conto de Lygia Fagundes Telles ao romance premiado de um escritor estreante - Stenio Gardel. Na peça A Palavra Que Resta sob um exemplar uso das construções poético/verbais do autor cearense, por Daniel Herz e seus convictos Atores de Laura, transmutadas em luminoso sotaque de um quase manifesto contra o preconceito no que concerne à livre identificação da sexualidade.  

A original gramática cênica alcançada por Analu Prestes, em sua parceria concepcional com a diretora Silvia Monte, fez de Senhor Diretor um dos solos femininos mais tocantes do ano, sabendo como alcançar a completa coesão entre a palavra escrita e falada para contagiar o publico com o singular retrato de uma conservadora “senhorinha” sexagenária.

Outras incursões teatrais em temáticas protagonizadoras da condição feminina tiveram, de um lado, um diferencial estético na abordagem da obra da visionária artista plástica mineira Lygia Clark. Promovendo na peça Lygia, de Maria Clara Mattos, um sensorial convívio especular entre a obra escultórica/manipulável, o espectador e sua exponencial intérprete (Carolyna Aguiar), no comando inventivo de Bel Kutner.  

Além da sempre atenta parceria das atrizes Débora Falabela e Yara de Novaes, as mais recentes sendo Prima Facie e Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante, ambas enfatizando a masculinidade tóxica pelos abusos sexuais, do estupro à violência homicida. Enquanto Daniela Pereira de Carvalho dá um recado contundente numa das mais viscerais análises dos conflitos e da rejeiçao familiar ao relacionamento afetivo entre duas mulheres, em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, com irreprimível direção (Leonardo Netto) e extasíaca interpretação de Guida Vianna e Silvia Buarque de Holanda. 

(Não Me Entrego Não reestreia breve no Teatro Vannucci. Lady Tempestade e Senhor Diretor voltam ao cartaz no Teatro Poeira, em 2025, sendo todas absolutamente imperdíveis, o que se estende, sem qualquer exceção, às 10 peças aqui citadas). 

                                                                                                                 

                                            Wagner Corrêa de Araújo

                                             

Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia.Yara de Novaes/ Direção Concepcional. Com Andrea Beltrão. Janeiro 2024. Nana Moraes/Felipe Ovelha/Fotos.

O QUEBRA-NOZES / BALÉ DO THEATRO MUNICIPAL : SOB MIDIÁTICA PROPOSTA CÊNICA, ENCERRANDO A TEMPORADA CARIOCA DE DANÇA 2024

O Quebra-Nozes/ BTM. Helio Bejani/Jorge Teixeira/ Direção Concepcional/Coreográfica. Dezembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos.


Ninguém jamais poderia imaginar que aquela instável estreia de Quebra-Nozes em São Petersburgo, dezembro de 1892, acabaria transformando o terceiro dos balés de Tchaikovsky, num dos espetáculos favoritos das famílias, especialmente das crianças, com sua conexão temática do encantamento e da magia de uma noite de Natal.

Embora o seu enredo, inspirado num conto gótico de E. T. A. Hoffman, de 1816, sugestionasse inicialmente um clima soturno através das malévolas artimanhas do Rei dos Camundongos, foi a adaptação definitiva por Alexandre Dumas, pai, que transmutou tudo isso numa fábula entremeada por um delirante clima de aventura, mistério e fantasia.

A fascinação exercida por este balé há mais de um século é irrestrita e, além da versão  ligada rigorosamente à sua original concepção coreográfica por Marius Petipa, com inúmeras releituras modernas menos presas à tradição. Como foi o caso da introdução de brinquedos eletrônicos na coreografia de Mark Morris ou de sua partitura sendo executada jazzisticamente, numa subvertida titulação de “Quebra Nozes do Harlem”.

Basicamente, o enredo do emblemático balé mostra uma festa de Natal onde a menina Clara ganha como presente de seu tio Drosselmeyer, um boneco quebra-nozes e, ao adormecer, tem um sonho que a conduz magicamente aos reinos da neve e dos doces, depois dos sustos ao se deparar com uma batalha entre soldadinhos de brinquedo e de raivosas ratazanas.


O Quebra-Nozes/BTM. Helio Bejani e Jorge Teixeira/Direção Concepcional Coreográfica. Javier Logioia Orbe/Regência OSTM. Dezembro/2024. Daniel Ebendinger/Fotos. 
    

Narrativa que acabou transformando O Quebra-Nozes no espetáculo coreográfico mais concorrido, com suas habituais temporadas no mês em que se comemora o evento religioso/social. Por sua atração exercida sobre muitas crianças sendo, quase sempre, o primeiro contato que estas tem com uma performance completa de balé clássico e de uma orquestra sinfônica.

Ausente do palco do Theatro Municipal desde 2016, O Quebra-Nozes volta sob um dúplice comando concepcional e coreográfico (Helio Bejani e  Jorge Teixeira), partindo do original de Marius Petipa. Em montagem com uma maior inclusão dos alunos iniciantes e adiantados da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, ao lado dos integrantes oficiais do BTM, além de nova cenografia (Manoel Puocci/C. Galdino) e de vistosos figurinos (Tania  Agra).

Onde o maestro argentino Javier Logioia Orbe, na firme regencia da OSTM, mostrou sua reconhecida intimidade de longa data com a música de Tchaikovsky para balé. Embora sem conseguir superar os reverberativos acordes das trompas, em algumas das passagens da partitura, num deslize que tem sido ocasional entre os instrumentistas deste naipe.

Havendo a introdução, durante o prólogo orquestral, de uma não habitual representação cenográfica de um orfanato, quebrando em parte a expectativa de surpresa diante do belo cenário natalino. Incluindo-se, ainda, uma possível restrição ao painel frontal do Ato II, pelo sotaque quase apelativo em sua figuração de bolos e tortas, para conceitualizar pictoricamente o Reino dos Doces.

A atuação performática do Corpo de Baile e dos solistas demonstrando um coesivo desempenho tanto nas cenas de conjunto, como nos solos e formações grupais das danças características. Também não deixando de ressaltar, aqui, no staff masculino as seguras participações de Rodrigo Hermesmeyer como partner nas cenas finais, no papel do Príncipe, e de Edifranc Alves, num prevalente uso da pantomima para um ator/bailarino na sustentação do personagem Dresselmeyer. 

Com alguns destaques mais que especiais no cast feminino da estreia, desde uma expressiva Manuela Roçado como a Rainha do Reino das Neves. Ou de Márcia Jaqueline, com precisa técnica e emoção presencial numa convicta Fada Açucarada do Reino dos Doces, no celebrado Pas-de-Deux do Ato II, com um alcance exponencial nas suas extensivas e exigentes variações.

Através de uma superprodução provocadora de inusitado surto de buscas com instantâneo esgotamento de ingressos, o que levou à correta decisão do Theatro Municipal para transmitir as três últimas récitas num telão externo. Num quase processo identitário com midiáticos grupos de rock e de MPB, sob perceptível fenômeno ascendente de ampliação do interesse do público carioca pelo balé clássico...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo  




O Quebra-Nozes/Balé do Theatro Municipal, está em cartaz no TMRJ, com elenco e horários alternativos, desde o último dia 12, quinta-feira, até o próximo domingo, 22 de dezembro.

DE BACH A NIRVANA/FOCUS CIA DE DANÇA : REFINADO DIÁLOGO COREOGRÁFICO ENTRE A MÚSICA BARROCA E O GRUNGE ROCK


Focus Cia de Dança / De Bach a Nirvana. Alex Neoral/Direção/Coreografia. Dezembro 2024. Dan Coelho/Fotos.



De Bach a Nirvana com a Focus Cia de Dança, uma das mais conceituadas no panorama brasileiro contemporâneo, com reflexos além fronteiras, e sempre sob a direção concepcional/coreográfica de Alex Neoral,  promove um atemporal diálogo entre a riqueza harmônica da música barroca de Johann Sebastian Bach e a fluidez energética do grunge rock de Kurt Cobain e sua banda Nirvana.

E é esta integração estética entre excepcionais concertistas e qualitativos bailarinos que faz deste encontro das habilidades técnicas de cada um destes artistas, um espetáculo tanto capaz de se enquadrar no projeto Sala em Movimento da própria Sala Cecilia Meirelles, como na sua possível conceitualização estilística de Recital Coreográfico.

No qual o espaço de um tradicional palco de concertos transmuta-se num dialetal encontro da música clássica,  do rock e da dança contemporânea, incluída a plasticidade dos seus elementos arquitetônicos recentemente restaurados, desde o belo painel modernista frontal às intervenções participativas dos bailarinos, da caixa cênica à plateia. Inicializada com uma indumentária mais cotidiana, alternativa em sua segunda parte nas variações de peitorais masculinos desnudos e dos figurinos femininos de saias a malhas.

Ampliando o subliminar apelo sensorial através dos efeitos de luzes, ora vazadas ora focais, sublinhando com cores os detalhes em relevo branco do painel, no entremeio de expansiva sonoridade acústica nas composições executadas, da expressividade dos acordes bachianos à dinâmica rítmica dos sons grunge/roqueiros.   


Focus Cia de Dança/ De Bach a Nirvana. Alex Neoral/ Direção/Coreografia. Dezembro/2024. Manu Tasca/Fotos.


Onde há que se referenciar a participação no formato de um quinteto dos notáveis instrumentistas, a saber - Erika Ribeiro (piano), Samuel Passos (viola), Nikolay Spoundjiev (violino), Emília Ivova Valov e Daniel Silva (violoncelos), apresentando-se ora em solos a formações grupais, em posicionamentos cênicos diversificados.

Na interatividade com bailarinos da melhor capacitação tecno-artística, caso dos oito do staff da Focus Cia de Dança (Bianca Lopes, Carolina de Sá, Cosme Gregory, Letícia Tavares, Lindemberg Molli, Paloma Tauffer, Yasmin Almeida, Wesley Tavares), além dos convidados especiais (Luísa Vilar e Márcio Jahú).

Todos eles mostrando uma potencial versatilidade, sob  uma atuação conjunta que nunca deixa de relevar aptidões técnicas paralelas à ressonância exterior de uma psicofisicalidade entremeada pela profundidade subjetiva de cada bailarino. Convicta e reveladora para exprimir a envolvência de momentos gestuais catárticos proporcionados pelas incursões, entremeadas com pausas de silêncio, nos Prelúdios, Fugas, Partitas, Contrapontos, Árias e Suítes de Bach.

Ou então, induzidos pela energia de passos mais agitados e desinibidos das composições roqueiras de Kurt Cobain para o Nirvana, numa entrega de sua corporeidade gestual freestyle ao balanço contagiante do quase frenesi de uma disco dance.

Aliás há que se lembrar da contribuição histórica do bailarino Tony (Anthony Hodgkinson) para a pulsão dançante do Nirvana o que fez da banda um tema inspirador para coreografias contemporâneos, como é o caso, aqui, da releitura inovadora de Alex Neoral para clássicos temas da banda.  

Na sua obra De Bach a Nirvana sabendo como imprimir um descortinador elo entre duas épocas, da dança à música, do sugestionamento etéreo do barroco à alegria feérica do rock, em espetáculo retrospectivo com obras aplaudidas antes (Um a Um e Interpret) em circuito internacional (Lyon/França e Montreal/Canadá).

O que, nesta sua última apresentação, acaba por contribuir, não só para o incentivo a uma vinculação maior entre linguagens artísticas diversas, visando tanto o alcance do público habitual de performances coreográficos, como a conquista daqueles aficionados exclusivos da música em salas de concerto.

Fazendo, assim, com que se encerre a temporada carioca 2024 de dança contemporânea com um meta espetáculo, ao mesmo tempo, enunciador, reflexivo e provocante, na sua abertura de perspectivas para a arte coreográfica sob moldes brasileiros...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

De Bach a Nirvana/Focus Cia de Dança. Sala Cecília Meirelles. Numa breve temporada, entre quinta e sábado, de 12 a 14 de dezembro. 

ALASKA : QUANDO A CONEXÃO, SOB UM GLACIAL DESAFETO, DEIXA RASTROS BRILHANTES PARA UM RECLUSO ASSUMIDO E UMA DESAFORTUNADA NOIVA

 

Alaska. Cindy Lou Johnson/Dramaturgia. Rodrigo Pandolfo/Direção Concepcional. Dezembro/2024. Pat Cividanes/Fotos.


Deixe-me dançar com demônios em estrelas mortas. Deixe minhas cicatrizes deixarem rastros brilhantes”... Com estas palavras poéticas e reflexivas a dramaturga americana Cindy Lou Johnson conceitualiza sua peça Brilliant Traces, de 1989.

Agora, finalmente, nos palcos cariocas, sob a simbólica titulação de Alaska. Com uma apurada tradução de Luiza Vilela, sob a direção concepcional de Rodrigo Pandolfo, em dúplice atuação cênica com a atriz Louise D’Tuani, a peça estreou em São Paulo significativamente, por sua abordagem intimista da solidão, no período pós-pandêmico, em 2022.

Em que ele, pela segunda vez, exercia o ofício de diretor teatral, para completar-se vencendo o desafio de uma frustração, depois de uma experiência não muito gratificante, em 2014, com A Moça da Cidade. Mas, em Alaska, no alcance de diferencial sotaque criativo, através de montagem tendo como referência estética a base gestual/dramatúrgica de um teatro coreográfico.

Onde a participação de uma “contraregragem performática”, representada por dois atores/bailarinos  (Alexandre Maia e Tayson Pio) tem maior dimensionamento cênico, com a extensão inventiva de sua direção de movimento (Lavínia Bizzotto) aos protagonistas Rodrigo Pandolfo e Louise D’Tuani.  


Alaska. Cindy Lou Johnson/Dramaturgia. Com Rodrigo Pandolfo e Louise D'Tuani. Dezembro/2024. Pat Cividanes/Fotos.


O que acaba por imprimir maior força dramática a um enredo intimista pontuado pelos conflitos existenciais vividos por um convicto ermitão Henry (Rodrigo Pandolfo), abrigado na ambiência cinzenta e solitária de uma casa cercada pela paisagem branca, fria e  glacial  do Alaska. E que, ao ouvir inusitados toques à sua porta, se depara com o provocador espectro de uma estranha mulher - Rosanna de Luce (Louise D’Tuani) vestida como uma noiva.

Misteriosa e enigmática, ela teria abandonado um automóvel após empreender a fuga de uma indesejada cerimônia nupcial. Representada num clima de delírio e de fantasia com sua indumentária (Jay Boggo), paralelo a um sotaque mais cotidiano e atemporal nos figurinos masculinos.

Tudo isto sugestionado pela pictórica ocupação nebulosa  da caixa cênica (Miguel Pinto Guimarães), com minimalistas elementos materiais capazes, assim, de transmitir a sensorial impressão de gélidos silêncios, sinalizados pelo vazio interior e pela ausência física nas distanciadas relações pessoais dos dois personagens.

Em que este mergulho na psicofisicalidade da dupla vai se transmutando, pela plasticidade sensitiva dos efeitos luminares (Wagner Antônio), ora em tons catárticos, ora energizados, ao compasso das intervenções sonoro/musicais (Azulll), acabando por potencializar uma angustiada corporeidade performática.

A absoluta entrega na personificação de dois amargurados seres é intermediada por inesperadas reações afetivas, como o beijo dado nela enquanto dorme quase desmaiada  ou de repulsa quando a mulher diz a ele - “Quem você pensa que eu sou? Alguém que precisa de alguém para alimentá-la?. Até explodir a  raiva e a rejeição quando Henry deixa seus delicados sapatos queimarem no forno.

Prevalecendo, durante toda interpretação, uma consistente investida psicológica nos contornos identitários destes personagens, o que é expresso em cada uma das suas  nuances vocais. E no desempenho de um fluente inventário dramático dos seus contundentes transes humanos, com uma precisa correspondência na envolvência de sua expressão corporal.

Contando com um qualitativo staff atoral, incluído seu diretor concepcional, esta refinada versão de um texto dramatúrgico que se equilibra, entre uma visão realista e um subliminar suporte onírico, contagia atores-espectadores por sua intrigante e questionadora narrativa.

Alaska, em sua atenta e oportuna releitura brasileira, nunca, enfim, deixando de remeter à pulsão do incisivo ideário dramatúrgico de Cindy Lou Johnson no entorno da conexão que deixa rastros brilhantes (Brilliant Traces) :  “Para mim, esta peça é sobre a necessidade de se conectar com os outros. Estamos aqui. Não estamos isolados”...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

Alaska está em final de temporada no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h, até o próximo dia 15 de dezembro.

CRISTINA 1300 - AFFONSO ÁVILA HOMEM AO TERMO : UM META DOCUMENTÁRIO SOBRE POESIA, LITERATURA E BARROCO MINEIRO

Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

O poeta, ensaísta e pesquisador do Barroco, o mineiro Affonso Ávila é tema de um incisivo filme documentário, sob ideário, roteiro e direção de Eleonora Santa Rosa, que em noite prestigiada no Estação Botafogo, finalmente estreou no RJ, depois de BH, Ouro Preto, São Paulo, seguindo para outras capitais, com previsões no exterior.

O filme traz uma linguagem inovadora para os habituais documentários sobre literatura dando, em caráter prioritário, a palavra ao próprio poeta para falar sobre sua obra em importantes registros opinativos sob o formato de auto-depoimentos, gravados e filmados com o escritor.

Além da proposta de não só ouvir a sua palavra personalista, mas também de mostrar, em plásticas composições gráficas e virtuais, a textualidade dos seus poemas, considerados da maior simbologia como expressão de uma revolução estética na poesia brasileira.


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo. Eleonora Santa Rosa / Direção, concepção e roteiro. Dezembro /2024. Filme / Foto Divulgação.

 

Affonso Ávila fez parte de fundamentais movimentos literários a partir dos anos 50, desde a revista Tendência às suas colaborações participativas no Concretismo, através da publicação paulista - Invenção - onde atuou ao lado de outros nomes básicos que revolucionaram o modo de ver e de sentir o ofício poético, com um olhar sempre armado na contemporaneidade.

Com uma vasta bibliografia, em livros publicados indo da poesia ao ensaio literário, além de ser considerado uma autoridade na pesquisa e na valoração do Barroco Mineiro que o tornou um marco, tanto no seu discurso analítico do movimento sob todas as suas derivações, como nos seus reflexos  trans temporais na arte e na cultura brasileira.

Uma exibição mais que afetiva, como sobrinho do casal de poetas Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, com os quais passei dois memoráveis anos adolescentes, em anos turbulentos e obscuros pós implantação da ditadura militar, 1965/66, exatamente no icônico endereço Rua Cristina,1300 para completar o Curso Clássico na quase vizinha Faculdade de Filosofia da UFMG.

Ressaltando ser ali, naquela casa, um quase obrigatório ponto de encontro para a intelectualidade mineira e para escritores além-horizontes das Gerais. Um delírio presencial, só no curto período de convivência familiar com o estimado casal e filhos (a maioria tornada de poetas a artistas).

Imaginem o encantamento, para um inquieto espírito de alguém entre 16/17 anos, ver e ouvir de perto Murilo Rubião ou Murilo Mendes, e até o francês Michel Butor, entre tantos outros da antiga e da novíssima geração, Adão Ventura, Sérgio Santana, Luís Vilela e por aí vai.

Onde, esta noite de exibição representou uma proustiana viagem no tempo, recheada com um sotaque roseano de mineiridade. Completada no reencontro de um dos amigos jovens daquela época de busca e de revelação vocacional, caso de talentos artísticos como o do hoje conceituado nome da criação plástica brasileira Angelo Marzano.

E também pela presença do reconhecido poeta, escritor e tradutor apurado, crítico e ensaísta Julio Castañon Guimarães que tive o prazer de conhecer em tempos posteriores, nos meios acadêmicos-universitários juizdeforanos, ainda no final dos anos sessenta. Ambos, aqui, no uso da palavra certa na hora certa, na mesa de debates depois do filme, coordenada por sua convicta diretora - Eleonora Santa Rosa.

A responsável por esta sessão fílmica de tanta empatia e mergulho sensorial proporcionados, simultaneamente, pela conexão da  luminosidade do legado de um poeta maior, com a magia autoral de um filme, incluída a participação da voz carismática da atriz Vera Holtz na leitura em off dos poemas, tudo, enfim, nos levando a uma emotiva trajetória memorial nos espaços siderais da mente...

                               

                                         Wagner Corrêa de Araújo


Cristina 1300 - Affonso Ávila Homem ao Termo.  Estação NET Botafogo, 04/12/2024. Da esquerda para a direita, Vera Holtz, Angelo Marzano, Wagner Corrêa de Araújo, Eleonora Santa Rosa e Júlio Castañon Guimarães.

O REI DO ROCK : SOB ENVOLVENTE INCURSÃO DRAMATÚRGICA, A ASCENSÃO E QUEDA DE UM ÍCONE MUSICAL


O Rei do Rock - O Musical. Beto Sargentelli/Dramaturgia Concepcional. João Fonseca/Direção. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos.


Embora a rápida ascensão ao êxito tenha se encaminhado para um controvertido epílogo aos 42 anos, na história daquele que foi titulado como impulsionador de um gênero musical - o rock - de exponencial apelo popular, o legado de Elvis Presley continua vivo meio século depois.

E foi a partir desta narrativa dramatúrgico-musical  que o seu idealizador, autor e protagonista titular - Beto Sargentelli - alcançou um absoluto sucesso de público e o aplauso da crítica desde a sua estreia paulista, seguida por inúmeras indicações a prêmios teatrais.

Chegando, agora, a vez do público e dos palcos cariocas, o privilégio de conhecerem de perto esta bem sucedida produção  - O Rei do Rock - O Musical. Reunindo, em dimensionamento super apurado, desde sua direção artesanal por João Fonseca, a um elenco afinado no traçado presencial de personagens marcantes.

Onde além do brilho imprimido por Beto Sargentelli ao papel de Elvis, não fica atrás especialmente a atuação de Stella Maria Rodrigues como Gladys Presley, uma mãe de fé obsessiva na carreira do filho, ao lado de Stepan Nercessian encarnando o empresário ambicioso - Coronel Tom Parker - que levou Elvis às alturas concorrendo, ao mesmo tempo, para a dramática crise no ocaso dos últimos anos.


O Rei do Rock- O Musical. Com Nathalia Serra, Beto Sargentelli, Bel Moreira. Dezembro/2024. Stephan Solo/Fotos. 


Enquanto Stella Maria Rodrigues assume tons emotivos tanto em suas intervenções verbais como na sua expressiva vocalização de temas que a caracterizam, Stepan Nercessian destila um humor irônico no entremeio da malandrice de suas atitudes como promoter interesseiro do roqueiro.

Mas também vale ressaltar a adequação convicta, entre outros atores/cantores, a personagens tais como os de Bel Moreira (Priscilla Presley), Danilo Moura (B.B. King) e Tati Christine (Sister Rosetta Tharpe), integrando um extenso cast, ora mais protagonista ora mais coadjuvante, com boas e coesivas atuações.

Numa cenografia (Giorgia Massetan) despojada mas de plasticidade funcional, incluído um quase atemporal sotaque indumentário (Fábio Namatame), sob teor bastante identitário na figuração de Elvis. Sempre ampliada nos habituais efeitos luminares de Paulo Cesar Medeiros, para o alcance dos propósitos de um espaço cênico preenchido por falas teatrais, dança e muita musicalidade.

Priorizando um repertório de algumas das canções antológicas como Love Me Tender, Suspicious Mind, Burning Love, entre as que referenciam desde a base formadora, do country e do blues, direcionando-se sequencialmente aos acordes composicionais daquela que seria a marca estética  sinalizadora do Rock N’Roll.

Para isto, há um potencial empenho de Thiago Gimenes na direção musical conectando o energizado ritmo à correspondente corporeidade gestual pelas coreografias de Keila Bueno. E que acabam por contagiar palco/plateia nas interações físicas de Beto Sargentelli com entusiasmadas espectadoras.

Este, partindo de uma pesquisa exemplar, com visitas a Memphis e outros locais norte-americanos que vivenciaram a jornada criativa de Elvis Presley e também os seus dramas pessoais, dos 18 aos 42 anos. Tudo, enfim, para concretizar um tributo ao pai Roberto Sargentelli, profundo conhecedor do cancioneiro de Elvis, influindo na decisiva vontade de realizar este espetáculo.

Na dúplice intenção concepcional - performática de Beto Sargentelli, já bem reconhecido neste gênero dramatúrgico/musical e, aqui, tanto na função autoral como no ofício de ator protagonista, sendo favorecido pela sua transmutação ao vivo e a cores num singular sugestionamento do próprio Elvis.

O que nesta representação de O Rei do Rock - O Musical, em mais um dos acertos do comando direcional de João Fonseca, só poderia resultar num dos mais surpreendentes espetáculos musicais da temporada teatral 2024...


                                      Wagner Corrêa de Araújo


O Rei do Rock – O Musical está em cartaz no Teatro João Caetano/Centro/RJ,  sexta às 14h e 19h; sábado, 13h e 17h; e domingo, às 11h e 17h; até o dia 08 de dezembro.

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