Julius Caesar -Vidas Paralelas. Gustavao Gasparani/Direção Concepcional. Janeiro/2023. Foto/Nil Caniné/Batman Zavarese. |
Aos poucos o teatro vai retomando sua energia depois de um interregno de crise pandêmica e
de um quadriênio de políticas culturais equivocadas. Mesmo que ainda não tenha
alcançado seu ponto ideal e ainda falte o incentivo financeiro necessário a maiores
investidas, 2023 trouxe algumas grandes revelações.
O teatro, de sotaque subliminar mais clássico, destacando-se
com a primorosa direção concepcional, dos palcos paulistas aos cariocas, imprimida
por Sérgio Módena para a Longa Jornada Noite
Adentro, densa trajetória psicodramática sob as nuances de um realismo
poético, intermediando sangue e alma, no clima memorialista de Eugene O’Neill. Perceptível também em outra das incursões brechtianas
(A Exceção e a Regra) de Luiz Fernando Lobo no Armazém da Utopia, por um teatro engajado que possibilita o lúdico
direcionado à reflexão política, com um vigoroso avanço cênico.
Ou ainda no transcendente conceitual com um recorte estético contemporâneo
que Gustavo Gasparani deu à sua meta releitura que conecta Shakespeare e Plutarco em
Julius Caesar – Vidas Paralelas, num instigante mergulho no processo investigativo
da criação teatral, pela Cia. dos Atores.
Por falar em Gasparani este soube, pleno de paixão e convicta entrega,
revelar sua contundência atoral fruto de quatro décadas, em Como Posso Não Ser Montgomery
Clift, do dramaturgo contemporâneo espanhol Alberto Lopez, com artesanal direção de Fernando Philbert.
De Curitiba veio uma carismática Rosana Stavis em formato
monologal na exponencial montagem de A
Aforista, de Marcos Damaceno com livre inspiração num ideário ficcional de
Thomas Bernhard. E de BH, uma
empática imersão numa proposta diferencial traz de volta o Grupo Galpão no Cabaré
Coragem, enquanto é de lá também a original releitura de Vestido de Noiva, dimensionada, aqui,
como um quase exclusivo teatro coreográfico do Grupo
Oficcina Multimédia (Ione de Medeiros).
A Aforista. De Marcos Damaceno, a partir de Thomas Bernhard. Com Rosana Stavis. Fevereiro/2023. Foto/Renato Mangolin. |
No entremeio da prevalência de representações solo, tornando-se obrigatória a contundente afirmação
da negritude, levada às culminâncias na
proposta cênica/autoral do paulista
Clayton Nascimento em Macacos. Como as transmutações do comportamental dramatúrgico inserido no bravo empoderamento do feminino,
por intermédio das atrizes Cris Mayrink (O
Som e a Fúria em Lady Macbeth) e Rose Abdallah (Só Vendo Como Dói Ser Mulher do Tolstói).
Sem deixar de ressaltar também o desafio das causas raciais identitárias
por uma impactante atriz negra (Sirlea Aleixo) em Furacão, outra das icônicas criações do Amok Teatro, de Ana Teixeira/Stephane Brodt, dando um sério recado sobre o ódio propugnado pelo racismo junto aos riscos da terminalidade ambiental.
Estendendo-se este posicionar-se na integralização de um retrato sem retoques do legado conceitual para um Cânone Gay, na simbologia de tons épicos assumida pela representação paulista de A Herança, de Matthew Lopez, por Zé Henrique de Paula. Com grande elenco e em dois segmentos, para falar de um passado devastador e de um horizonte ainda pleno de hostilidade e preconceito.
No universo dos musicais a
la Broadway, o mais jovem idealizador do gênero Gustavo Barchilon, navegando
da aventura caricatural do Bob Esponja,
em compasso fantasioso capaz de envolver crianças e adultos, ao
revival inventivo de Funny Girl numa
energizada projeção de contemporaneidade. Ao lado de outras esmeradas incursões
da dupla Moeller/Botelho (Mamma Mia e
Jovem Frankenstein) ou de Tadeu
Aguiar (Beetlejuice o Musical).
Mas não podemos deixar de mencionar entre as variadas
experimentações de um teatro musical inspirado na brasilidade, criações com a especial
singularidade camerística de Noel Rosa:
Coisa Nossa, sob uma lírica textualidade dramatúrgica de Geraldinho
Carneiro com acertada direção concepcional de Cacá Mourthé. Ou, em similar
linhagem cênica/musical, a despretensiosa jovialidade do musical paulista Se Esta Lua Fosse Minha,
de Vitor Rocha, capaz de tocar, com sua emotiva ingenuidade poética, quaisquer idades ou o mais
indiferente e acomodado espectador.
O mesmo acontecendo com a sensorial releitura dramatúrgica/musical que Rafael Primot fez para os encontros imaginários entre Kafka e a Boneca Viajante, transcendidos em expressiva carga estética pelo empenho direcional de João Fonseca. Ainda na transposição livro/palco, aqui sustentada por uma escritura psicanalítica, a peça Sra. Klein fazendo uma abissal imersão nos espaços siderais da mente, no conluio do apurado comando de Victor Garcia Peralta a uma sublimada atuação titular de Beatriz Nogueira.
E é com lastro literário que vamos encerrando esta breve
retrospectiva teatral em peças baseadas na obra de alguns escritores referenciais.
A começar do belo conceitual de construção dramatúrgica por Daniela
Pereira de Carvalho, valendo-se de passagens sertanistas de Euclides da Cunha e
de Guimarães Rosa, para A Hora do Boi, protagonizada por Vandré
Silveira.
Extensiva à sua sólida parceria concepcional com Bruce Gomlevsky,
nas expressivas adaptações dramatúrgicas do livro de George Orwell, agora em
formato solista titulado como Outra Revolução
dos Bichos, entre a encenação realista e o onirismo, interpretada com raro
brilho, por Gustavo Damasceno.
Voltando à relação teatro e literatura, tornando-se absolutamente
obrigatório para quem não viu ou quer rever o Brás Cubas, destaque absoluto do ano teatral tendo como ponto de
partida um dos personagens mais polêmicos de Machado de Assis. Onde Paulo de Moraes e a Armazém Cia de Teatro, com sua potencial gramática cênica e
pulsante inventário dramático sintoniza, com emblemática maestria, seu
enigmático tempo ancestral, aos questionamentos do mundo de hoje e nos mistérios da interioridade de cada um de nós...
Wagner Corrêa de Araújo
Brás Cubas. Armazém Cia de Teatro/Paulo de Moraes. Setembro/2023. Foto/Mauro Kury. |