Na passagem de suas quatro décadas o Grupo Galpão retoma seu diálogo com o ideário politico e
dramatúrgico de Bertold Brecht, iniciado
em 1982, por intermédio da sua montagem inaugural - A Alma Boa de Setsuan. E,
agora, como o primeiro espetáculo pós surto pandêmico e num intuito, além do fator comemorativo, de advertência e de denúncia para que não
se repitam os riscos antidemocráticos propugnados pelo nosso último (des)governo.
Cabaré Coragem não deixa, assim, de mostrar em sua
proposta a pulsão de resistência cultural e política que sempre marcou a trajetória
do mais emblemático grupo teatral das Gerais. Em concepção cênica, musical e coreográfica,
que se sustenta na prevalente interação palco/plateia, atores/espectadores. E numa
empatia que é provocada desde a primeira canção com seu simbólico recado : “Teatro, no fundo és puro teatro, falsidade
ensaiada, estudado simulacro”...
Contando, aqui, com o experiente elenco do Grupo Galpão, desdobrando-se numa dramaturgia coletiva sob a supervisão de Vinicius de Souza, onde a direção concepcional fica com Júlio Maciel. Em mais um tributo conceitual à estética brechtiana do distanciamento e por um “teatro épico” que leva à reflexão e ao engajamento na causa politico/social, contra o capitalismo e a favor dos menos favorecidos. Enunciada já a partir da simbólica titulação da peça Cabaré Coragem, inspirada na carismática personagem Mãe Coragem e lembrada na instigante fala de Teuda Bara vivenciando esta personagem.
Cabaré Coragem. Grupo Galpão. Júlio Maciel/Direção. Dezembro/2023. Fotos/Mateus Lustosa. |
Em espetáculo que reúne sete de seus incríveis e referenciais
atores (Antônio Edison, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone
Ordones e Teuda Bara) e uma equipe tecno-artística que vem sempre imprimindo
sua qualitativa marca às criações do Grupo
Galpão, desde os funcionais efeitos luminares (Rodrigo Marçal) à expressiva
trilha sonora.
Esta última com uma banda ao vivo, sob os arranjos de Luiz Rocha, com citações de um repertório que
vai da ambiência de teatro musical da lavra Bertold Brecht/Kurt Weill (identificada em temas
como Alabama Song) ao melodrama brega
de Coração Materno (Vicente Celestino)
ou de Perigosa, sucesso de Rita Lee
com as Frenéticas. Com notável participação dos acompanhamentos do público,
incitado pelos atores transitando quase sempre entre as mesas.
Ressaltando-se, ainda, a cenografia minimalista com um
sotaque burlesco/circense e os figurinos aquarelados onde Márcio Medina procura
reproduzir a ambientação típica daquelas casas de encontros e prazeres à base
de muita música, dança, comédia, circo e bebida.
Tanto podendo se referir àquele espaço originário da Alemanha
entre guerras, onde a dupla Brecht/Weill
se notabilizou com suas operetas, à perceptível busca de tonalidades de uma brasilidade
de escracho e decadência que chega a sugestionar uma certa similaridade deste Cabaré
Coragem com aqueles bordéis de beira de estrada.
Com momentos potencializados em cenas diferenciais como a
dialetação de um Ventríloquo (Eduardo
Moreira) com uma Bonequinha (Inês
Peixoto) tentando exemplificar em linguagem de aporte absolutamente fácil e sob
tons irônicos, os mecanismos da luta de classes, no desafio à exclusiva concentração de riquezas e à exploração dos mais fracos pelos detentores do poder.
Tudo alternado com fragmentárias cenas de energizado exibicionismo
acrobático por Eduardo Moreira e Antônio Edson ou debochadas incursões na
idiotice de personagens políticos ou na intolerância de tipos femininos, bem característicos
no último staff presidencial.
Para, afinal, no entremeio desta divertida e mordaz viagem teatral ao grotesco universo das hipocrisias políticas e sociais, tornar cada vez mais urgente a lição que este singular Cabaré Coragem acaba trazendo, a partir de um expansivo pensar teórico do próprio Bertold Brecht:
“Ele o ator deve representar tudo com prazer, especialmente o horrível, e mostrar o prazer que tira disso. Quem não ensina divertindo e não diverte ensinando não tem nada o que fazer no teatro”...
Wagner
Corrêa de Araújo
Cabaré Coragem está em
cartaz no Teatro Rival/Cinelândia, de quarta a sábado, às 19h30m ; domingo,
18h30m. Até 10 de dezembro.
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