PRÊMIO APTR 2019 : OS VENCEDORES




Em concorrida celebração aconteceu a noite de entrega do Prêmio APTR 2019 no palco do recém reformado Teatro Prudential, antigo Teatro Manchete, no bairro da Glória, RJ, concepção original de Oscar Niemeyer com jardins de Burle Marx.

A festa teve direito desde um refinado Quarteto de Cordas, integrado apenas por mulheres (Grupo Cais), a uma participação especial da cantora Elba Ramalho, completando-se por animado coquetel de congraçamento da classe teatral, no belo e extenso foyer do agora Teatro Prudential – Sala Adolfo Bloch.

A homenageada da 13ª edição do prêmio foi a atriz Marieta Severo e a apresentação da cerimônia esteve a cargo da dupla Drica Moraes e Marco Nanini, tendo como maior vencedor da noite (quatro categorias) o espetáculo Grande Sertão : Veredas, com direção concepcional de Bia Lessa, seguido pelos três troféus APTR conferidos  ao musical Romeu e Julieta, sob a direção de Guilherme Leme Garcia.

Houve ainda o anúncio da nova categoria – Direção de Movimento e Coreografia – para a próxima edição do prêmio, com a entrega de trófeu em homenagem a Angel Vianna, emblemática precursora e introdutora do expressionismo corporal nos espetáculos teatrais brasileiros.

A comissão julgadora do 13º Prêmio APTR foi integrada por Bia Radunsky, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luís, Maria Siman, Rafael Teixeira, Renata Magalhães, Rodrigo Fonseca, Tania  Brandão e Wagner Corrêa de Araújo, além dos membros do Colegiado APTR.

LISTA DOS PREMIADOS

ESPETÁCULO

Grande Sertão:Veredas

DIREÇÃO

Bia Lessa por Grande Sertão:Veredas

AUTOR

Pablo Capistrano e Henrique Fontes por “Invenção do Nordeste”

ATRIZ PROTAGONISTA

Amanda Acosta por Bibi, Uma Vida em Musical

ATOR PROTAGONISTA

Bruce Gomlevsky, por Memórias do Esquecimento, e
Caio Blat, por Grande Sertão:Veredas

ATRIZ COADJUVANTE

Stella Maria Rodrigues, por Romeu e Julieta, e Stella Miranda, 
por O Frenético Dancin Days

ATOR COADJUVANTE

Mateus Cardoso e Robson Medeiros por A Invenção do Nordeste

CENOGRAFIA

Daniela Thomas, por Romeu e Julieta, e Camila Toledo e 
Paulo Mendes da Rocha, por Grande Sertão: Veredas

FIGURINO

João Pimenta por Dogville e Romeu e Julieta

ILUMINAÇÃO

Felício Mafra por Memórias do Esquecimento

MÚSICA

Pedro Luis, Larissa Luz e Antônia Adnet por Elza

CATEGORIA ESPECIAL

Nicette Bruno por sua participação no musical Pippin e por sua trajetória teatral

PRODUÇÃO

Sarau Agência de Cultura Brasileira pelo musical Elza



DRICA MORAES E MARCO NANINI, OS APRESENTADORES DA PREMIAÇÃO APTR 2019

LANTERNAS VERMELHAS : VALOROSO TEATRO COREOGRÁFICO CHINÊS


FOTOS/JAMAR HUTCHESON/ RENATO MANGOLIN

Há seis décadas o Balé Nacional da China vem se impondo  como a mais antiga cia de balé de seu país e a primeira a estabelecer laços coreográficos com as tradições do Teatro, da Música e da Ópera, aliadas ao folclore e à arte nativista. 

Embora tenha no período maoísta priorizado as obras de conteúdo político e propagandista, mesmo assim continuou seu aprendizado das técnicas clássicas do balé russo, graças à proximidade ideológica com o regime soviético. 

Após o epílogo da Revolução Cultural, esta Cia inicializa um gradual processo de abertura ao repertório contemporâneo, mais focado em criadores como G. Balanchine, e num maior intercambio com os grupos e coreógrafos do Ocidente. Ao lado de maior inclusão de clássicos fora da exclusividade antológica russa, não abandonando de vez obras da era Mao como o mitificado O Destacamento Vermelho de Mulheres. 

Onde, através de Lanternas Vermelhas, houve um especial significado na ideia da transposição do filme, de 1991, dez anos depois, em similar titularidade, para a cena coreográfica, com a enorme repercussão mundial da obra fílmica dirigida por Zhang Yimou.

Assim, o cineasta foi convocado a utilizar o seu enredo cinematográfico para inédita e avançada revitalização do Balé Nacional da China. Inspirando-se no memorial das tradições chinesas, indo do milenar e popular teatro das sombras ao referencial à Ópera de Pequim, sem esquecer as lutas marciais.


Ao mesmo  tempo em que tematizava a situação inferiorizada da mulher na China ancestral, que de concubina tornava-se de contrastada independência na era comunista. Numa narrativa dos domínios da clã de um patriarca, rodeado de asseclas masculinos, exercendo seu poder opressivo sobre  três esposas/concubinas.

Uma trama próxima dos melodramas operísticos, carregada de paixões proibidas, traição e morte, através de elementos estéticos que remetem, além da ópera, aos recursos mímicos e à representação teatral, pontuado por cenas de teatro dentro do teatro e um entreato mais lúdico com mesas de jogos (mahjong). 

Numa cenografia orientalista à base de painéis móveis (Zeng Li) de rica plasticidade, e na elegância de uma indumentária, misturando conservadorismo com sutis toques de modernidade, pelo franco estilista Jérome Kaplan. Completada na magia de um design de luz do próprio cineasta (Zhang Yimou), com  prevalência  focal/emotiva no reflexo vermelho das lanternas.

A linha coreográfica, em dúplice realização de Xin Peng Wang e Wang Yuanyuan, ambos com passagens profissionais pelos palcos americanos, faz um mix de bases néo-clássicas, sem grandes arroubos técnicos.  Salvo grandes extensões de pernas e exibicionismo de pontas no naipe feminino, além de um energizado gestual das formações masculinas, lembrando visualmente os celebrizados guerreiros esculturais em terracota.

Sustentando passagens mais sinfônicas com ritmos nativos e danças étnicas, em provocativas inserções gestuais oriundas da mímica e do kung fu, a música fragmentária na diversidade de estilos (Qigang Chen) não entusiasma com o mesmo dimensionamento da concepção cênica.

Embora não tenha a completa identidade expressiva do filme original nesta sua adaptação coreográfica, Lanternas Vermelhas não deixa de revelar um transcendente significado pela artesanal unicidade de proposta estética.

Tanto por seu grandioso apelo visual e pela qualidade da performance de afinado elenco, como pelo simbolismo emblemático de uma nação que coloca em primeiro plano o aporte e incentivo à cultura da dança e aos seus mentores, nas suas correlações com a tradição e a modernidade.

Que comparativa diferença e que tamanho desalento!!! Quando contextualizados numa sub valorização do inventário artístico, na atual governança de um certo país abaixo da linha equatorial...

                                            Wagner Corrêa de Araújo



O Balé Nacional da China cumpre turnê nacional apresentando-se no Theatro Municipal/RJ, até 26 de maio, seguindo para São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte, em temporada extensiva a 9 de junho.

O CENSOR : SOB UM OLHAR ARMADO ALÉM DA IMAGEM

FOTOS / ALVARO RIVEROS

Em tempos de ameaça obscurantista da volta da censura, a versão brasileira da peça The Censor, de 1997, do dramaturgo escocês Anthony Neilson, recoloca em pauta os embates entre uma cineasta e um funcionário estatal cujo ofício é tornar inacessível a exibição de filme com conteúdo pornográfico.

Isto, evidentemente, dentro de um conceitual próprio de sexualidade e erotismo, do seu departamento público, tornando de absoluta subjetividade tanto as suas justificativas jurídico/morais quanto as razões estéticas dos mentores da proposta fílmica. Numa espécie de dialetação ideológica direcionada pela ambiguidade dos questionamentos e das respostas.

Num esforço coletivo em torno de uma concepção cênica, dividindo-se em unicidade tríptica as múltiplas funções da direção, produção e criação geral, há nesta montagem de O Censor o encontro teatral dos atores Alexandre Varella e Patrícia Niedermeier com o cineasta Cavi Borges.

Incluídos, aí, os ofícios da cenografia (com básicos elementos mobiliares) e da indumentária, com exceção apenas da reconhecida artesania de Luiz Paulo Nenen nos efeitos luminares. Ao lado das projeções de recortes antológicos de Agnes Varda, Chantal Akerman, Erica Lust, Jane Champion e Maya Deren, sob o comando mor de Cavi Borges.

Como, ainda, na dúplice função direcional/atoral através de Alexandre Varella, no personagem do Censor, e de Patrícia Niedermeier como a Cineasta, tendo ainda uma participação, esta bem limitada, de Emilze Junqueira, no papel da Esposa do protagonista titular.

Onde há uma radical inversão no enredo, quando sua progressão dramática passa do domínio impositor das alegações do censor para uma insistente persuasão da cineasta, pela defesa ideológica contra a explicitude pornográfica vista por ele.

Ela encontra razões no olhar além da imagem e de que perverso e ilícito é o que não aceita a potencialização erótica como manifestação artística. Ao mesmo tempo em que aponta nele um estado psíquico, pleno de humilhação e vergonha, por fazer parte de um submundo de repressão aos prazeres secretos da sexualidade, ampliado na denúncia das infidelidades de sua mulher.

Enquanto invasivamente penetra em sua intimidade física, indo de uma inicial e sofisticada sedução para uma atrevida impudícia gestual, em rompante e reveladora devassa dos seus subterrâneos fetiches.

Se há uma implícita provocação no dimensionamento psicofísico da narrativa dramatúrgica, esta se fragiliza com uma certa nuance de superficialidade, nos intermédios do delírio e do verismo, pela transgressiva instantaneidade de exposição dos avanços na corporeidade do personagem.

Como, do mesmo modo, soam quase invasivas as intervenções cênicas laterais entre o censor e sua mulher, quebrando a tensão e desviando a concentração no conflito principal. Não havendo, também, uma maior interatividade acional, para uma ideia básica de peça-filme, entre a representação cênica e as intervenções cinematográficas.

Alexandre Varella imprime ao seu personagem a convicção e credibilidade necessárias, entre a repressão do oficio e o desalento de uma vida reprimida. Enquanto Patricia Niedermeier sabe conduzir um papel de dual tessitura dramática, entre um irônico moralismo e um atrevido primado do sensorial. Sem deixar de se ressaltar o desfavorecimento que uma subtrama causa na personificação de Emilze Junqueira.

Num entremeio de contraditórias e preconceituosas decisões, não permitindo quaisquer alternativas para a busca da livre reflexão, tanto de um lado como para o outro, em lição mais que oportuna para os dias que estamos vivendo.

Promovendo, enfim, um visceral confronto entre a intenção primeira do criador artístico e o cerceamento da sua liberdade de pensamento e ação no momento da entrega da obra ao seu destinatário final – o consumidor/espectador.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


O CENSOR esteve em cartaz no Estação Net Botafogo, sextas e sábado, às 20h, até 18/05. 75 minutos. Com previsão de nova temporada a partir de 15 de junho.

À MARGEM : VISCERAL GESTUALISMO, INCISIVO DISCURSO ANTIDISCRIMINATÓRIO

FOTOS/ CLAUDIA DANTAS - THIAGO PIQUET

Na programação do projeto EntreDança 2019, há que se dar especial destaque ao conceitual de ideário negro, imprimindo visceral substrato estético/social à performance coreográfica, no espetáculo/instalação  -  À Margem.

Onde há o encontro dos bailarinos cariocas Bruno Duarte e Tiago Oliveira, o primeiro ligado ao movimento das danças urbanas na especificidade do “krump” e o segundo com um referencial curricular de dança contemporânea, ora em trabalhos personalistas ora em grupos públicos como a cia. oficial de Ballet da Cidade de Niterói.

Acompanhados por Jhonatta Vicente, representativo DJ ligado às pistas e às intervenções cênico/sonoras, natural do Rio com residência na capital mineira, integralizando energizado tríduo coreográfico - musical de prevalente identidade negra.

Direcionados, através de uma dúplice concepção dramatúrgica (Fabiana Nunes e Tiago Oliveira), em provocativa representação que  faz deste À Margem um potencial experimento coreográfico de incisivo recado politico/ideológico contra a marginalização social e a discriminação de raça e cor.

Capaz de surpreender desde a textualidade  inicial quando o DJ, assumindo transgressora postura homo/black, visualizada  numa trans-indumentária e na mascaração feminina, transmuta um contraponto crítico na individuação dos traços de máscula erotização e corporeidade viril dos dois bailarinos.

Num quase referencial irônico de exposição gay/clubber com garotos de aluguel, em discricionária ambiência cenográfica - mesa de manipulação do equipamento sonoro entre duas cadeiras vermelhas laterais, unidas por encordoamentos de tonalidade rubra. Onde os dois performers aguardam a sua hora e vez de entrada na pista coreográfica.


Na alterativa amostragem de dois corpos negros dialogando, com  tensa destreza física, quebrando limites arena/plateia, sem artifícios cênicos, entre luzes focais, e bem condicionados à funcionalidade de um figurino urbano básico (tênis, malhas, camiseta transparente, calça e camisa grafitada).

Amarrados em minimalista delineamento gestual, sob o feeling de reiterativos batimentos sincopados e da envolvência rítmica de aleatórios improvisos sonoros em formatação sampler (Jhonatta Vicente).

Contraindo o tônus muscular, ora em estado bruto de ataque e defesa com impetuosa agressividade, ora no contraste de corajosa entrega afetiva, sem preconceitos, entre corpos masculinos que se tocam.

Para não continuar À Margem, nas trajetórias do icônico enfrentamento à exclusão ancestral, do discurso da inferioridade racial às maldades pela violência policial, ao establishment no desprezo do sistema às comunidades e às periferias urbanas.

Em tempos difíceis e de conturbadas perspectivas, estes dois bailarinos/coreógrafos  negros em processo de desmistificação, pelo exercício criador da fisicalidade sensorial, acabam dando, aqui, um valioso recado de salvação pela arte.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


À MARGEM está em cartaz na Sala Multiuso, Sesc/Copacabana, de quinta a domingo, às 18h. 60 minutos. Até 19 de maio.

O ATOR E O LOBO : ESPECULAR DRAMATURGIA ENTRE O EU E O OUTRO

FOTOS/ GISELA SCHLOGEL

Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda.“  Antônio Lobo Antunes /Quarto Livro de Crónicas.

Entre o escritor português Antônio Lobo Antunes e o ator Pedro Paulo Rangel há particularizados pontos de contato, perceptíveis tanto por passagens existenciais como por referenciais da criação literária e dramatúrgica de um para o outro.

Sob energizado substrato teatral capaz de convergir, como provocação estética do espetáculo O Ator e o Lobo, na dramaturgia de P. P. Rangel, mixando inventivamente, em espontânea textualidade, a palavra literária de Antunes à sua palavra teatral de ator/autor.

Em mergulho auto-ficcional, com traços veristas, na vida de ambos, entendida, assim, como um retrato conexo e identitário de dois criadores distanciados além mar, sem comprovados laços parentais, apesar do aproximativo sobrenome Antunes  na primeira geração familiar.

Um lusitano e um brasileiro que se encontram através de crônicas lidas do primeiro e ditas pelo segundo, sem se ater com exclusividade ao seu original, ao mixá-las com a própria escritura do seu intérprete mor no ofício performático. Contextualizadas em paisagem cênica (Fernando Mello da Costa) essencialista, no básico mobiliário e de um telão, carregando incisivo inventário memorial.

Comandado em acurada concepção diretorial, por Fernando Philbert, como um  tributo ao meio século de carreira e aos 70 anos completados, agora, por Pedro Paulo Rangel, um dos mais celebrados atores de sua geração.

No entremeio de narrativas, ora de nostálgica nuance melancólica, ora pelo fino sotaque de ironizado humor, na contação de estórias e causos pitorescos das travessuras da meninice, das descobertas adolescentes ou das alegrias de convívio com pais e avós.

Mas também melancólicas, como uma visita hospitalar a um amigo sob ameaça terminal ou na insistente presença de cotidianidade espectral dos que partiram de vez. Numa proposta de one-man show presencial na elegância coloquial de um recatado figurino (Helena Araújo).

Onde a integralização de uma teatralidade de poetizado teor confessional, é potencializada emotivamente no recorte imaginário das lembranças de arte e de vida, por projeções visuais e um desenho de luz (Aurélio de Simoni) de simplicidade funcional. Sem deixar de citar a sensitiva intervenção de uma incidental trilha musical (Maíra Freitas).

Tomado por paixão e pleno de técnica, no uso de sua tarimbada vivência cinquentenária nos palcos, Pedro Paulo Rangel transcende, longe de quaisquer virtuosismos supérfluos, as nuances discursivas de um quase recital literário.

Em representação de assumida introspectividade, mas sem nunca deixar perder o ritmo, revelando competência dramatúrgica e maturidade atoral. Capazes, sobretudo, de imprimir à representação de O Ator e o Lobo, com o valioso suporte diretor de Fernando Philbert, autoridade cênica e cúmplice empatia com o público.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


O ATOR E O LOBO está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 60 minutos. Até 2 de junho.

CÁLCULO ILÓGICO : SENSORIAL DRAMATURGIA SOB COMPASSO ALGÉBRICO

FOTOS/BIA CHAVES

Já na ambiência escolar a busca pela solução de cálculos matemáticos provoca no aluno o dimensionamento psicológico do que um desafio, questionador sob o compasso algébrico, pode significar como vitória ou derrota, satisfação ou fracasso emocional.

Assim como, através do tempo de nossa jornada existencial, a mensuração numérica nada faz senão investigar respostas para o enfrentamento dos transcendentes enigmas que contextualizam a condição humana, entre o nascimento e a morte. 

Somos, afinal, marcados cotidianamente pelos números dos dias, das horas e das atividades funcionais guiadas sempre pelos significantes e significados de algoritmos materializados na valoração aritmética e monetária.

Da literatura ao teatro, também ali, é imanente o presencial do substrato mágico/matemático do pensamento, no raciocínio entre o lógico e o ilógico, pela indicação ficcional ou poética das formulações e parodoxos de cada um de seus personagens.

Enquanto Hamlet é defrontado entre o cálculo do ser e do não ser, versos alexandrinos e sonetos metrificam o sim e o não do amor em sílabas. E a soma errada pode ser mais um destes palíndromos ou criptografias, desde a representação dostoievskiana do “Duas vezes dois igual a cinco”, em Notas do Subterrâneo, ao axioma da frase musical de Caetano Veloso no “Tudo certo como dois e dois são cinco".

Todas estas digressões parecem conduzir à escritura dramatúrgica, no formato de um monólogo autoral, da atriz Jéssika Menkel com CÁLCULO ILÓGICO, sintonizada por provocante performance emotiva, no sempre artesanal comando diretor de Daniel Herz.

Onde ela reflexiona, em linguagem de substrato poético/coloquial, passagens de sua infância, entre o afetivo das relações familiares, a puerilidade da meninice e as descobertas adolescentes.

Configurada pela culminância da dor da perda prematura do irmão, nas circunstâncias de um trágico acidente de trânsito, pela medida matemática racionalizadora de seu melancólico sentimento da ausência fraternal, na ilogicidade da resposta aos cálculos de vida.

Em paisagem cenográfica e indumentária (Thanara Schonardie) ocupada apenas por tríplice formatação de cubos negros, de potencial mobilidade para os efeitos cênicos/luminares (Aurélio de Simoni), além de uma bicicleta em estado precário.

Referencial simbólico do atropelamento mortal, junto a vestes em andrajos incluindo, via fragmentário resíduo da camiseta do irmão Douglas, um tributo metafórico à sua definitiva perda, extensivo aos acordes de sensitivo apelo sonoro (Éric Camargo).

Num desempenho energizado pela amarração de espontânea fisicalidade gestual enquanto, ao mesmo tempo, sedutor por seu élan introspectivo, Jéssika Menkel revela, enfim, uma dúplice força ascensional.

Tanto como atriz tanto como dramaturga, de uma geração emergente predestinada a preencher os palcos e a conquistar o público em busca de novos e instigantes caminhos para o teatro brasileiro.

                                        Wagner Corrêa de Araújo



CÁLCULO ILÓGICO está em cartaz no Espaço Rogério Cardoso/Casa Laura Alvim/Ipanema, sexta e sábado, às 19h; domingo, às 18h. 50 minutos. Até 2 de junho.

NAVALHA NA CARNE : COM LAMINAR RECORTE DRAMATÚRGICO

FOTOS/VICTOR HUGO CECATTO

Uma viagem ao inferno, um jogo de domínio e submissão, um teatro ou uma dança da crueldade, num ritual de perversão sadomasoquista em visceral round de  amor selvagem.

Um vasto conceitual temático e estético pode ser atribuído a um dos mais emblemáticos textos da história do Teatro Brasileiro – Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Cronologicamente precedido por já polemizada inicialização com suas duas primeiras peças - Barrela e Dois Perdidos Numa Noite Suja.

Desde que foi escrita em 1966 à sua chegada aos palcos, no ano seguinte, a peça enfrentou um dos mais árduos embates censórios do governo militar. Sendo retirada de cartaz após frustradas  tentativas  de dar continuidade a uma corajosa temporada de enfrentamento, com direção concepcional de Jairo Arco e Flexa.

Foi por esta época que Tônia Carrero resolveu dar uma guinada radical na tipificação de personagens que a tinham tornado uma celebrada atriz, insistindo na mudança para um papel marginal num contexto de devassidão e de submundo, encontrado nesta obra de Plínio Marcos.

Reunindo em cena, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o faxineiro homossexual Veludo, numa trama de progressão dramática exclusiva em cenário único, o quarto de uma pensão decadente. Onde vivem Neusa Sueli e Vado com seus negócios de profissionalismo sexual, além de Veludo que exerce, ali, seu trabalho de “domesticidade".

Aqui e agora, em concepção cenográfica (Sergio Marimba) de extremado realismo nos traços decadentistas e escrachados de um cômodo claustrofóbico para atos meretrícios, ocupado por cama, armários, lavatório, janelas laterais e porta frontal, estendendo-se, em sua triangularidade, sobre a plateia.

Onde efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros) sugestionam um clima bas-fond extensivo a uma indumentária (Marcelo Marques) indutora de tipificidade na licenciosa volúpia feminina, na afetação transexual e na cafonice malandra. Transmutando-se toda esta significante plasticidade no acerto de proposital breguice do score sonoro/musical (Marcelo Alonso Neves).

Neste tributo a Tônia Carrero, com peça e exposição sobre sua trajetória teatral, a representação da prostituta que foi dela é assumida, quase meio século depois, por sua neta Luisa Thiré, ao lado de Alex Nader (Vado) e Ranieri Gonzalez (Veludo), sob um potencializado e revelador comando diretorial de Gustavo Wabner.

Sabendo, às alturas, como imprimir um díspare dimensionamento psicológico a personagens que se confrontam digladiando no clímax dos limites da violência, do asco e da humilhação. Em incisivo recorte dramatúrgico de uma condição humana à beira de seus mais baixos instintos, guiado por um linguagar cru, carregado de gírias e palavrões.

Transmutada na energizada direção de movimentos (Sueli Guerra) em estado bruto. Através da convicta impiedade gestual e frieza emocional, na performance machista e virulenta do Vado de Alex Nader.

Confrontando-se com a ambiguidade comportamental do Veludo de Ranieri Gonzalez, entre um trans-exibicionismo e uma aversão misógina, enquanto perturba, com sua homo-feminilidade, a agressiva virilidade de Vado.

Sem deixar de revelar a desnudante entrega de Luisa Thiré a um papel de desafeto e desprezo passíveis de comiseração, no entremeio de uma prevalente tensão dialetal  em ambiência repulsiva.

Imprimindo a uma fragilizada mulher e vulnerável prostituta caracteres,  de proximidade artaudiana, com vigoroso sustento na danação de um ser violentado em busca de um páthos redentor.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


NAVALHA NA CARNE está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sexta a segunda, às 20h. 75 minutos. Até 03/Junho.

BALÉ TEATRO GUAÍRA : 50 ANOS DE RESISTÊNCIA NA REINVENÇÃO DE UMA CIA. OFICIAL DE DANÇA

FOTOS/MARINGAS MACIEL

Há exatamente  meio século, Curitiba criava sua cia. oficial de dança o Balé Teatro Guaíra. Em cinco décadas, exemplarmente detalhadas nos painéis e figurinos de uma exposição comemorativa, são lembrados os responsáveis por torná-la um referencial de sobrevivência entre as mais antigas do país.

Marcada, em súbita particularidade dos seus anos 80, na força ascensional da fama com o unanime aplauso do público e da crítica, no dinâmico substrato coreográfico imprimido, ali, pela passagem direcional do coreógrafo português Carlos Trincheiras.

Que, além da inclusão de obras mestras do repertório contemporâneo internacional, deu a ela inventiva brasilidade em concepções autorais como a de O Grande Circo Místico, inspirada num poema de Jorge de Lima roteirizado por Naum Alves de Souza, com score musical de Edu Lobo e letras de Chico Buarque de Holanda.

Enfrentando, também, as habituais crises de sustentação pelos mecanismos estatais, agravados no engessamento a que são conduzidas nossas cias. públicas de dança, contextualizadas na limitativa similaridade burocrática das carreiras funcionais. Mas que teve uma providencial saída no Balé Teatro Guaíra possibilitando a transferência dos bailarinos, de maturidade sênior, para o G2 Cia de Dança, em fórmula aproximativa com a Nederlands Dans Theater – NDT III.

Concebido para três semanas e posterior turnê pelo interior paranaense, o cinquentenário do BTG, inclui um tríptico coreográfico através da retomada integral de A Sagração da Primavera (Olga Roriz), de 2012, Carmen (Luiz Fernando Bongiovanni), 2016, e O Segundo Sopro  (Roseli Rodrigues), 1999.

A récita de abertura da temporada, além da sacre stravinskiana ao vivo, na portentosa atuação da Sinfônica do Paraná com o elenco do BTG, teve, no prólogo, antológica seleção de O Grande Circo Místico. Numa espécie de mix cênico do original 1983 de C.Trincheiras com sutilizadas citações da versão 2002, de Luis Arrieta, através de score sonoro gravado e figurinos das duas montagens.  

E no presencial de bailarinos desta última, como Regina Kotaka e Wanderley Lopes, em convicta atuação no duo de Lily Brown, em significante tributo memorial à obra que mais marcou a história do BTG. E que, nesta performance fragmentária, naturalmente, acaba perdendo o impacto estético e a sequencia composicional da coreografia vista in  totum.


Mas é na segunda parte do espetáculo que há sólido alcance da representação, no conluio absoluto entre uma potencializada, com mais de uma centena de integrantes, Orquestra Sinfônica do Paraná, sob a luminosa e carismática regência do maestro alemão Stefan Geiger e um energizado elenco do Balé Teatro Guaíra, dirigido por Cíntia Napoli.

Desde a cena inicial, no perceptível acerto da regência em células rítmicas de vigoroso apelo sonoro, com prevalência das madeiras e sopros sobre as cordas, provocando uma poderosa onda percussiva da massa orquestral e empolgando, num élan coletivo, músicos, bailarinos e espectadores.

Sintonizados com a partitura executada com arrojo irrepreensível, os bailarinos atiram-se no palco em pulsões frenéticas de coesivo movimento que une os naipes masculino e feminino numa transcendente atemporalidade do ancestral tribalismo russo, elemento conturbador na estreia de 1913.

Em paisagem cênica (Pedro Santiago Cal) minimalista, ocupada por montículos de areia desfeitos em brumas sob luzes (Clemente Cuba), numa indumentária (Pedro Santiago e Olga Roriz) cotidiana acentuando uma narrativa metaforizada em espontânea, violenta e instintiva carga gestual/emotiva, impulsionada por eletrificadas arritmias  musicais.

Onde a trama original é transmutada, entre a poesia e o caos, na celebração do espírito e do corpo, da vida e da morte, num jogo frenético de psico-fisicalidade por Olga Roriz. Acentuado na dialetação do investir no protagonismo do Sábio (Rene Sato), entre pausas e intervenções veementes, no entremeio das nuances de visceral tensão do feminino na Eleita (Gloria Candemil), ora de submissão, ora da sexualidade, para culminar na liberdade de entrega a uma postura redentora.

Ainda que ali se encontrem traços remissivos a outras “sagrações” como a de Pina Bausch, o ideário coreográfico de Olga Roriz, com o olhar armado no hoje, fugindo à vitimização do feminino, particulariza-se em delirante gramática  cênico / corporal.

Concedendo à personagem da Eleita a dimensão que ela deve ter em proposta reflexiva capaz de arrastar e seduzir palco/platéia, a partir da exaustão corporal e do esgotamento do folêgo, irradiando, assim,  em ato ritualístico capitaneado pelo Sábio, a sacralização  da própria condição humana.

                                                Wagner Corrêa de Araújo

O GRANDE CIRCO MÍSTICO

O Balé Teatro Guaíra – 50 Anos está em cartaz no Teatro Guaíra/Curitiba, sexta e sábado, às 20h30m; domingo, às 19h. 90 minutos. Até 19 de maio, seguindo em turnê pelo interior do Paraná.

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