Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O"Neill. Sérgio Módena/Direção.Maio/2023. Fotos/Priscila Prade |
“Quando ele começou Long Day’s Journey foi uma experiência muita
estranha assistir aquele homem sendo torturado todos os dias por sua própria
escrita. Ele saia de seu escritório no final do dia esquelético e às vezes
chorando. Com os olhos vermelhos, ele parecia dez anos mais velho do que quando
entrava de manhã”.
Elucidativas palavras de Carlotta,
a esposa de Eugene O’Neill, sobre o
processo de criação de sua peça mais famosa Longa Jornada Noite Adentro, iniciado em 1939 para chegar aos
palcos apenas em 1956, em Estocolmo seguida da estreia americana no mesmo ano.
Afrontando um desejo do dramaturgo de que isso só ocorresse 25
anos pós sua morte, ocorrida em 1953. Por razões intimistas à causa do sotaque autobiográfico
da obra, retratando, sem retoques, o drama implacável de uma família disfuncional,
a sua própria.
Onde o pai James Tyrone
(Luciano Chirolli) é um ator oriundo da Broadway
com um sucesso só (O Conde de Monte Cristo), sendo um convicto católico
irlandês mas incapaz, como os outros dois filhos, de escapar do vicio da bebida,
além de sua renitente tendência à mesquinharia.
Enquanto o mais velho, também ator frustrado - Jamie (Gustavo Wabner) - além de
alcoólatra está sempre envolvido com prostitutas, o jovem Edmund (Bruno Sigrist), alterego do dramaturgo, sonha ser um
grande escritor em meio a uma incurável tuberculose. Havendo a interveniência ocasional
de uma empregada - Cathleen (Mariana
Rosa) em papel limitado à pontuação irônica dos afazeres domésticos.
Sobrepondo-se, emblemàticamente sobre todos os personagens, a
figura amargurada da esposa e mãe Mary (Ana
Lucia Torre), uma dependente de morfina, mergulhada no delírio do seu passado
num colégio de freiras, pensando em ser uma religiosa ou uma pianista até
encontrar um Príncipe que não seria exatamente o de seus sonhos.
Longa Jornada Noite Adentro. Ana Lucia Torre e Luciano Chirolli. Ao fundo/ Bruno Sigrist e Gustavo Wabner. Maio/2023. Fotos/Priscila Prade |
Idealizada originalmente na capital paulista, na direção concepcional
de Sérgio Módena, para um espaço de arena, a montagem cenográfica (André
Cortez) é formatada circularmente, mostrando uma única ambiência na sala
preenchida por móveis de estilo todos em branco.
Simbologicamente reveladora, no prólogo da peça, ao retirar-se
uma espécie de mortalha branca que
cobre tudo incluindo, metaforicamente, aquelas patéticas “almas mortas”. Sob efeitos luminares (Aline Santini),
vazados e especularmente claros, no imagético entorno nebuloso de uma casa entre
rochas, à beira-mar.
Sem deixar de citar o fraseado de uma trilha incidental (Marco França) que conecta acordes clássicos
e contemporâneos. Com esta plasticidade ampliada na atemporalidade de
romantizados figurinos (Fabio Namatame) em tons sóbrios, culminando na alusão lírica
a uma espectral dama na translúcida indumentária de Mary da cena final.
Sergio Módena, em dúplice atuação, é também o responsável pela
apurada e concisa tradução do original.
E como na maioria das versões cênicas contemporâneas da peça, sem deixar perder
a essência dramatúrgica, concentrando a trama
de quatro atos em um único com cerca de duas horas.
Sabendo imprimir com vigorosa autoridade cênica, a um inventário dramático de sangue e alma, as nuances de um realismo poético, no denso clima
memorialista de uma viagem que atravessa as 24 horas de uma jornada diária. Perceptíveis num dimensionamento
psicológico tchekhoviano de personagens desesperançados por nunca alcançarem a
desejada transmutação existencial.
Onde os dois irmãos revelam unidade interpretativa, consistência e convicção, tanto no desabafo
raivoso e exaltado de Jamie (Gustavo
Wabner) como no desempenho sofrido diante da iminência terminal do tuberculoso Edmund (Bruno Sigrist), ao lado dos recursos
histriônicos e irreverentes de Mariana Rosa como a criada. Completando-se a
dignidade de um acertado elenco, na irradiante força da maturidade de Luciano
Chirolli, enquanto ator e personagem, como o patriarca James Tyrone, no pleno domínio de sua gramática cênica.
E, sobretudo, na carismática potencialidade do teor confessional da
personagem de Ana Lúcia Torre sabendo, com rara força interior, sensitivo apelo
vocal e corporificação irrepreensível, expressar o desalento de sua Mary. Que no doloroso e fantasmagórico trajeto
do epilogo faz lembrar uma amarga reflexão de O”Neill sobre o difícil suporte da condição humana : “A vida é para cada homem uma cela solitária cujas
paredes são espelhos”...
Wagner Corrêa de Araújo
Longa Jornada Noite
Adentro está em cartaz no Teatro Prudential/Glória, de quinta a sábado, 20h;
domingo, às 17h. Até 28 de maio.