A EXCEÇÃO E A REGRA : EM TOM FABULAR, DOMINANTES E DOMINADOS OU A EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM


A Exceção e a Regra. Luiz Fernando Lobo/Direção. Maio/2023. Fotos/Thiago Gouveia/Nem Queiroz.


“Diante da humanidade que é desumanizadora, nunca diga que é natural, para que nada passe por imutável”. Emblemático pensar de Bertold Brecht que atua como um ideário filosófico/politico para sua coletânea de peças didáticas da década de 30 titulada como Lehrstücke.

Entre estas A Exceção e a Regra, de 1937, estreada no ano seguinte, propositalmente em montagem na Palestina, pelo imigrante alemão Alfred Wolf num desafio à ascenção nazista.  Sob tradução hebraica e apresentada ao ar livre num gramado coberto de areia sugestionando as dunas de um deserto.

Numa trama fabular que mostra um rico mercador envolvido com a comercialização petrolífera,  atravessando um vasto e arriscado deserto auxiliado pelo trabalho de um guia e de um carregador. Ambos contratados na função de Cule,  em modus capitalista de submissão visando apenas o produto final do lucro e sem qualquer consideração pela vida destes que estão sob seu domínio servil.

Expressando o ódio da luta de classes, o preconceito racial e a mais absoluta ausência em lato sensu do que é o justo e para que serve a (in)justiça ancestral praticada pelos homens. Quando a balança oscila entre o mais forte e o mais fraco e o despropósito do resultado final acaba ficando sempre com o detentor do poder, o que é acintosamente declarado na cena conclusiva da peça - o julgamento.

Este texto fundamental no sustento conceitual do teatro dialético brechtiano tem mais uma de suas encenações brasileiras, desta vez através de Luiz Fernando Lobo em projeto comemorativo dos 30 anos da  Companhia Ensaio Aberto em sua tradicional sede – o Armazém da Utopia na região portuária carioca.


A Exceção e a Regra. Companhia Ensaio Aberto. Maio/2023. Fotos/Nem Queiroz/Thiago Gouveia.


Reunindo um afinado e extenso elenco que se desdobra como atores/cantores, onde a protagonização do Negociante fica a cargo da convicta atuação de Leonardo Hinckel e Gilberto Miranda, ao lado de Tuca Moraes, Luiza Moraes e Dani Areguy, na caracterização feminina do Cule. Além da súbita duplicidade do diretor Luiz Fernando Lobo no epílogo, em surpreendente e luminosa atuação atoral como Juiz.

Acompanhados ao vivo por um energizado trio musical  (piano, percussão e lira), na execução de inventiva trilha sonora autoral com um  sotaque orientalista (por Felipe Radicetti). Conectada à preciosa artesania na reprodução indumentária (Beth Filipecki e Renaldo Machado) de trajes com a tipicidade das caravanas do deserto.

Tudo preenchendo a plasticidade de uma ambientação cenográfica à base dos instigantes dimensionamentos móveis na concepção de J. C.Serroni, ressaltados  nos eficazes efeitos luminares de Cesar de Ramires. Sem deixar de destacar o acerto das preparações vocais, corporais e aéreas, favorecendo  as modulações estruturais de uma dramaturgia dialética.

A integralização de uma vigorosa proposição de desempenho performático, inspirada na linhagem de um teatro que possibilita o lúdico ensinando por intermédio da reflexão e da tomada de posição, fica patente no comando direcional que Luiz Fernando Lobo imprime à montagem.

Com um perceptível referencial da teoria do distanciamento brechtiano exposta em seus Escritos Sobre o Teatro : “Não é apenas uma questão da arte apresentar de forma agradável coisas a serem aprendidas. A contradição entre “aprender” e “ter prazer” deve ser mantida em sua nitidez e com sua significativa importância”.

A prevalente postura frontal hierática e a firmeza da tessitura vocal na fala dos atores ora em solilóquio recitativo ora no uníssono de vozes corais instrumentaliza a interatividade didática palco/plateia, ator/espectador.

Fazendo o que, aqui, se pretende - do ato de diversão um ato de reflexão. Num corte laminar, no entremeio do riso burlesco e da compaixão que conduz à raiva e à revolta, para que assim, afinal, diante do risco representado pela exceção “se reconheça o abuso onde está a regra”...

 

                                     Wagner Correa de Araújo



A Exceção e a Regra está em cartaz no Armazém da Utipia, Região Portuária, de sexta a terça, às 20h. Até 22 de maio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Encenação linda de um texto contundente. Fiquei maravilhada com a potência de Brecht. Parabéns aos atores da Companhia Ensaio Aberto e ao diretor Fernando Lobo. (Ana Cristina Lima)

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