ESTADO DE SÍTIO / Foto by João Caldas |
Foram poucas as montagens de maiores exigências cênicas ou de soluções estéticas realmente inovadoras neste árido embate pela superação da crise. E sem recorrência à solução imediata de produções mega minimalistas ou do enxugamento pelos espetáculos para um solista.
A começar pelo contraponto inventivo da transposição de
Gabriel Villela para a obra de Albert Camus – Estado de Sitio, privilegiando, com seu apurado senso dramatúrgico,
a plasticidade cênica, de apelo onírico, inspirada em elementos barroquistas e
recortes burlesco/circenses. Em oportuno momento, quando o cotidiano de uma
nação, sitiada sob o pestilento risco da insegurança político/cultural, torna-se
insustentável...
Com identificação aproximativa, o teatro simbolista de Maurice Maeterlinck – Interior - na sua melancolizada
retratação da trajetória humana sob a implacabilidade do destino, alcança
carismático comando mor de Fabianna de Mello e Souza. Transmutando-se em
preciosa surpresa estética da temporada, no jogo lúdico, em atmosfera hipnótica,
da conexão de atores, máscaras e gestualismo, com referencial de marionetes e
de coro do teatro grego.
Da nova geração dramatúrgica inglesa Lucy Kirkwood, com As Crianças, numa progressão dramática, entre
culpas radioativas e amargores afetivos, enuncia uma textualidade instigante sobre os erros civilizatórios da contemporaneidade. Em irreprimível performance de um elenco
de craques que o fio condutor de Rodrigo Portella explora com sensorial e, ao
mesmo tempo, contundente tratamento cênico.
Enquanto uma releitura dramatúrgica, sobremaneira inventiva e
questionadora, com significante titulação -
Eu, Moby Dick – da lavra
autoral de Pedro Kosovski, em conluio concepcional com a direção de Renato
Rocha, integraliza múltiplas linguagens artísticas. Com o olhar armado na problemática do
homem e do planeta, mas através de especial direcionamento reflexivo para o patético e
obscuro momento político brasileiro.
Outra incursão literária, esta a partir de idéia comum do dramaturgo
Pedro Bricio, da diretora Miwa Yanagizawa e da atriz Flávia Pyramo, para um
clássico russo - O Idiota de Dostoievsky, na renominação teatral de Nastácia. Sob incisiva gramática cênica,
com especular reflexo de instalação plástica, num jogo vivo ator/espectador. Viabilizando
um instante feroz de reação do coletivo teatral para os surtos de intolerância da
realidade social brasileira no seu confronto com o empoderamento feminino e no implacável trajeto para o feminícidio.
AS CRIANÇAS/ Foto by Victor Hugo Cecatto |
Na mesma linhagem de revisão inventiva de clássicos literários, a Companhia Brasileira de Teatro, partiu de uma peça menos valorizada da juventude de Tchekhov, aqui, sob a titulação significante de Por Que Não Vivemos? Nos investigativos questionamentos concepcionais (Márcio Abreu), entre a encenação realista e uma cinética ação interior, com um necessário e reflexivo recado de dias russos como aqueles, vivenciados por nós, entre o desalento, a dúvida e as sombras.
O musical, naturalmente, foi o mais afetado pelas novas
políticas culturais de suporte financeiro, notando-se uma retração incrível no
numero de espetáculos, em caráter mais flagrante nos palcos cariocas.
Miguel Falabella soube se adaptar à nova realidade e foi responsável
por uma das mais diferenciais investidas no gênero, na solidez estética de O Som e a Sílaba, tanto na manipulação de parcos recursos cênicos como na exploração da empatia e da força performática
das duas atrizes/cantoras. Numa tessitura de soprano para árias operísticas, Alessandra
Maestrini e Mirna Rubin, tomadas da paixão, enquanto artistas e personagens, se entregaram a energizado e fluente diálogo entre a comédia musical e a ópera.
A celebrada dupla Moeller-Botelho preferiu retomar sucessos
de seu extenso repertório de musicais, tanto com Cole Porter – Ele Nunca Disse Que Me Amava, no acerto absoluto de
um time das melhores expoentes femininas do gênero, ao contrário de O Despertar da Primavera, onde contou com um elenco muito jovem sem a força
vocal/performática dos intérpretes da primeira versão.
Cabendo a Tadeu Aguiar a mais brilhante criação do ano por
uma ultra requintada realização de A
Cor Púrpura, outra vez autentificando a credibilidade do musical à
brasileira. Na representividade de uma saga da raça negra e do feminino, no
revigorante paradigma musical das contendas de uma comunidade em estado de
permanente alerta e de irmandade contra a opressão.
Em ano de escassas investidas autorais dramatúrgicas, com melhores resultados no campo dos monólogos, Gustavo Pinheiro, uma das mais gratas revelações da
nova dramaturgia brasileira, conseguiu estrear mais duas de suas textualidades
teatrais. Relâmpago Cifrado para
duas atrizes onde se discute, via sensitiva percepção dramática e caprichado arcabouço cênico,
a ética médica sob ecos poéticos drummondianos.
E equilibrando-se entre o teor metafórico e a nuance realista, sua quarta incursão, titulada de Os Impostores, teve, desta vez, a colaboração textual de Rodrigo
Portella. No acionamento do onírico e da metáfora, enquanto encenação de um
pesadelo realista, onde o empenho direcional de Rodrigo Portella se sintoniza, em habitual e reiterativa segurança, com o processo investigativo da dramaturgia atual.
Wagner Corrêa de Araújo
A COR PÚRPURA/ Foto by Carlos Costa |