TRANSSEXUALIDADE E DISFARCE MELODRAMÁTICO EM COMPASSO DE DENÚNCIA

OCUPAÇÃO COPI. Junho de 2015. Foto/Caíque Cunha.


A Ocupação Copi é um projeto que reúne duas peças do dramaturgo, cartunista, performer e escritor franco-argentino Raul Botana, auto denominado ator/travesti e popularmente conhecido como Copi, nos anos 70/80.

Sua obra multifacetada é provocativa, inquietante e transgressora, numa curta trajetória existencial (1939/1987), interrompida bruscamente pela Aids.

Seu teatro, ácido e doloroso, tem precedentes especialmente na literatura sem disfarces de Jean Genet e no absurdo teatral de Beckett e Ionesco, com uma dose ampliada de anarquismo moral e irreverência, na abordagem das preferências da sensualidade.

A Geladeira, com seu humor irônico latente, transita entre os limite do real e do imaginário, através de um personagem ambíguo que assume vários tipos de seu convívio social/familiar e torna anímicos os diversos objetos que o cercam, no exato dia em que completa 50 anos.

O indesejado presente (uma geladeira) de aniversario faz do assexuado protagonista (Márcio Vito) aqui, na concepção diferencial de Thomas Quillardet, um ser menos identificável ainda, pela recusa das marcações cênicas sugestionadas por Copi (caracterizações personalistas via figurinos).

O que cria um inusitado e risível jogo lúdico, entre a verbalização e a pantomima, assumido, com raro vigor, na insinuante interpretação de Márcio Vito, plena de solitária angústia, no seu crítico clima de bizarrice e irrealidade.

Em O Homossexual ou a Dificuldade de Se Expressar, Copi vai mais longe no mimetismo estético do componente marginalizado da (trans)sexualidade. São, agora, cinco atores conduzindo uma cena travestida, no ferino confronto entre a masculinidade agressiva e a feminilidade afetada.

A senhora Simpson (Renato Carrera) e sua filha Irina (Mauricio Lima), incitadas por Madame Garbo (Leonardo Corajo) planejam fugir da repressão comportamental da Sibéria soviética para a China comunista, auxiliadas pelo General Pouchkine (Fabiano de Freitas) e pelo oficial Garbenko (Higor Campagnaro).

Este sarcástico e dissipador código não ortodoxo da sexualidade não deixa de ser um referencial da ira homofóbica, tanto do stalinismo – um ignóbil fruto da cultura burguesa/capitalista, como do macarthismo –  a homossexualidade é inimiga do Estado e ameaça a humanidade.

A perceptível entrega total do elenco, com um especial élan virtuosístico de Renato Carrera, alcança, no preciosismo detalhista do comando de Fabiano de Freitas, a sensibilização ideal no domínio de um tema de perigosa e caricatural discriminação.

Se, em tempos de quebra de estereótipos na conduta social, uma mera predileção erótica e afetiva é ainda capaz de provocar sectarismos degradantes e violentos fundamentalismos religiosos, vale lembrar do olhar armado e precursor de Copi.

E compartilhar de seu universo de desmistificações, onde não importa a possessividade de um sexo, a submissão do outro ou a rebeldia das identidades sexuais, quando a prevalência for sempre a do amor em todas as suas dimensões.

OCUPAÇÃO COPI. Junho de 2015. Foto/Caíque Cunha.

Hoje, o teatro e o cinema argentinos estão, cada vez mais, se tornando referenciais contemporâneos do pensar cultural latino-americano.

Se, por um lado, o longo pesadelo da noite dos generais feriu, com corte seco de lamina, corações e mentes de toda uma geração, ironicamente implodiu a tendência ao melodramático que, até então, costumava-se atribuir à criação artística porteña.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com o então já conhecido dramaturgo e escritor Carlos Gorostiza que, diante das portas fechadas à livre expressão, implode o conservadorismo militar com o seu Teatro Aberto que teve, na peça O Acompanhamento seu marco definitivo.

Usando o inteligente recurso da falsa aparência ao retratar o absurdo da realidade então vivenciada, abordou um tema cotidiano, sem clara conotação política, mas que escondia o maior grito de liberdade no simples sonho de vida de um operário.

Distanciando-se dos atrozes tempos que motivaram o clássico texto de 1981, percebemos ainda a sua carga emocional implícita na tematização do valor eterno da amizade, capaz só ela de fazer de uma mentira uma declaração de amor aos que nos são mais caros.

Isolado num quase bunker (em adequada concepção cenográfica de Carlos Augusto Campos), o metalúrgico aposentado Tuco (Wilmar Amaral) sai em busca da trajetória existencial perdida, na vazia mecanicidade de um operador de máquinas. Cruel destino na forçada e sofrida substituição do cantor da juventude que esperava ter sido e que não foi.

Enquanto acredita na chegada, a qualquer momento, dos músicos acompanhantes, ouve insistentemente discos de seu ídolo (na versão brasileira Silvio Caldas, no lugar de Carlos Gardel) até ser surpreendido pelo amigo Sebastian (Roberto Frota), com a missão de dissuadi-lo desta “loucura senil”.

Entre idas e vindas, diálogos e monólogos, o conformista, pés no chão, percebendo que a verdade faz mal ao colega, opta pela mentira necessária e, pelos brios da amizade, acaba repartindo com ele, como acompanhante, o sonho musical.

A superlativa direção de Daniel Archangelo acentua, com rara sutileza, a nuance tragicômica do enredo dramatúrgico, num preciso sotaque de atemporalidade. Completada, ainda, na propriedade das luzes (que ele acumula) e no acerto dos figurinos (Ricardo Rocha).

Enquanto a carismática performance dos atores em coeso duo (Wilmar Amaral/Roberto Frota) é capaz, enfim , na sua emotiva envolvência, de conduzir palco/plateia, reflexivamente, ao libertário voo do sonho, saída e consolo no difícil ato de suportar a condição humana.

                                              Wagner Corrêa de Araújo

O ACOMPANHAMENTO. Abril de 2015. Foto/Luiz Luz.

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