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Tráfico, de Sergio Blanco. Direção/Victor Garcia Peralta. Novembro/2022. Fotos/Gabriel Nogueira. |
Foi a partir do romance Nossa
Senhora das Flores, escrito em 1943 por Jean
Genet, que a prostituição masculina foi abordada, pela primeira vez, de
forma mais crua e sem qualquer olhar censor. Outros livros do autor retomariam ainda
o tema como Querelle e Diário
de um Ladrão.
No cinema perde-se a conta das inúmeras abordagens do tema, especialmente
após a liberação sexual dos anos 70 e a explosão do HIV na década seguinte,
estendendo-se ainda aos palcos em diferenciais enfoques sob o signo de um teatro da prostituição.
Onde a cena prioriza a dicotomia na corporeidade do sexo
masculino à venda mais sob fator
monetário que por prazer, a partir de uma narrativa dramatúrgica sustentada num
conceitual entre a marginalidade social, o desprezo e a carência de afeto no âmbito
de suas relações familiares.
Estigmatizado pela violência e pelo preconceito para
sustentar um jogo de entretenimento sob a erotização narcisista da fisicalidade
masculina. Visando a conquista do
cliente e do ganho financeiro, num instinto de sobrevivência e autoafirmação, através
da atração estética/escultural exercida pelo corpo perfeito.
Explicitado, em dimensionamento de potencial originalidade,
por intermédio do que o autor franco-uruguaio Sergio Blanco chama de autoficção e sinaliza como característica básica de sua obra
dramatúrgica em peças, já apresentadas na cena brasileira, como Ira de Narciso, Tebas Land e, agora, Tráfico.
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Tráfico, de Sergio Blanco. Com Robson Torinni. Novembro/2022. Fotos/ Gabriel Nogueira. |
Repetindo o bem sucedido apelo cênico/diretorial já explicitado
em Tebas Land, Victor Garcia Peralta
convocou o ator Robson Torinni para protagonizar esta sua estreia em formato
monologo. E também acerta ao ter na direção de arte Gilberto Gawronski, já presente
como ator em luminosa atuação na Ira de
Narciso.
Para Sergio Blanco “Trafico é o espetáculo em que mais me desnudo, mais
me exponho e mostro um lado mais criminoso”.
O que torna perceptível no personagem um sotaque pirandelliano,
na identificação autoficcional do dramaturgo como o cliente de Alex (Robson Torinni), no papel de um
professor universitário francês com o qual o garoto de programa estabelece uma
metafórica dialetação psicofísica.
E que chega a ser o responsável ocasional, de assumida inculpabilidade,
pela sequencial serie de homicídios cometidos por Alex sob comando de um rede de traficantes ao sugestionar, em
processo intrapsíquico/ficcional, a possibilidade de acumular maiores rendimentos (além
do sonho já realizado de uma motocicleta), a partir da encomenda de encontros homicidas.
Numa caixa cênica (em funcional ideário de Gilberto
Gawronski) onde os únicos elementos materiais são um capacete de moto e dois
refletores laterais em dúplice significado de sinais de transito e espelhos do veículo ou de sórdidos
quartos de hotel. Complementado por psicológicos efeitos luminares (Bernardo
Lorga) climatizando sedução e violência
e amplificando-se nas inserções sonoras
de Marcello H.
Em performance irrepreensível, sob o absoluto verismo de uma
transgressiva linguagem coloquial (inspirada in loco pelo ator e pelo diretor em conversas com profissionais do gênero),
Robson Torinni materializa no corpo malhado,
na indumentária insinuante e no gestual despudorado (Toni Rodrigues) o comportamental
ambíguo de um garoto de programa. Sob densa frieza confessional indo da transa
corporal aos atos homicidas, intercalada com a remissão de idas à igreja e de
falas sobre a santidade da sua mãe.
Em crescendo dramático de precisão física e insólita
expressão emocional por Robson Torinni para viabilizar um jogo teatral vivo insuflado
pela autoridade cênica de Victor Garcia Peralta. Provocante, contundente e
demolidor, capaz de seduzir e fazer refletir o espectador, em mais uma onírica imersão
dramatúrgica de Sergio Blanco conectada com a realidade de nosso tempo.
Wagner Corrêa de Araújo
Tráfico está em cartaz no Teatro Poeirinha, de quinta a
sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 18 de dezembro.
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