VIRGÍNIA : VISCERAL MERGULHO DRAMATÚRGICO NOS ABISMOS ÍNTIMOS DE UMA ESCRITORA


Virgínia. Texto e interpretação/Claudia Abreu. Novembro 2022. Fotos/Pablo Henriques/Flávia Canavarro.


“Eu não vejo nada. Podemos afundar e nos acomodar nas ondas... Rolar sobre as ondas vai me empurrar para baixo. Tudo caindo como uma tremenda chuva, me dissolvendo”... Através deste metafórico prognóstico em seu livro “As Ondas”, Virginia Woolf sinaliza seu terminal mergulho nas águas do rio Ouse, nas proximidades de sua residência.

Era mais uma das tentativas de suicídio, desta vez bem sucedida, no intercurso de inúmeras crises mentais e da publicação de cerca de 13 livros numa vitoriosa trajetória literária iniciada em 1915 e interrompida fatalmente às vésperas da publicação de “Entre os Atos” ( Between the Acts), 1941, aos 59 nove anos de idade.

O que poderia subliminarmente remeter, em sua titulação com um referencial cênico, ao belo ideário existencial/artístico que norteou a vida atormentada da escritora e, aqui, inspira o poético, ao mesmo tempo dramático, roteiro teatral de Claudia Abreu.  Sustentado a partir de uma sequencial paixão literária, psicológica e estética pela obra de Virginia Woolf iniciada desde que ela atuou em Orlando, sob memorável direção de Bia Lessa.

Numa trágica e lírica abordagem daquela decisiva passagem existencial o expressivo e tocante monólogo autoral, desdobrado em sensorial envolvência performática da atriz, alcança transcendente conluio com a reconhecida entrega de Amir Haddad ao oficio cênico/diretorial, em parceria valiosa de Malu Valle para esta peça denominada Virgínia.

Por baixo está tudo escuro, está tudo se espalhando, é insondavelmente profundo; mas de vez em quando subimos à superfície e é por isso que você nos vê”, Virginia Woolf / O Farol. Palavras que revelam um enunciado da pulsão às aguas que marca a obra da autora e conduz o fio narrativo da peça numa representação imersiva sob a transparência de signos híbridos.


Virgínia. De e com Cláudia Abreu. Direção/Amir Haddad. Novembro/2022.Fotos/Pablo Henriques/Flávia Canavarro.


No imaginário de uma dramaturgia da fisicalidade - um corpo desequilibrando-se em convulsão absoluta sendo levado pela fúria das correntes líquidas (em potencializada direção gestual de Marcia Rubin). Com a atriz de pés nus e uma atemporal indumentária (Marcelo Olinto) de prevalência branca entre bordados e rasgos.

Como um destes anjos atormentados por demoníacos pesadelos (tragédias familiares, discriminação intelectual, assédio sexual, surtos psíquicos). No seu destino das idas e voltas de “Ser jogada na água, balançada nas vagas, arrastada aqui e ali, levada até as raízes do mundo...”

Ampliando-se tudo por uma provocadora sonoplastia (Dany Roland/José Henrique Fonseca) insinuando ruídos do choque das águas, com ocasionais interregnos melódicos de acentos coreográficos, em meio a gradações luminares (Beto Bruel) vazadas ou focais na corporeidade solitária da atriz, preenchendo em estado de completude o vazio da caixa cênica.

Caracteres convictamente assumidos na brava entrega atoral assumida por Cláudia Abreu. Replicando o feminismo amargurado do personagem como um espiritualizado ser ficcional, sensualizado apenas pelo relacionamento com outras mulheres,  no substitutivo ato para suprir o desinteresse sexual recíproco entre a escritora e o editor Leonardo Woolf, o partner masculino de vida inteira.

Explorando os diversos estágios de enfrentamento das intempéries no desafio do suporte da condição humana, através do fluxo de consciência aplicado com rara maestria nesta dúplice e reluzente conexão interpretativa (Cláudia Abreu) e direcional (Amir Haddad) pela manifestação das vozes interiores de Virgínia.

Não há como assistir a esta peça sem alcançar um processo de identificação especular (personagem>atriz>espectador) com os intrigantes questionamentos existencialistas ali apresentados. Além de sua busca investigativa de um teatro reflexivo e dialético, ela é capaz de  armar o nosso olhar cotidiano no incógnito prenúncio do destino de cada um de nós. Recorrendo, em compasso reiterativo, à devastadora verdade de Virginia Woolf :

Por que a vida é tão trágica, tão semelhante a um aterro sobre o precipício? Baixo os olhos, sinto a vertigem; pergunto-me como poderei chegar algum dia ao fim”...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

Virgínia. Com Claudia Abreu. Direção/Amir Haddad. Em cartaz no Teatro XP/Gávea, sextas e sábados 20h; domingos, às 19h. Até o dia 20 de novembro.

3 comentários:

enarducci disse...

Quero ver!!! Belo exercício de interpretação..

Anônimo disse...

Parabéns, belíssima crítica👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
O espetáculo é muito maravilhoso ❤️

Anônimo disse...

Por esta resenha apresentada da peça imagino o belo trabalho desenvolvido por Cláudia, Amir e todos os colaboradores envolvidos, na obra de Virgínia Wolf.

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