ICÔNICOS EXEMPLARES DA MODERNA DRAMATURGIA BRITÂNICA

The Suit, criação de Peter Brook. Junho de 2015. Foto/ Tristram Kenton.


Quando num palco quase nu, vemos cadeiras de cores diferentes (talvez para acentuar seu caráter lúdico), um tapete, algumas armações com cabides e cortinas, servindo de portas, paredes imaginárias e passagens, tendo ao lado três músicos que dividem a performance com os três atores, armamos nossos olhares na exclusiva duplicidade do ver e ouvir atores.

Inspirada num conto de Can Themba, um escritor sul africano cruelmente afetado pelo ódio e rejeição do apartheid, THE SUIT mereceu de Peter Brook (na companhia criativa de Marie-Hélène Estienne e Franck Krawzyck) uma das mais sensíveis adaptações de sua trajetória de encenador mor.

Aqui, um advogado Philomen (Jared McNeil), a partir de um flagrante de adultério de sua mulher Matilda (Cherise Adams-Burnnet), obriga-a a conviver cotidianamente com o terno deixado para atrás pelo amante em fuga.

Como se este objeto mimeticamente fora um honrado hóspede vivo, indo na contramão conceptiva de que o hábito não faz o monge, ela cumpre, por ingerência do marido traído, os afazeres cotidianos com a cumplicidade do terno propositalmente esquecido.

Esta alegoria da repressão machista atinge sua culminância quando, numa festa com os vizinhos, ele o traído, lembra em sarcástica ironia que, afinal, temos mais um visitante, o terno. Humilhada e subjugada, ela assumindo a culpa resolve optar por uma solução fatalista.

Em tom fabular, o texto tem uma narrativa de sequencial linearidade  a partir do original literário, entremeada pelas canções e temas musicais executados ao vivo por um trio integrado por violão (Harry Sankey), trompete (Jay Phelps) e teclado (Danny Wallington), recortando um repertório que vai da Serenata de Schubert à Paixão Segundo São Matheus, de Bach.

Completada, ainda, pelo oportuno referencial da sonoridade jazzística de regozijo de “Feeling Good” ou da opressividade de “Strange Fruit”. E no simbológico canto tradicional da Tanzânia – “Malaika, Nakupenda Malaika” (Anjo, eu te amo, anjo), acentuando um sublime acento vocal da atriz/cantora.

A iluminação (Philippe Vialatte), ora carregada de tons crepusculares ora vazada na claridade, ressalta a adequada singeleza dos figurino (Oria Puppo).

Na culminância do público sendo convocado a subir ao palco na cena festiva que antecede a tragicidade final, numa celebração que une atores e músicos em performance ritual.

Que, em compasso de despedida, anestesiado pelo compartilhamento palco/plateia da simples/sensível proposta cênica em torno da vingança e do perdão, sente, enfim, o gosto da verdade estética enunciada pelo próprio Brook:

“Meu único objetivo no teatro é que as pessoas, depois de uma hora ou duas juntas, de alguma forma saiam com mais confiança na vida do que tinham ao chegar”.

O dramaturgo inglês Joe Orton teve a ideia de um roteiro cinematográfico com irônicas insinuações de atitudes homoeróticas entre os Beatles mas o polemico teor do tema impediu a sua consecução.

Em 1987, Stephen Frears aproveita o título biográfico - Prick Up Your Ears - num filme, sobre as perigosas aventuras sexuais da vida de Orton, com uma referência sobre a sugestão proibida.

Na rápida e múltipla trajetória artística do autor, nos libertários anos 60, era preciso estar atento à suas ferinas palavras, capazes de perfurar, o tempo todo, a sensibilidade auditiva. O anticonvencionalismo moral era ali sua marca registrada, especialmente nas concepções teatrais.

E, assim, O Olho Azul da Falecida (Loot) não foge à regra, tendo se transformado no seu maior êxito, com satirização mordaz dos princípios religiosos, tradições familiares, posturas políticas e ritualismo social.

Em tom de farsa demolidora, com humor ácido, o enredo dramatúrgico tem sua maior força no absoluto predomínio de diálogos de cortante cinismo. E que a direção segura de Sidnei Cruz procura manter, tendo como base uma esmerada tradução de Barbara Heliodora.

Por vezes, sob o risco da predominância do clima de vaudeville tirar o foco crítico do texto, mas sem jamais perder o dimensionamento inventivo, habitual nas propostas da Cia Limite 151, em suas oportunas incursões no repertório de todas as épocas.

Harold (Rafael Canedo) filho da "falecida", aliado ao agente funerário e amante Dennis (Helder Agostini), esconde o dinheiro de um roubo no caixão da mãe. Entre idas e vindas do viúvo Mac Leavy (Mário Borges), assediado por uma enfermeira assassina Fay (Gláucia Rodrigues), eis que surge o decisivo detetive Truscott (Tuca Andrada), acompanhado do policial Meadows (Johnny Ferro).

O funcional cenário(José Dias), com seus precisos pontos de entrada e saída, favorece, ao lado da discrição do figurino (Samuel Abrantes), uma certa atemporalidade da arquitetura cênica, ressaltada pelo equilíbrio entre a iluminação (Rogério Wiltgen) e o score sonoro (Wagner Campos).

O elenco, coeso e acertado, acentua a diversidade de nuances dos personagens, entre psicopatas, falsos ingênuos, meliantes, hipócritas, aliciadores, em contraste enunciando sempre um único incorruptível e, por isto mesmo, a possível vítima.

Alcançando todos a trágica dimensão do saque (“loot”) do caráter humano quando, ao fazerem seu egoísta e zombeteiro jogo com o ritual da morte, tornam verossímeis as palavras do próprio Joe Orton:

“Se você é absolutamente prático – e espero que eu seja – um caixão é apenas uma caixa. Se uns o chamam de caixão e, por sua vez, você o chama de caixa, então ele pode ter qualquer tipo de utilidade.”

                                                 Wagner Corrêa de Araújo

O Olho Azul da Falecida. Joe Orton na visão de Sidnei Cruz. Maio de 2015. Foto/Guga Melgar.

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