“Eu deveria quem sabe agora deixar cair uma lágrima por causa dessa espécie infeliz”. Quando um dos personagens profere esta frase, com seu cortante niilismo, é como se estivéssemos a escutar Schopenhauer : “O destino é cruel e os homens dignos de compaixão”.
Ansiedade, alienação, tédio, miséria, perpassam assim por
todos os seres que povoam este pequeno, sórdido e absurdo universo de Krum. Este texto dramatúrgico, do autor
israelense Hanoch Levin, é completado
na simbologia de seu subtítulo – “Ectoplasma,
peça com dois casamentos e dois funerais”.
A resignação, disfarçada pela ilusória perspectiva de
mudanças, aproxima-os irremediavelmente de uma postura filosófica de auto-negação,
no eterno retorno do fim que não leva ao nada. Aqui a difícil condição de
suportar a condição humana não conduz a qualquer espécie de felicidade ou
legado.
O anti-herói Krum
(Danilo Grangheia) retorna à casa materna com um mala de roupas sujas, mãos
vazias e nada mais. Sua vã tentativa de escapar da sufocante mediocridade de
uma comunidade provinciana coloca-o, novamente, diante destes habitantes/prisioneiros
da ausência de escolhas oferecida pela vida.
E em confronto com a mãe (Grace Passô) ecoando seu insistente
jargão de cobrança ao filho - “O mundo só
tem isso para te dar”- e também
de sua antiga amante Tudra Renata
Sorrah) que expõe, com palavras e canto, este em alemão, a poesia amarga de sua
dilacerada intimidade em exponencial atuação.
Qualidades interpretativas presentes ainda no enfermiço Tugati (Ranieri Gonzalez) e sua mulher Dupa (Inez Viana) que troca a frustração
matrimonial por uma fugaz e fria aventura sexual com Bertoldo (Rodrigo Bolzan). Ao lado do caráter risível de um casal,
fazendo o falso intelectualismo de Dolce (Edson
Rocha) esconder as vulgaridades de Felícia
(Cris Larin), em meio ao cerimonial de casamentos e funerais.
Enfim, uma simbiótica orquestração estética de performances,
tendo no podium teatral a carismática
regência de Márcio Abreu. Aqui entre solos e conjuntos, sob os precisos efeitos
blackouts da iluminação claro/escura (Nadja
Naira), recatados figurinos (Ticiana Passos) e décors teatrais (Fernando
Marés), propícios sobremaneira a este painel dostoievskiano de humilhados e ofendidos.
Destaque ainda para a expressiva gestualidade (Márcia Rubin),
em especial na grotesca mecanicidade da discoteca, e para as preciosas
interferências sonoras de ruidosos tremores como “ectoplasmas”, intermediados
pelos cantos a capela do elenco, entre o romantismo, o sacro e o pop/rock (Felipe
Storino).
Tudo enfim convergindo palco/plateia para uma melancólica
catarse, perante a imobilista indiferença de uma sociedade cruel em que o ato
de "viver é muito perigoso" sempre, e onde, com a
morte : “Você não vai perder nada,
Tugati, pode acreditar. Olha bem pra gente, olha pras nossas vidas, olha pras
nossas casas...”
O raro “Anti-Nélson
Rodrigues”, tragicomédia com todos os elementos característicos da
dramaturgia rodrigueana, traz, no entanto, em sua carga de irônico
melodramatismo, o triunfo final do amor sobre a corrupção.
Na peça, o inescrupuloso Oswaldinho
(Joaquim Lopes) rouba e abusa da fortuna do pai Gastão ( Rogério Freitas) e,
sob os mimos da mãe Tereza (Juliana
Teixeira) , alcança a presidência de uma de suas fábricas. Ali assedia, com
concupiscência e promessas financeiras, a suburbana, evangélica incorruptível, Joice (Yasmin Gomlevsky).
Com primazia absoluta pela auto-referência, retorna um dos alter egos de Nélson, o jornalista aposentado Salim Simão (Tonico Pereira), na crítica e bem humorada abordagem das mazelas da imprensa marrom e dos delírios futebolísticos.
E, paralelamente, entre maiores e menores atuações,
sucessivamente, vão e voltam outros personagens como o mensageiro Leleco (Gustavo Damasceno) e a criada
Helenice (Carla Cristina). Contracenando todos com as contínuas execuções de um
pianista (Francisco Pons) .
A bela concepção cenográfica (Pati Faedo) alterna objetos
(cadeira, cama e mesa) e revela rosas vermelhas, ressaltados pela luz cinematográfica
de precisos closes (Luiz Paulo Nenem) que incidem também nos detalhamentos
elegantes do figurino (Nívea Faso). E, ainda, o destaque da trilha sonora pianística
(Mauro Berman), intimista e reflexiva no desnudar sentimentos.
Em exacerbado descortino emocional, desfilam conflitos
filiais/paternos de desprezo e ódio, instintos edipianos matriarcais,
falsidades morais, despudores da sexualidade e o barato materialismo do poder
financeiro.
Tudo isto captado com densidade e poesia pela direção (Bruce
Gomlewsky) que vai imprimindo sua originalidade estética sem a perda da
identidade rodrigueana, num texto de rubrica titular opositória.
Enfim, esta surpresa da temporada teatral 2015 é obrigatória
também pela performance exemplar de um elenco de craques, coeso e qualificativo,
na exorcização de um universo sombrio onde, nas palavras do próprio “anjo pornográfico”:
“Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano. Talvez algum dia o sol mude de lugar, mostrando então outras partes da paisagem humana”.
Wagner Corrêa de Araújo
ANTI-NÉLSON RODRIGUES. Maio de 2015. Páprica Fotografias. |
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