A CERIMÔNIA DO ADEUS : EM SOBREVOO MEMORIAL PELOS ESPAÇOS SIDERAIS DA MENTE

 

A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi. Ulysses Cruz, Direção. Julho/2023. Fotos /Diego Imai/Fernando Gonsales.


“Pare de trapacear : o sentido da nossa vida está em jogo no futuro que nos espera; não sabemos quem somos, se não sabemos quem seremos’’, palavras questionadoras de Simone de Beauvoir, em irônico olhar de sarcasmo sobre os ritos de passagem da condição humana. E que podem servir de referencial para o instigante texto dramatúrgico de Mauro Rasi - A Cerimônia do Adeus, a partir de similar inspiração titular no livro da escritora francesa.

Enquanto o relato existencialista de Simone de Beauvoir era voltado à despedida terminal na velhice de Jean-Paul Sartre, seu partner de vida e de literatura, o de Mauro Rasi mostra o processo de descobertas da adolescência na trajetória do jovem Juliano (Lucas Lentini), o alterego do dramaturgo, na ambiência conservadora de uma cidade paulista interiorana. 

Na qual o personagem protagonista surge na metafórica companhia cotidiana dos livros de seu quarto e nos conflitos familiares com uma arquetípica mãe, implicante e carinhosa, Aspázia (Malu Galli), junto aos restritivos princípios religiosos da tia espírita Brunilde (Fernanda Viacava).

Simultaneamente, no fluir do sonho juvenil de Juliano em se tornar um escritor e do despertar de desejos sexuais homoafetivos, direcionados entre a assumida atração recíproca pelo amigo Francisquinho (Fernando Moscardi) e as sutis insinuações sensuais do primo Lourenço (Rafael de Bona), há a interveniência das visões presenciais de duas de suas inspirações livrescas - Jean Paul Sartre (Eucir de Souza) e Simone de Beauvoir (Beth Goulart).


A Cerimônia do Adeus. Ulysses Cruz/Direção concepcional. Malu Galli e Beth Goulart. Julho/2023.


Em espetáculo que retoma a transcendente releitura paulista que Ulysses Cruz fez logo após a montagem original da peça, em 1988, no Teatro dos Quatro, na  direção de Paulo Mamede. E é aquela sua versão que reestreia, com inéditas pontuações depois de quase quatro décadas, numa sequencial temporada em SP e no RJ.

Antenada num sustento cenográfico de tônus mais minimalista e contida indumentária cotidiana (na tríplice criação concepcional de Ulysses Cruz), desta vez priorizando um perceptível substrato performático que, permite um direcionamento maior do imaginário, no fluxo memorial de uma viagem pelos espaços siderais da mente.

Afinal, este retrato é mais especular na sua proximidade radical dos delírios e anseios libertários da consciência visionária do personagem mor, perturbado pelo clima de opressividade quando se desenrola sua adolescência. Naqueles incertos anos de pleno domínio dos governos militares, no  retrocesso da censura ditatorial ao pensamento que ousasse alçar voos mais altos.

As luzes (Nicolas Caratori) claro/escuras se espalhando além dos limites da caixa cênica e criando frestas cinéticas entre as portas laterais, sob os efeitos eletrônicos de energizada trilha pop/roqueira remixada (André Abujamra). Ampliando-se este sensorial imagético num mix de projeções visuais piscodelizadas, incluídos instantâneos fragmentos fílmicos de antigas cenas parisienses.

Na híbrida convergência pictórica onírica com esparsos recortes naturalistas da casa maternal de Juliano, especialmente seu quarto e os livros, numa plasticidade estética imersiva e, sobretudo, propícia à mágica dialetação espectral da celebrada dupla francesa de escritores com os outros personagens.

Em dimensionamento psicofísico, ator e personagem se confundem na luminosa composição de Beauvoir/Beth Goulart e na acertada sobriedade de Sartre/Eucir de Souza. Com funcional destaque ainda na irreverência juvenil de Fernando Moscardi, no espontâneo conservadorismo de Rafael Bona, na acomodada espiritualidade de Fernanda Viacava, no rompante contraponto crítico de Lucas Lentini e na irrepreensível entrega de Malu Galli ao seu papel.

No entremeio das pinceladas de drama e comédia, de riso e melancolia, de erudição e falas comuns, A Cerimônia do Adeus, através do olhar atento e inventor de Ulysses Cruz, tem o alcance, assim, de um inventário dramatúrgico dos anos oitenta sabendo, antes de tudo, como sintonizar o desbravador legado de Mauro Rasi com os avanços do teatro de hoje...

                                            Wagner Corrêa de Araújo



A Cerimônia do Adeus está em cartaz no Teatro Copacabana Palace. Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. Até 23 de julho.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito da sua visão atenta e generosa sobre esta versão de A CERIMÔNIA DO ADEUS .

Anônimo disse...

Ulysses Cruz

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