Não Me Entrego Não. Flávio Marinho/Dramaturgia/Direção. Com Othon Bastos. Maio/2024. Beti Niemeyer/Foto. |
Com ascendente recuperação da atividade teatral, a temporada
2024 teve seus grandes destaques nas peças de consistente teor reflexivo e
intencionalismo crítico no entorno da nossa realidade política e social, sob
ecos memorialistas de tempos difíceis. Como uma lembrança reflexiva à resistência
entre o ontem e o hoje na passagem dos sessenta anos de um infame
período de turbação da liberdade e dos direitos humanos mais as ameaças golpistas
da recente (des) governança anterior.
A começar por Lady Tempestade, reunindo Silvia
Gomez (dramaturgia), Andrea Beltrão (performance) e Yara de Novaes (direção) em
tributo cênico aos desaparecidos ou aos mortos sem sepultura num compasso sartreano, sobre uma das mais tormentosas eras da história política brasileira. Além das
peças - homenagem com dois ícones do teatro brasileiro entre os séculos XX e XXI –
Othon Bastos e Renato Borghi.
Este último com O Que Nos Mantém Vivos?, em dúplice referencial titular simbólico, incluindo
ainda Não Me Entrego Não. Em que, na formatação biográfico-confessional, Flávio Marinho conecta sua envolvente textualidade autoral a um artesanal
direcionamento para a carismática performance deste grande ator de ontem, de
hoje e de sempre que é Othon Bastos.
A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. Leonardo Netto/Direção. Com Guida Vianna/Silvia Buarque de Holanda. Fevereiro/2024.Nil Canine/Foto. |
Sem deixar de destacar, também, Let’s Play That ou Vamos Brincar
Daquilo, monólogo em que Tuca Andrada, com irrestrita e ininterrupta
pulsão de força energética-interpretativa, provoca espontâneo conceitual da
frase síntese de uma época, com o apelo poético-libertário de Torquato Neto, “vai bicho desafinar o coro dos contentes”.
E é se inspirando em sinalizadora canção de Cazuza que Rogério Corrêa foi responsável pela mais mordaz tragicomédia de 2024 - Mostra a Tua Cara, revisitando sob riso inteligente, o reiterativo circuito pejorativo de dois presidentes eleitos, a partir do primeiro - Collor - e ecoando no penúltimo deles auto denominado de "messias". Com quatro personagens folhetinescos, dimensionados com proposital exagero grotesco, irradiando comicidade para desentorpecer conscientizando o mais conservador dos espectadores, numa categórica direção de Isaac Bernat.
Partindo das transposições entre o texto literário e o palco,
vamos encontrar duas exemplares versões teatrais, de um conhecido conto de
Lygia Fagundes Telles ao romance premiado de um escritor estreante - Stenio Gardel.
Na peça A Palavra Que Resta sob um exemplar uso das construções
poético/verbais do autor cearense, por Daniel Herz e seus convictos Atores de Laura, transmutadas em luminoso sotaque de um quase
manifesto contra o preconceito no que concerne à livre identificação da
sexualidade.
A original gramática cênica alcançada por Analu Prestes, em
sua parceria concepcional com a diretora Silvia Monte, fez de Senhor
Diretor um dos solos femininos mais tocantes do ano, sabendo como
alcançar a completa coesão entre a palavra escrita e falada para contagiar o publico
com o singular retrato de uma conservadora “senhorinha”
sexagenária.
Outras incursões teatrais em temáticas protagonizadoras da condição
feminina tiveram, de um lado, um diferencial estético na abordagem da obra da
visionária artista plástica mineira Lygia Clark. Promovendo na peça Lygia,
de Maria Clara Mattos, um sensorial convívio
especular entre a obra escultórica/manipulável, o espectador e sua exponencial intérprete
(Carolyna Aguiar), no comando inventivo de Bel Kutner.
Além da sempre atenta parceria das atrizes Débora Falabela e Yara de Novaes, as mais recentes sendo Prima Facie e Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante, ambas enfatizando a masculinidade tóxica pelos abusos sexuais, do estupro à violência homicida. Enquanto Daniela Pereira de Carvalho dá um recado contundente numa das mais viscerais análises dos conflitos e da rejeiçao familiar ao relacionamento afetivo entre duas mulheres, em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, com irreprimível direção (Leonardo Netto) e extasíaca interpretação de Guida Vianna e Silvia Buarque de Holanda.
(Não Me Entrego Não reestreia breve no Teatro Vannucci. Lady Tempestade e Senhor Diretor voltam ao cartaz no Teatro Poeira, em 2025, sendo todas absolutamente imperdíveis, o que se estende, sem qualquer exceção, às 10 peças aqui citadas).
Lady Tempestade. Silvia Gomez/Dramaturgia.Yara de Novaes/ Direção Concepcional. Com Andrea Beltrão. Janeiro 2024. Nana Moraes/Felipe Ovelha/Fotos. |
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