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Furacão. Concepção dramatúrgica/Ana Teixeira/Stephane Brodt. Agosto/2023. Fotos/Sabrina Paz. |
“Eu, Josephine Linc
Steelson, negra de quase cem anos, abri a janela esta manhã...” Assim
se inicia a frase que marca enfaticamente, como um leitmotiv verbal, a textualidade narrativa de Furacão que, a partir do
romance Ouragan, de Laurent Gaudé, torna-se a mais nova
criação da Cia Amok.
Onde, por intermédio das sempre inventivas concepções direcionais de Ana Teixeira e Stephane Brodt, é feita uma releitura visceralizada desta obra do escritor e dramaturgo francês que, inclusive, já teve, ali no Amok, outra de suas representações teatrais, por intermédio de “Salina - A Última Vértebra ”.
Sempre priorizando um enfoque nos dilaceramentos
civilizatórios da contemporaneidade através do confronto com o legado étnico da
ancestralidade. Seja no enfrentamento das turbulências de políticas opressivas em
relação a povos e raças, como no descaso ao meio ambiente provocando sequenciais desastres ecológicos.
E é aí que se sustenta o conceitual ético e dramatúrgico da
peça ao mostrar, nas falas visionárias de uma emblemática personagem feminina, um
empático ato de resistencia contra as manifestações racistas de desprezo aos
menos favorecidos, seja pela cor de sua pele, seja por sua carente condição
social.
Transitando do seu relato de fatos discriminatórios no cotidiano da comunidade negra de Nova Orleans à segregação racial perceptível nos procedimentos de socorro às vítimas do cataclisma com sua acontecencia na Louisiana, pelo furacão a que se titulou de Katrina, em agosto de 2005.
Furacão/Cia Amok. A partir de um romance de Laurent Gaudé. Agosto/2023. Fotos/Sabrina Paz. |
Havendo na peça uma concentração absoluta no entorno da
figura icônica da velha negra o que surpreende, em processo metafórico com subliminar
sotaque de tragicidade grega, pelo peculiar enfoque dado a este protagonismo
feminino, ao contrário da trama romanesca que se divide entre cerca de uma
dezena de vítimas da catástrofe.
Num ideário estético capaz de sugestionar uma cantata cênica
camerística através de dois potenciais músicos (Anderson Ribeiro e Rudá Brauns)
manipulando, ao vivo, vários instrumentos em processo alternativo. Na afinada execução de repertório com alguns clássicos do blues
americanos, acompanhados pelos bonitos contornos do timbre vocal da jovem atriz
e cantora Taty Aleixo.
Como a trilha é desenvolvida simultaneamente sob andamento
contínuo, junto às falas de uma solista teatral (Sirlea Aleixo), é como se estivéssemos
assistindo a recitativos de um oratório moderno ou de uma cantata barroca, com
um certo referencial bíblico na praga punitiva de uma natureza em pane.
Ao mesmo tempo em que induz, no presencial de uma convicta
caracterização da protagonista-mor (Sirlea Aleixo) a um mítico fabulário de vivências
ancestrais, desde um gestualismo ritualístico a um dramático expressionismo facial, resultado da tensão interior de um personagem sofrido e humano.
Na plasticidade de uma simbólica instalação cenográfrica frontal
provocada por uma visita in loco de
Ana Teixeira ao palco da Preservation
Hall Jazz Band, em New Orleans, um reconhecido repositório da tradição do blues e da cultura negra norte-americana. E,
ainda, ampliada na conexão climática dos efeitos luminares (Renato
Machado) com a envolvência carismática dos acordes musicais.
O que acaba transcendendo a temática da resistência singular de uma negra
americana, em necessária postulação de defesa e protesto a favor da mulher brasileira
vitimizada pela crescente onda de violência homicida à causa de um assumido e
desprezível comportamento machista.
Ao lado referencial de um processo civilizatório em declínio,
sinalizado pelo pânico de um cenário ambiental
à beira do risco e de uma condição humana sob o desafio de sua proximidade terminal.
Lembrando, enfim, no enunciado tragipoético da criação literária
de Laurent Gaudé, a advertência reflexiva de palavras suas, tornadas tão oportunas a propósito
do investimento estético/ideológico deste Furacão
transcendido, com sangue e alma, na montagem da Cia Amok:
“Mal posso esperar, porque há nobreza em saber que uma rajada de vento pode varrer nossas vidas e não deixar nada para trás, nem mesmo a vaga lembrança de uma pequena existência”...
Wagner
Corrêa de Araújo
Furacão / Cia Amok está em cartaz no Teatro Sergio Porto, de quinta a domingo, às 20h. Até 27 de agosto.
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